4) Pertinência temática entre os interesses defendidos na demanda coletiva e os fins institucionais previstos no estatuto da entidade autora não pode ser exigida de forma rigorosa
O argumento de que o estatuto de uma associação é “excessivamente genérico”, desatrelado de qualquer outro que aponte para uma efetiva fragilidade técnica ou operacional da entidade, é de ordem exclusivamente formal, devendo prevalecer a presunção legal da legitimidade do titular da ação coletiva. Esse argumento não pode ser utilizado para o Juiz se livrar de enfrentar o mérito da demanda. Não pode o magistrado, só por um estatuto ser genérico, impedir que uma associação devidamente capacitada, idônea e com reconhecida visibilidade social em um determinado setor, ingresse em juízo com uma ação coletiva.
Basta um pequeno elo de ligação entre a atuação da entidade autora com a matéria e a natureza dos direitos defendidos na ação, para atribuir-lhe legitimidade ativa (ad causam). Isso porque a pertinência temática que se exige não deve ser extremamente rigorosa, sob pena de se formar uma concepção prejudicial à defesa coletiva de interesses em juízo. É preciso tão somente que a pertinência seja razoável, que a atuação processual revele alguma relação com a vida institucional da entidade proponente da demanda coletiva, mas nunca o rigorismo exagerado de uma concepção restritiva, porque isso terminaria redundado em prejuízo do sistema de defesa coletiva de interesses, como advertiu o Ministro Luiz Fux, no julgamento do AgRg no REsp 901.936/RJ, assim ementado:
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMATIO AD CAUSAM DO SINDICATO. PERTINÊNCIA TEMÁTICA. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL NAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. PREJUÍZO INDEMONSTRADO. NULIDADE INEXISTENTE. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS. [...]
2. A pertinência temática é imprescindível para configurar a legitimatio ad causam do sindicato, consoante cediço na jurisprudência do E. S.T.F na ADI 3472/DF, Sepúlveda Pertence, DJ de 24.06.2005 e ADI-QO 1282/SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ de 29.11.2002 e do S.T.J: REsp 782961/RJ, desta relatoria, DJ de 23.11.2006, REsp 487.202/RJ, Relator Ministro Teori Zavascki, DJ 24/05/2004.
3. A representatividade adequada sob esse enfoque tem merecido destaque na doutrina; senão vejamos: "(...) A pertinência temática significa que as associações civis devem incluir entre seus fins institucionais a defesa dos interesses objetivados na ação civil pública ou coletiva por elas propostas, dispensada, embora, a autorização de assembleia. Em outras palavras. a pertinência temática é a adequação entre o objeto da ação e a finalidade institucional. As associações civis necessitam, portanto, ter finalidades institucionais compatíveis com a defesa do interesse transindividual que pretendam tutelar em juízo. Entretanto, essa finalidade pode ser razoavelmente genérica; não é preciso que uma associação civil seja constituída para defender em juízo especificamente aquele exato interesse controvertido na hipótese concreta. Em outras palavras, de forma correta já se entendeu, por exemplo, que uma associação civil que tenha por finalidade a defesa do consumidor pode propor ação coletiva em favor de participantes que tenham desistido de consórcio de veículos, não se exigindo tenha sido instituída para a defesa específica de interesses de consorciados de veículos, desistentes ou inadimplentes. Essa generalidade não pode ser, entretanto, desarrazoada, sob pena de admitirmos a criação de uma associação civil para a defesa de qualquer interesse, o que desnaturaria a exigência de representatividade adequada do grupo lesado.
[...]
11. Agravo Regimental desprovido, restando prejudicado o exame dos pedidos formulados na petição nº 00103627 (fls. 2042/2050) e na petição nº 00147907 (fls. 2051/2052), haja vista que exaustivamente examinados no presente Agravo Regimental.” (AgRg no REsp 901.936/RJ, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/10/2008, DJe 16/03/2009).
5) Não se pode extinguir o processo coletivo sem proporcionar que outros legitimados assumam o polo ativo da demanda
É importante chamar a atenção para o fato de que no julgamento do REsp n. 1213614-RJ, o Ministro Luis Felipe Salomão somente adotou a solução pela extinção do processo coletivo porque tinha outro motivo para fazê-lo. É que na instância de origem, o processo havia sido extinto por outro motivo, além da alegada ilegitimidade ad causam da associação autora da ação coletiva. O magistrado sentenciante, no que foi seguido pelo acórdão do TRF da 2ª. Região, entendera que não havia utilidade na demanda, daí ter extinto o processo também pela falta de interesse de agir. O Ministro Luis Felipe destacou em seu voto (e na ementa do acórdão no STJ) que decidira pela solução da extinção do processo coletivo também com esse segundo fundamento, ou seja, de que além da ilegitimidade da parte autora, faltava uma outra condição da ação, o interesse processual, nesses termos:
“8. Outrossim, em reforço de argumento, além da ausência de legitimidade, fica patente a inexistência de outra condição da ação - interesse de agir - a igualmente atrair a incidência do art. 267, VI, do CPC (dispositivo tido por violado), pois, como relatado, em petição incidental formulada às fls. 392-395, a própria recorrente, na mesma linha da tese suscitada em contrarrazões pela Caixa, reconhece que, em vista do precedente contido no REsp 1.070.896/SC, a questão de fundo encontra-se "fulminada pela prescrição", não vislumbrando a possibilidade de vir a ser enfrentada no processo, visto que a presente ação coletiva foi ajuizada após o prazo quinquenal.”
