I. INTRODUÇÃO (1)
Atualmente, no âmbito de um forte movimento mobilizatório denominado “Nova AGU” (2), um dos temas mais debatidos (3) é a “cadeia de comando e obediência” formada a partir dos cargos comissionados (4) ocupados pelos integrantes das carreiras jurídicas existentes na Advocacia Pública Federal.
É crescente, entre os membros das carreiras jurídicas da AGU (5), uma importante discussão sobre a pertinência da existência dos cargos comissionados na Advocacia Pública Federal. Indaga-se, com frequência, até que ponto a construção e o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito, manifestado no âmbito da AGU pelo exercício da independência técnica dos seus membros, estariam afetados com a condução do órgão baseada em cargos comissionados ocupados majoritariamente por critérios visceralmente subjetivos.
Ademais, a referida “cadeia de comando e obediência”, formada a partir de cargos comissionados, desenvolveu, na prática, salvo honrosas exceções, um verdadeiro código de ética. O “teor” desse conjunto de concepções e práticas é fácil e informalmente identificado no dia a dia do funcionamento dos órgãos da Advocacia Pública Federal.
Esse modesto escrito pretende contribuir para esse importantíssimo e necessário debate. Registre-se que são raríssimas as reflexões acerca desse instigante e delicado campo que envolve a intersecção entre aspectos jurídicos, políticos e de gestão administrativa dos órgãos da Advocacia Pública Federal.
II. A INSTALAÇÃO DA AGU BASEADA EM CARGOS COMISSIONADOS
A instalação da Advocacia-Geral da União, instituição prevista pela Constituição de 1988 para realizar as funções de representação judicial e extrajudicial da União, além das atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo Federal, baseou-se principalmente num significativo conjunto de cargos comissionados. Considerando a inexistência da carreira de Advogado da União, prevista na Lei Orgânica da AGU, editada em fevereiro de 1993, o legislador federal, por intermédio da Lei no 9.366, de 1996, criou dezenas de cargos comissionados na estrutura do Gabinete do Advogado-Geral da União, da Procuradoria-Geral da União, da Consultoria-Geral da União e da Corregedoria-Geral da Advocacia da União (6).
A quantidade de cargos comissionados criados e inseridos na estrutura dos órgãos da AGU destoava claramente da realidade observada nos Ministérios (simplesmente tomados como termos de comparação), alguns desses de porte considerável. Ademais, tais cargos, na ausência da carreira de Advogado da União, foram preenchidos por inúmeros advogados privados. Prosperaram, também, as cessões e requisições de servidores para a AGU, notadamente oriundos de empresas estatais.
O art. 66 da Lei Orgânica da AGU (Lei Complementar no 73, de 1993) bem espelha o momento vivido pela instituição nos momentos iniciais de sua instalação e funcionamento. Diz o comando legal aludido: “Nos primeiros dezoito meses de vigência desta lei complementar, os cargos de confiança referidos no § 1º do art. 49 podem ser exercidos por Bacharel em Direito não integrante das carreiras de Advogado da União e de Procurador da Fazenda Nacional, observados os requisitos impostos pelos arts. 55 e 58, bem como o disposto no Capítulo IV do Título III desta lei complementar”. O prazo em questão foi prorrogado até 11 de fevereiro de 2003 (7). Os cargos relacionados no dispositivo citado são: “o Corregedor-Geral, os Corregedores-Auxiliares, os Procuradores Regionais e os Procuradores-Chefes”.
Essa disponibilidade de cargos comissionados e as “facilidades” para o provimento dos mesmos marcaram a instituição ao longo dos primeiros anos de seu funcionamento e projetaram efeitos deletérios sentidos até nos momentos atuais. A principal e mais perversa herança daqueles tempos iniciais reside na falsa impressão de que a instituição pode ser adequadamente gerida com base num punhado de advogados, públicos ou privados, em cargos comissionados de direção e assessoramento (a conhecida “cadeia de comando e obediência”).
III. ALGUNS EFEITOS DELETÉRIOS DOS CARGOS COMISSIONADOS
Percebe-se, em vários espaços inseridos ou estreitamente ligados à Advocacia Pública Federal, uma preocupação com a eventual influência negativa decorrente da ocupação de cargos comissionados sobre o desenvolvimento das atividades dos advogados públicos.
O art. 63, parágrafo segundo, da Lei nº 8.906, de 1994, conhecido como Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, estabelece expressamente que o candidato, nas eleições da Ordem, não pode ocupar cargo exonerável ad nutum. Inegavelmente, o sentido dessa exigência está relacionado com a necessidade do exercício independente do cargo de representação classista. Com efeito, fez o legislador uma inequívoca opção pelo afastamento de pressões potencialmente indevidas sobre as decisões a serem tomadas pelo ocupante dos mais variados cargos eletivos existentes no âmbito da OAB (8).
