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PEDAGOGIA DO OPRIMIDO DE PAULO FREIRE: RESENHA CRÍTICA

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Agenda 01/02/2016 às 20:18

Resenha crítica do livro "Pedagogia do Oprimido", de Paulo Freire e suas implicações na área da Ciência Política e da Política.

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial no Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

 

            Normalmente o início de uma resenha crítica se dá com uma breve descrição em linhas gerais da obra comentada para, em seguida, iniciar sua análise crítica.

            Acontece que no caso da “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire, [1] faz-se necessário observar desde logo o próprio título que se apresenta enganoso quanto ao conteúdo que se encontra no livro. O título é um encobrimento de desígnios terrível de que só não se dá conta aquele que já é ideologizado ou pessoas desavisadas que serão exatamente o alvo.

            Há uma desonestidade intelectual no título “Pedagogia do Oprimido”. Não fosse desonestidade intelectual, seria uma ingenuidade e ignorância desmedidas, o que não condiz com a figura do autor, que é extremamente articulado. Digo isso porque de “Pedagogia” não há nada, absolutamente nada nessa obra. Trata-se, em verdade, de um panfleto revolucionário e um manual de doutrinação ideológica escrachado travestido em suposto estudo pedagógico.

            É preciso salientar que nada pode haver contra a atitude de que um indivíduo, seja Freire ou quem for, e sua pretensão de formular a defesa de uma ideologia, uma religião, um ideário qualquer, seja qual for, tentando convencer o público de seus argumentos. Até mesmo redigir um manual de doutrinação não pode ser obstado num regime realmente democrático. No livre mercado de ideias, as pessoas terão também livre escolha para acatar ou rechaçar argumentos, sejam eles quais forem.

            Afinal, como aduz Machado:

            “A doutrina do mercado livre de ideias parte do princípio de que todas as ideias devem ser admitidas à divulgação e discussão, independentemente do seu conteúdo”. [2]

            Neste passo parece que deve imperar o chamado “Princípio da Neutralidade de Conteúdo” de acordo com o qual nem ao Estado, nem a ninguém é dado regular a manifestação de opiniões, considerando seu conteúdo. Ou seja, o Estado ou qualquer entidade não deve tomar partido nas discussões, cabendo à sociedade a livre escolha do ponto de vista que pretenda adotar, de forma que “a decisão fica a cargo da capacidade de discernimento de cada um”. [3]

            Como adverte Marnoco e Sousa:

“Stuart Mill demonstrou proficuamente que a humanidade não tem direito de impor as suas opiniões ao indivíduo, do mesmo modo que o indivíduo não tem direito de impor as suas próprias à humanidade. Não podemos estar certos de que as opiniões dos outros sejam falsas, e em nenhum caso temos o direito de impedir que eles julguem por si o erro e a verdade. O erro e a verdade encontram-se frequentemente confundidos, de modo que as opiniões mais verdadeiras têm sempre alguma coisa de falso, e as opiniões falsas têm sempre alguma coisa de verdadeiro, só podendo discernir a verdade do erro a plena e livre discussão de todas as opiniões. A liberdade de discussão é o necessário pressuposto para a vida intelectual de um país”. [4]

 

            Portanto, o maior problema da obra comentada de Freire não está no seu conteúdo e mesmo na sua forma, mas sim na sua camuflagem desonesta, capaz (como o foi no Brasil) de influenciar desavisados e transformar o ensino num campo de doutrinação estruturado, simplesmente destruindo a educação nacional.