Tal constatação leva à conclusão de que, no caso julgado pelo STJ, provavelmente o relator não tivesse acatado a extinção do processo coletivo se fosse apenas pela ilegitimidade da parte autora. Como o relator vislumbrou que, de qualquer maneira, o processo não poderia seguir ante a evidente falta de utilidade para a coletividade, aí manteve a extinção decretada nas instâncias ordinárias.
As particularidades que o caso julgado pelo STJ apresenta reforça a ideia de ser mínima a possibilidade de extinção sumária de um processo coletivo por fundamento exclusivo na “inadequada representação” da parte autora. Geralmente as ações coletivas envolvem interesse social relevante, quer seja pela dimensão ou característica do dano aos interesses de uma coletividade quer pela relevância do bem jurídico a ser protegido, situação que inclusive dispensa o requisito temporal da constituição da associação autora (pelo prazo mínimo de um ano, art. 5º., § 4º., da Lei 7.347/85). A relevância de um processo com tamanha projeção social e repercussão em termos de benefícios que pode gerar a número grande de pessoas, praticamente impede a sua extinção com fundamento exclusivo em ilegitimidade da parte autora. Ainda que o ente que promove a ação possa eventualmente não preencher os requisitos de legitimação (dispostos no art. 82, inc. IV, do CDC, e art. 5º., V, da Lei 7.347/85), o magistrado processante do feito não pode simplesmente adotar solução pela extinção do processo, pois tem que oportunizar a assunção da causa por outros legitimados, conforme já decidiu o STJ no julgamento do REsp 1177453/RS, assim ementado:
“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MICROSSISTEMA DE TUTELA DE DIREITOS COLETIVOS (EM SENTIDO LATO). ILEGITIMIDADE ATIVA. APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DOS ARTS. 9º DA LEI N. 4.717/65 e 5º, § 3º, DA LEI N. 7.347/85. POSSIBILIDADE. ABERTURA PARA INGRESSO DE OUTROS LEGITIMADOS PARA OCUPAR O PÓLO ATIVO DA DEMANDA. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO. MEDIDA DE ULTIMA RATIO. OBSERVAÇÃO COMPULSÓRIA DAS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA ABSOLUTA.
[...]
5. De acordo com a leitura sistemática e teleológica das Leis de Ação Popular e Ação Civil Pública, fica evidente que o reconhecimento da ilegitimidade ativa para o feito jamais poderia conduzir à pura e simples extinção do processo sem resolução de mérito. 6. Isto porque, segundo os arts. 9º da Lei n. 4.717/65 e 5º, § 3º, da Lei n. 7.347/85, compete ao magistrado condutor do feito, em caso de desistência infundada, abrir oportunidade para que outros interessados assumam o pólo ativo da demanda.
7. Embora as referidas normas digam respeito aos casos em que parte originalmente legítima opta por não continuar com o processo, sua lógica é perfeitamente compatível com os casos em que faleça legitimidade a priori ao autor. Dois os motivos que levam a esta assertiva.
8. Em primeiro lugar, colacione-se um motivo dogmático evidente, que diz respeito ao valor essencialmente social que impregna demandas como a presente, a fazer com que o Poder Judiciário deva se esmerar em, sempre que possível, ser condescendente na análise de aspectos relativos ao conhecimento das ações, deixando de lado o apego ao formalismo.
9. Normas específicas do microssistema em comento e indicativas do que a doutrina contemporânea convencionou chamar de princípio da primazia do conhecimento do mérito do processo coletivo é o próprio art. 5º, § 4º, da Lei n. 7.347/85, que é especialização do princípio da instrumentalidade das formas (art. 154 do CPC). Excertos de doutrina especializada. [...] 15. Recurso especial não provido.” (REsp 1177453/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/08/2010, DJe 30/09/2010).
Esse julgado retrata como nenhum outro o “princípio da indisponibilidade da demanda coletiva”, que significa que, ante o interesse público de que se revestem as demandadas coletivas, nem sequer a parte que a promove tem disponibilidade sobre ela. Rennan Faria Thamay explica que essa nota da indisponibilidade diferencia o processo coletivo do processo individual, ao dizer:
“Contrariamente ao princípio da disponibilidade da demanda na via do processo civil individual, o processo coletivo perpassa naturalmente pelo princípio da indisponibilidade, já que a demanda coletiva não depende da vontade das partes, mas, sim, da necessidade social de sua propositura.
Nesse ponto o que se tornará perceptível é que a demanda coletiva independe da vontade das partes, visto que há aqui o interesse público que deve prevalecer, sempre observando os critérios de conveniência e oportunidade.