Algumas entidades representativas dos advogados públicos federais inscreveram em seus atos constitutivos a vedação da acumulação do exercício de cargos comissionados com postos de representação. Nessa linha, podem ser observados os Estatutos do SINPROFAZ – Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (9) e da UNAFE – União dos Advogados Públicos Federais do Brasil (10). Vale anotar que uma parcela significa das entidades representativas dos advogados públicos federais silencia quanto à proibição da acumulação referida.
No âmbito no SINPROFAZ, ante a veemente reação dos integrantes da carreira, notadamente no sentido da utilização da visibilidade dos cargos associativos para a obtenção de nomeações para cargos comissionados, adotou-se uma regra de cunho moral consistente na vedação da ocupação desses últimos postos por diretor da entidade até 1 (um) ano após o término do mandato.
Essas regras apontam claramente para a identificação de certo efeito negativo do exercício de cargo comissionado sobre a independência e a isenção do advogado público (ou privado). Admite-se, portanto, que o advogado exonerável ad nutum de um cargo comissionado, com perda remuneratória, de status funcional e de parcela de poder, pode efetivamente ter suas ações, decisões e manifestações, no campo da representação classista perante autoridades, afetado de forma significativa, notadamente contra os interesses ou anseios dos representados.
Outra das consequências mais perversas do exercício de cargos comissionados foi observada no inédito escândalo de corrupção constatado na AGU pela operação da Polícia Federal denominada “Porto Seguro” (11). Trata-se da busca pela ocupação de cargos comissionados como instrumentos ou ferramentas das mais variadas malversações ao patrimônio e a moralidade públicos com a concomitante perseguição de vantagens pessoais indevidas.
A procura, inúmeras vezes frenética (12), pelos cargos comissionados dos órgãos da Advocacia Pública Federal produz uma inusitada consequência. Trata-se da criação do curioso grupo dos advogados públicos convenientes (13), integrantes, com honrosas exceções, da “cadeia de comando e obediência”. A conveniência referida se mostra como permanente disponibilidade para viabilizar caprichos, vontades, concepções e políticas vindas de cima. A postura lembra Hans Kelsen. Esse notável, e profundamente equivocado, jurista afirmou: “A necessidade de distinguir o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que, do ponto de vista de um conhecimento científico do Direito positivo, a legitimação deste por uma ordem moral distinta da ordem jurídica é irrelevante, pois a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objeto, mas apenas tem o de o conhecer e descrever. Embora as normas jurídicas, como prescrições de dever-ser, constituam valores, a tarefa da ciência jurídica não é de forma alguma uma valoração ou apreciação do seu objeto, mas uma descrição do mesmo alheia a valores (wertfreie). O jurista científico não se identifica com qualquer valor, nem mesmo com o valor jurídico por ele descrito” (14). Assim, se a “ordem” vem de cima, não importa seu conteúdo, o advogado público “conveniente” será o instrumento dócil e colaborativo de sua realização, efetivação ou materialização.
Em regra, a indefinida permanência em cargos comissionados produz alguns importantes e tristes efeitos. Talvez, o principal deles seja a perda da perspectiva do que acontece no “chão da fábrica”. As consequências desse distúrbio funcional são sentidas na formulação de regras de atuação irreais ou inexequíveis, num certo desprezo pelos “soldados rasos” (15) e na indevida redução da importância da atuação funcional da “ponta”. Já destacamos, linhas atrás, a equivocada visão de que os órgãos da Advocacia Pública Federal podem ser geridos por alguns advogados públicos federais confortavelmente instalados em cargos comissionados.
Não deve ser olvidada a influência da ocupação de cargos comissionados nos procedimentos de desenvolvimento nas carreiras por meio das promoções. Pontuar, notadamente de forma exagerada, o exercício de cargos comissionados, já remunerados por conta da responsabilidade envolvida, impõe uma séria distorção nos mecanismos de promoção por merecimento. A insatisfação nesse particular é crescente entre os advogados públicos federais.
Outra distorção observada na utilização dos cargos comissionados consiste numa peculiar burla aos procedimentos normais de remoção. São vários os casos, inclusive de advogados públicos federais recém-nomeados para o cargo efetivo, que são designados para cargos comissionados em localidades distintas da lotação como forma de fixação de exercício e residência na cidade em que o cargo comissionado está “sediado”.