            O recurso ao embuste, ao encobrimento de desígnios perverte o poder social de legítima abertura às oportunidades comunicativas em um campo de batalha ideológica em que a esfera de discussão pública passa a ser um domínio de prevalência da “ação estratégica e política manipulativa”, isso inclusive quanto pretende fazer a crítica dessas mesmas coisas. [5]

            Muito menos deletério seria Freire se houvesse atuado com alguma hombridade, assumindo o que realmente é e não se ocultando sob o manto de “pedagogo” (lobo sob pele de cordeiro). Por que não agiu como, por exemplo, um declarado agitador político como Saul Alinsky que jamais teve qualquer inibição ou falta de coragem de escrever uma obra como o honesto título de “Tratado para Radicais – Manual para revolucionários pragmáticos”. Alinsky pode radicalizar, mas ao menos diz a que vem, como se diz popularmente, “dá a cara a tapa”. Aliás, sem entrar no mérito do caminho correto ou não para os objetivos que preconiza, já expõe no item 1 de seu livro seu objetivo declarado:

“Lo que sigue está dirigido a quienes quieren cambiar el  mundo actual. Maquiavelo escribió El príncipe para ilustrar  a los poderosos acerca de como conservar el poder. Tratado para radicales está dirigido a los desposeídos para mostrarles como arrebatárselo. Lo que nos interessa en este libro és como crear organizaciones de masas que tomen el poder”. [6]

            Certamente se explicitasse como Alinsky, com honestidade intelectual, seus objetivos e público – alvo, Freire não teria ludibriado tanta gente, nem influenciado indevidamente  todo o sistema educacional brasileiro, deformando não uma, mas várias gerações de pedagogos. Por isso, mesmo com base nos conceitos corretos e defensáveis que se pode encontrar seja em “Pedagogia do Oprimido”, seja também em “Pedagogia da Autonomia”, [7] não é possível aceitar a tese de que os equívocos destrutivos na educação brasileira, de que, aliás, Freire, é o “Patrono”, sejam atribuíveis a erros interpretativos de suas “boas intenções” (de que, ademais, “o inferno está cheio”). Freire, neste ponto, é tão endeusado ou canonizado no Brasil e até no exterior quanto o seu maior referencial teórico, ou seja, Karl Marx, a quem se procura justificar, falando em um socialismo real e um ideal, sendo o primeiro a deformação indevida das ideias do “Santo” ou “deus” e seus “livros sagrados”.

            O que ocorre é que, ao ocultar sua verdadeira face, Freire, no exercício de sua liberdade de expressão, acaba violentando essa mesma liberdade em relação às demais pessoas, chegando também a atingi-las em sua liberdade de pensamento e de consciência, porque o assentimento obtido por fraude não pode ser considerado válido. Este, aliás, é um princípio básico do Direito. E não se pode olvidar a lição de Neves quanto ao necessário “acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico”, [8] mesmo porque Freire defende uma politização do ensino. Seria de acrescer, como, aliás, contraditoriamente faz o próprio Freire, um imprescindível acoplamento também entre o Político e o Ético e entre estes e a Educação. Mas, que Ética pode haver no encobrimento de um manual revolucionário e ideológico como uma obra de Pedagogia? Isso mais se assemelha a uma infração do Código de Defesa do Consumidor!

            Afinal, a liberdade de expressão em um sentido amplo, “pretende desbloquear os canais de comunicação em todos os domínios da vida social, em nome da autonomia individual e coletiva e da voluntariedade da interação social”.  [9] Ora, como isso pode acontecer quando alguém disfarça um manual revolucionário de cooptação e doutrinação ideológica num suposto livro de “Pedagogia”?

            Na realidade a obra freireana é constantemente marcada por um discurso sedutor em que a verdade é misturada com a ideologia apregoada pelo autor. Por isso há muitas passagens que expõem boas orientações e afirmações coerentes e corretas sobre o ser humano e sua integração social e histórica.

            Porém, é preciso lembrar da advertência de Aires:

            “As mais das coisas admiram-se porque se não conhecem; justamente porque nelas há um rico véu que as cobre; vemos um exterior brilhante, que muitas vezes serve para esconder um abismo horrendo”. [10]

            As seguintes passagens do Prefácio de Ernani Maria Fiori são ilustrativas:

            “A consciência é essa misteriosa e contraditória capacidade que tem o homem de distanciar-se das coisas para fazê-las presentes, imediatamente presentes”. [11]

            “A ‘hominização’ não é adaptação: o homem não se naturaliza, humaniza o mundo. A ‘hominização’ não é só processo biológico, mas também história”. [12]

            “O mundo é espetáculo, mas sobretudo convocação”. [13]

            Com relação à primeira frase, o autor está em consonância, por exemplo, com o que já indicava Pontes de Miranda muito tempo antes, bem como vários outros autores que, na visão enviesada pela ideologia, seriam considerados como sustentadores intelectuais da superestrutura que conforma a sociedade burguesa.