Não há no processo coletivo a facultas agendi que existe no processo civil tradicional individualista, pois há, sim, uma natural indisponibilidade do interesse público o que obriga aos órgãos públicos de tomarem as devidas medidas. Nesse caso o Ministério Público é que deve agir.”(9)
6) CONCLUSÕES:
1ª. No sistema processual brasileiro, a legitimação para propor ação coletiva decorre da lei (ope legis); é a lei que estabelece os legitimados e indica os requisitos para a atuação judicial em processo coletivo. A lei já se encarregou de, previamente, avaliar a capacidade dos entes que legitimou para conduzir as ações coletivas. Assim, para ser atestada sua legitimidade ad causam, basta que a associação seja constituída há pelo menos um ano e que tenha entre seus fins institucionais a defesa de interesses dos consumidores ou das matérias previstas para o manejo da ação civil pública (art. 82, inc. IV, do CDC, e art. 5º., V, da Lei 7.347/85).
2ª. É injustificável a preocupação judicial relativamente a aspectos como “credibilidade”, “capacidade econômica” ou mesmo “conhecimento técnico-científico” da associação que promove uma ação coletiva. O que importa é que ela preencha os requisitos exigidos em lei para que seja considerada parte legítima para propor a ação.
3ª. O que ficou assentado no julgamento do REsp é que o Juiz pode negar legitimidade quando quem promove a ação não é de fato uma associação, mas apenas um ente constituído sob a forma associativa, porque nesse caso se considera atentatório à dignidade da Justiça permitir que pessoa jurídica com esse nível de aparência artificiosa (verdadeira “associação de gaveta”) possa ser admitida para movimentar a máquina judiciária, com isenção de custas e outros benefícios.
4ª. Não se deve colocar óbices meramente formais à legitimação para atuação ativa em demanda coletiva, extinguindo o processo e trazendo, com isso, consequências sociais indesejáveis. O princípio da primazia do conhecimento do mérito, que na verdade é uma faceta ou decorre do princípio da instrumentalidade das formas (art. 154 do CPC), impede que na demanda coletiva se busque num formalismo exagerado justificativa para extinguir o processo, afetando o reconhecimento de um direito difuso ou coletivo. Ainda que um requisito de admissibilidade para a causa não esteja completamente implementado, deve-se buscar a superação de um formalismo exagerado, tendo em vista os benefícios incomensuráveis que a ação coletiva pode trazer para um conjunto de pessoas indeterminadas. A colocação de empecilhos formais de toda ordem ao exame do mérito, acaba por contrariar o direito fundamental de acesso à Justiça (art. 5º., inc. XXXV, da CF) e enfraquece o sistema coletivo de defesa de direitos, em violação ao art. 170, V, da CF, que coloca a “defesa do consumidor” como princípio da ordem econômica nacional.
5ª. Em relação à pertinência temática, basta um pequeno elo entre a atuação da entidade autora com a matéria e a natureza dos direitos defendidos na presente ação, para atribuir-lhe legitimidade ativa (ad causam). Isso porque a pertinência temática que se exige (no art. 82, inc. IV, do CDC, e art. 5º., V, da Lei 7.347/85) não deve ser extremamente rigorosa, sob pena de se formar uma concepção prejudicial à defesa coletiva de interesses em juízo. É preciso tão somente que a pertinência seja razoável, que a atuação processual revele alguma relação com a vida institucional da entidade proponente da demanda coletiva, mas nunca o rigorismo exagerado de uma concepção restritiva, porque isso terminaria redundado em prejuízo do sistema de defesa coletiva de interesses. Não pode o magistrado, só por um estatuto ser genérico, impedir que uma associação devidamente capacitada, idônea e com reconhecida visibilidade social em um determinado setor, ingresse em juízo com uma ação coletiva.
6ª. Em face da relevância social e repercussão em termos de benefícios que pode gerar a número grande de pessoas, não se pode promover a extinção do processo coletivo com fundamento exclusivo em ilegitimidade da parte autora sem antes proporcionar a assunção do polo ativo por outros entes legitimados, em atenção ao princípio da indisponibilidade da demanda coletiva (art. 5º, § 3º, da Lei n. 7.347/85).
Notas:
1) GIDI, Antonio. A Representação Adequada nas Ações Coletivas Brasileiras: Uma Proposta. Disponível em: www.abdpc.org.br
2) DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública.São Paulo: Saraiva, 2001, p. 201-202.
3) GRINOVER, Ada Pellegrini. Ações Coletivas ibero-americanas: novas questões sobre a legitimação e a coisa julgada. Revista Forense, 301, p. 3-12.
4) Breves considerações sobre a representatividade adequada e os limites subjetivos da coisa julgada nos processos coletivos, artigo publicado no site Jurisway, em 14.04.2010. Acessível em: http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=3900
5) Min. Luis Felipe Salomão, no julgamento do REsp n. 1213614-RJ.
6) No julgamento do REsp 1177453/RS, como relator na Segunda Turma, em 24/08/2010, DJe 30/09/2010.
7) Art. 154. Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial.
8) No artigo Princípios do Processo Coletivo, acessível em: http://rennankrugerthamay.blogspot.com.br/2012/05/os-principios-do-processo-coletivo.html
9) Ob. cit.