IV. O CÓDIGO DE ÉTICA DA “CADEIA DE COMANDO E OBEDIÊNCIA”
A “cadeia de comando e obediência” formada a partir de cargos comissionados de direção e assessoramento possui um “código de ética” muito bem definido. Durante o movimento denominado de “Nova AGU”, ampla mobilização dos advogados públicos realizadas em 2015 buscando mudanças profundas nas condições de trabalho e funcionamento da Advocacia Pública Federal (16), inúmeras ocorrências demonstraram de forma inequívoca esses padrões de conduta adotados pelos integrantes da “cadeia”. Vejamos os principais cânones:
a) “merecimento” de remunerações maiores, via percepção dos valores pagos pelos cargos comissionados e mediante jetons decorrentes da participação em conselhos (administrativo e fiscal) de empresas estatais. Também são verificadas remunerações indiretas, notadamente pela ocupação de imóveis funcionais;
b) “direito” de não ser cobrado ou questionado quanto às decisões e aos posicionamentos adotados (17);
c) inserção numa carreira paralela onde as promoções são caracterizadas pelas posses em cargos comissionados mais “importantes” e melhor remunerados. Violando escancaradamente a lei da gravidade, a “queda”, nessa carreira paralela, ocorre “para cima” ou “para o lado” (18);
d) são reciprocamente reconhecidos como mais competentes, inteligentes e trabalhadores em relação aos demais advogados públicos federais. Esse “reconhecimento” é invariavelmente utilizado como justificativa para as inúmeras vantagens e privilégios experimentados;
e) buscam, com frequência, a formação de “equipes de trabalho”, mediante preenchimento de cargos comissionados de escalão inferior ao do “chefe”, composta por profissionais com relação de proximidade ou amizade;
f) cultivam um cuidadoso e bem trabalhado “discurso de legitimação”. Aqueles que ousam atuar para transformar um ambiente funcional marcado por privilégios para alguns e carências significativas de condições de trabalho para a maioria são qualificados de radicais, irresponsáveis, intransigentes e coisa parecida. Afirma-se que pretendem a destruição da instituição, como se essa não estivesse destruída, em vários sentidos, pelo descaso de sucessivos governos com a cumplicidade ativa dos integrantes da “cadeia de comando e obediência”. Em suma, passam a seguinte mensagem: “aceitem os integrantes da 'cadeia' porque a alternativa é o caos”;
g) sustentam que os avanços na Advocacia Pública não terão relação com mobilizações e pressões de caráter político (19). A fórmula para o sucesso envolve três passos mágicos: trabalhe (muito, de preferência), mostre resultados (cada vez maiores) e aceite as definições e determinações vindas “de cima”. Depois, você será reconhecido e recompensado (20).
V. A SUPERAÇÃO DA “CADEIA DE COMANDO E OBEDIÊNCIA”
Os comportamentos antes mencionados, claramente identificados no seio dos órgãos da Advocacia Pública Federal, alimentam com intensidade crescente a proposta de eliminação ou abolição pura e simples dos diversos cargos comissionados existentes (21).
Em escrito anterior, defendi que a extinção dos cargos comissionados da Advocacia Pública Federal não parecia ser a melhor ou a mais factível das propostas. Sustentei a manutenção deles com a adoção dos seguintes mecanismos: a) definição de critérios de escolha com a redução dos níveis de subjetividade e discricionariedade (22); b) necessidade de fixação de mandatos ou limites temporais para a ocupação dos cargos comissionados na Advocacia Pública Federal e c) retorno ao “chão da fábrica”, como “soldado raso”, por tempo igual àquele verificado no exercício de cargo comissionado (uma espécie de “quarentena”).
O rico e multifacetado movimento denominado “Nova AGU” (23) permitiu (e permite) debates e reflexões mais aprofundados, notadamente no sentido da eliminação da hierarquia tradicional e adoção de modelos horizontais de gestão, incorporando as mais modernas noções de redes (24). Destaco, entre os vários arranjos possíveis, dois modelos de organização:
a) unidades jurídicas que funcionam como colegiados sem dirigentes formais. Nesse caso, as principais decisões, notadamente aquelas voltadas para a conformação e controle da uniformidade de atuação jurídica, são adotadas pelo conjunto dos advogados públicos em exercício. Ademais, um advogado público é escolhido, em sistema de rodízio, por intervalos de tempo relativamente curtos (um ou dois meses), para realizar as várias interações com órgãos e autoridades externas. Essas funções não são remuneradas ou correspondentes a um posto formal na estrutura da Administração;
b) unidades jurídicas que funcionam como colegiados com dirigentes formais. Trata-se de uma variação do modelo anterior em que o órgão jurídico funciona também como um colegiado e possui, por lapso temporal maior, um dirigente formal (ocupante de posto na estrutura da Administração). Nesse caso, faz-se necessário definir critérios de escolha, prazo de permanência no cargo (um ou dois anos) e “quarentenas”. A remuneração envolvida deve ser baixíssima (ligeiramente superior a percebida por um advogado público sem qualquer cargo de direção) e eliminados todos os privilégios diretos e indiretos relacionados com a ocupação do posto.
Nos dois casos referidos, trabalha-se com a premissa de que a unidade ou órgão jurídico teria advogados públicos federais exercendo, na sua organização interna, apenas encargos temporários submetidos a rodízios.
A eliminação dos cargos comissionados de chefia e assessoramento (DASs) parece mais adequada para superação radical (pela raiz) dos males antes mencionados. As medidas parciais, como antes cogitei, poderiam ser mais “adequadas” se o ambiente funcional no seio da AGU também fosse mais “razoável”.