            Freire aborda esse tema na obra comentada e também em “Pedagogia da Autonomia” diversas vezes e, em suma, reproduz lições acertadas como a seguinte:

“Concebido como feito de pontos – finitos, e não como linha, o presente dos animais (excluído o homem) não se liga ao futuro, se bem que tenha atrás de si, o passado, tal como se manifesta quando o animal reconhece alguém ou alguma coisa. O presente humano confina com o passado e com o futuro, tecendo-se em trama fina, compacta, com esse. (...). A esse enjaulamento no presente (natural para os animais), esse ‘ir até ali e só até ali’ na ligação dos fatos sucessivos e dos fatos de hoje a fatos futuros, é tão invencível que a conduta adquirida pelo animal ensinado nunca se prolonga para além da presença do domesticador ou dos seus substitutos”. [14]

            Trata-se de constatar o enorme salto do humano espiritual, cultural e histórico em relação ao animal. A capacidade humana de pensamento abstrato, obviamente não presente nos animais.

            A frase que trata do processo de “hominização” como superação do biológico e da mera adaptação para ingressar na capacidade de “humanizar o mundo”, já encontra no próprio Prefácio da obra de Freire, sua origem no pensamento de Ortega Y Gasset ao fazer referência ao “processo em que a vida como biologia passa a ser a vida como biografia”. [15] O mesmo se pode dizer da terceira frase, que fala do mundo que supera sua condição de espetáculo para o ser humano, convertendo-se em verdadeira “convocação” para agir.  Dentre outros também é possível encontrar exemplos desse pensamento, a nosso ver correto, no filósofo contemporâneo Michel Serres, que trata do que chama de “hominnescência”. [16] O autor em destaque fala de um “exodarwinismo”:

“Imagino que essa cultura exodarwiniana nasceu ao mesmo tempo que a primeira pedra polida desenvolvida pelo conjunto dessas aparelhagens. Isso provocou uma bifurcação em nossa evolução. O humano começou quando se separou dos demais habitantes do mundo e interveio, progressivamente é claro,  sobre esse acontecimento decisivo: originou-se do que os filósofos denominam natureza e os naturalistas coevolução. Desde o primeiro instrumento já não possuíamos mais o mesmo mundo que os animais. Começamos a construção de nossa própria habitação, que substitui o mundo”. [17] 

            Totalmente fora da matriz materialista – histórica que constitui o referencial teórico de Freire, é, contudo, possível encontrar quem comungue dessa verdade do homem como transformador do mundo que habita. Viktor Frankl e sua Logoterapia:

“A psicanálise tem sido criticada por seu chamado pansexualismo. Eu, para começar, duvido que esta censura jamais tenha sido legítima. Parece-me, entretanto, que existe um pressuposto ainda mais errôneo e perigoso, que eu chamo de ‘pandeterminismo’. Refiro-me à visão do ser humano que descarta a sua capacidade de tomar uma posição frente a condicionantes quaisquer que sejam. O ser humano não é completamente condicionado e determinado; ele mesmo determina se cede aos condicionamentos ou se lhes resiste. Isto é, o ser humano é autodeterminante, em última análise. Ele não simplesmente existe, mas sempre decide qual será sua existência, o que ele se tornará no momento seguinte.

Da mesma forma, todo ser humano tem a liberdade de mudar a qualquer instante. Por isso podemos predizer o seu futuro somente dentro de um quadro muito amplo de um levantamento estatístico relativo a um grupo inteiro; a personalidade individual, entretanto, permanece essencialmente imprevisível. A base para qualquer previsão estaria constituída pelas condições biológicas, psicológicas ou sociológicas. No entanto, uma das principais características da existência humana está na capacidade de se elevar acima dessas condições, de crescer para além delas. O ser humano é capaz de mudar o mundo para melhor, se possível, e de mudar a si mesmo para melhor, se necessário”. [18]

 

            Novamente, tanto na “Pedagogia do Oprimido”, como na “Pedagogia da Autonomia”, Freire vai insistir nesse tema do ser humano condicionado sim, mas jamais determinado. E nisso, juntamente com uma série de pensadores, tem absoluta razão. Todos esses pontos estão a demonstrar que mesmo numa obra deletéria em seu contexto geral informado por uma ideologização e um falseamento, há conteúdos aproveitáveis, até altamente aproveitáveis e corretos.

            Agora vejamos como a habilidade de mesclar verdade e falseamento para produzir uma dominação intelectual sobre o outro, para cativar, seduzir, é uma arte bem explorada por Freire. A seguinte passagem é extremamente relevante. Inicia com uma afirmação absolutamente verdadeira, apresentando uma crítica ao pensamento inflexível, tanto de esquerda como de direita. Com isso, traveste o discurso de verdade e imparcialidade para, em seguida, apresentar o revolucionário radical de esquerda como o único capaz de se aproximar do povo, de buscar um entendimento livre, de discutir ideias e dar a palavra ao “outro”, enfim, de ouvir e não somente discursar. Segue o texto:

“A sectarização, em ambos os casos, é reacionária porque, um e outro, apropriando-se do tempo, de cujo saber se sentem igualmente proprietários, terminam sem o povo, uma forma de estar contra ele. Enquanto o sectário de direita,  fechando-se em ‘sua’ verdade, não faz mais do que lhe é próprio, o homem de esquerda, que se sectariza e também se encerra, é a negação do si mesmo. Um, na posição que lhe é própria; o outro, na que o nega, ambos girando em torno de ‘sua’ verdade, sentem-se abalados na sua segurança se alguém a discute. Daí que lhes seja necessário considerar como mentira tudo o que não seja a sua verdade. ‘Sofrem ambos da falta de dúvida’.  O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em ‘círculos de segurança’, nos quais aprisione também a realidade. Tão mais radical quanto mais se inscreve nesta realidade para, conhecendo-a melhor, melhor poder transformá-la. Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com  ele, de que resulta o crescente saber de ambos. Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar”. [19]

            Note-se que o sectário de direita é apresentado como infenso ao debate por natureza, uma natureza má, demoníaca mesmo. Já o sectário de esquerda, só por ser de esquerda, ao ser sectário e não ouvir está procedendo a uma “negação de si mesmo”, isso porque é bom por natureza e somente foge de sua bondade intrínseca quando se desvirtua de seu caminho “santo”. Estes são pessoas maravilhosas, os outros são demônios. E as pessoas maravilhosas somente erram irrefletidamente, enquanto os outros são maus por natureza. A roupagem de imparcialidade e crítica também ao esquerdismo é transparente e deixa a descoberto, para o bom intérprete, a total parcialidade e intento de direcionamento do autor. Observe-se que não se pretende crucificar Freire ou qualquer pessoa por ser adepta e defensora desta ou daquela ideologia. Mas, então que o faça honestamente, sem jogos para pretender dar ares de imparcialidade aos argumentos. O mais assustador é que no seguimento da obra, sem qualquer pudor, Freire vai citar como exemplos de revolucionários radicais, abertos ao diálogo, democráticos, praticamente “santos”, senão equiparáveis a Cristo, pessoas como Lenin, Fidel Castro, Mao, Guevara entre outros líderes totalitários e assassinos!

            O que Freire leva a termo é aquilo que Fiss denominou de “efeito silenciador do discurso” inerente ao “discurso do ódio”. Ele demoniza tudo que se possa rotular de direita, ou seja, tudo que não siga a cartilha do marxismo, da dicotomização da sociedade em opressores e oprimidos, da luta de classes e da revolução cultural que antecede a armada. Ao demonizar o seu suposto “opositor”, Freire deslegitima qualquer afirmação que possa ser feita em um debate livre e aberto, já que o “demônio é o pai da mentira”. Não é possível discussão saudável nessa situação, de modo que a liberdade de expressão é usada para coartar a mesma liberdade de expressão do “outro”. Como ensina Fiss, o “efeito silenciador do discurso” se liga a “uma dinâmica psicológica mais refinada – uma dinâmica que desabilite ou desacredite um potencial agente discursivo (speaker)”. [20]

            Em nenhum momento menciona o fato de que é na Democracia como modelo de governo liberal que inclusive ele pode ser publicado, dizendo o que quiser, até mesmo com desonestidades intelectuais patentes. Fora desse contexto, estaria o próprio Freire correndo o risco de ir para a prisão, para o paredão e ainda ter suas obras censuradas, seja numa ditadura que se chama de direita ou num regime totalitário de esquerda que, para ele, é um desvio praticamente inusitado, quando, na verdade, é a única regra (uma regra sem exceções).

            Como bem lembra Machado, apenas uma sociedade democrática é “capaz de integrar comunicativamente diferentes vozes e perspectivas” com “possibilidades de absorver a conflitualidade e de operar a sua transformação pacífica”. [21]

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            Já foi citada neste texto a figura de Saul Alinsky. Pois ele, confesso agitador de esquerda, com honestidade intelectual, consigna em seu “manual” a necessidade de saber que o regime democrático é o único que possibilita a própria emergência de ideias e atos revolucionários em seu próprio seio:

“En nombre  del pragmatismo radical, no debemos olvidar que en nuestro sistema, com todas sus represiones, todavia podemos hablar alto y denunciar a la administración, atacar sus políticas, trabajar para construir una base de oposición política. Es cierto, existe ela acoso gubernamental, pero también existe una relativa libertad para luchar. Puedo atacar a mi gobierno, intentar organizarme para cambiarlo. Esto  es mucho de lo puedo hacer en Moscú, Pekín o La Habana. Recordad la reacción de la Guardia Roja a la ‘Revolución Cultural’ y la suerte de los universitarios chinos. Algunos de los violentos episosdios (como atentados o tiroteios en  salas de justicia) que hemos sufrido aqui habrían tenido como consequencia una purga radical y ejecuciones en masa en Russia, China o Cuba. Mantengamos la perspectiva”. [22]  

            Em geral não creio na estultice de Freire, mas muito mais em sua astúcia. Contudo, neste ponto do arrebatamento da alma por um sentimento de divindade totalmente injustificado pela realidade dos fatos históricos, enxergo uma característica típica da infantilidade dos que se situam em uma esquerda inflexível (e essa mesma infantilidade existe também numa direita igualmente inflexível, a endeusar certas pessoas e coisas).

            Pessoas contaminadas como Freire dificilmente percebem o que percebeu com acuidade Alinsky. Elas não se dão conta de que a Democracia liberal é o único sustentáculo de sua própria liberdade de ação e expressão. Não notam, como aponta Todorov que

“a democracia produz nela mesma, forças que a ameaçam, e a novidade de nossos tempos é que essas forças são superiores àquelas que a atacam de fora. Combatê-las e neutralizá-las é tanto mais difícil quanto mais elas invocam o espírito democrático e possuem, assim as aparências de legitimidade”. [23]

            Na Democracia liberal, e somente nela, é possível que indivíduos como Freire escrevam um livro de título “Pedagogia do Oprimido”, que é, na verdade, um manual revolucionário com referencial teórico e iconográfico (praticamente religioso) em figuras como Mao, Fidel Castro, Che Guevara, Lenin, entre outros que simbolizam o total reverso do que se possa chamar de Democracia.

            Outra passagem interessante em “Pedagogia do Oprimido” é aquela que, corretamente, se refere ao homem como ser inconcluso e conquistador diuturno da própria liberdade. Essa questão é retomada várias vezes na obra em questão e também faz parte da “Pedagogia da Autonomia”. Apenas a título de exemplo, vejamos:

“A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Não é ideia que se faça mito.  É condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos”.  [24]

 

            A passagem é praticamente inconteste. Até mesmo o poeta Fernando Pessoa já dizia há tempos em seu poema intitulado “Lisbon Revisited”:

            “Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer”. [25]

            É perfeito dizer que o homem é um ser incompleto. A incompletude é parte da humanidade do homem. Também é correto dizer que sua liberdade é conquistada a cada escolha que faz e que isso está umbilicalmente ligado à sua própria incompletude.

            Novamente o problema não está nesse ensinamento escorreito, está no uso que se faz dele para defender uma ação revolucionária nos moldes violentos que já demonstraram historicamente que somente destroem a própria liberdade do homem e que, ao contrário de apresentá-lo como ser incompleto, parte para uma conformação homogênea da humanidade a pretexto de justiça social, ferindo de morte a natureza humana mutável, diversificada e livre. Por mais que o autor pretenda defender uma “autonomia” dos oprimidos que seriam apenas conscientizados por atos de vontade própria não induzida, é fato histórico comprovado o resultado da ideologia que serve de base a todo o pensamento freireano.  A dicotomia entre opressores e oprimidos que pode até existir, é outra meia – verdade, apenas se acoroçoa, se agiganta quando os experimentos propostos por Freire são levados a termo. Se ao menos o autor apontasse os líderes totalitários reais como anti – exemplos, mas não o faz, os apresenta como ícones, como exemplos praticamente sacrossantos de liderança revolucionária! Ou mente deliberadamente ou é cego e não se apercebe da contradição gigantesca do que apregoa.

            Freire também aborda com uma lição equilibrada a questão do objetivismo x subjetivismo, propondo uma virtude mediana entre dois extremos ao modo aristotélico.[26]

“A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que essa passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade.

Confundir subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, e negar-lhe a importância que tem no processo de transformação do mundo, da história, é cair num simplismo ingênuo. É admitir o impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra ingenuidade, a do subjetivismo, que implica homens sem mundo”. [27]

            O que se pode objetar em relação a uma lição tão exata e equilibrada? Mas, novamente o problema é que toda a construção freireana é calcada num declarado marxismo. Ora, como se pode falar nesse equilíbrio entre o objetivo e o subjetivo quando sua base teórica é um pensamento utópico (que se nega como utópico, mas é), inclusive cuja aplicação foi desastrosa em relação à objetividade do mundo confrontada com os delírios solipsistas de um autor messiânico e absolutamente todos, todos os seus seguidores? O neoliberalismo e o marxismo são igualmente utópicos, idealistas, subjetivistas e contrastantes com o mundo da vida. [28] E Freire, para rechaçar o segundo, adota como referencial o primeiro!

            Segue a seguinte passagem interessante:

“É que não haveria ação humana se não houvesse uma realidade objetiva, um mundo como ‘não eu’ do homem, capaz de desafiá-lo; como também não haveria ação humana se o homem não fosse um ‘projeto’, um mais além de si, capaz de captar a sua realidade, de conhecê-la para transformá-la”. [29]

            Comparemos essa afirmação de Freire e também as antecedentes, com a exposição de um autor que faria suas barbas de agente revolucionário intelectual de esquerda à moda de Fidel arrepiarem até o último fio. Com o leitor, Ludwig von Mises, da Escola Austríaca de Economia:

“A ação humana é um dos instrumentos que promovem mudança. É um elemento de atividade e transformação cósmica. (...). É verdade que as mudanças produzidas pela ação humana são insignificantes quando comparadas com a ação das poderosas forças cósmicas. Do ponto de vista da eternidade e do universo infinito, o homem é um grão infinitesimal. Mas, para o homem, a ação humana e  suas vicissitudes são a coisa real. Ação é a essência de sua natureza e de sua existência, seu meio de preservar a vida e de se elevar acima do nível de animais e plantas. Por mais perecível e evanescente que todo esforço humano possa ser, para o homem e para  sua ciência é de fundamental importância”. [30]

“Enquanto todos os animais são incondicionalmente guiados pelo impulso de preservação de sua própria vida e pelo de proliferação, o homem tem o poder de comandar até mesmo esses impulsos. Ele pode controlar tanto seus desejos sexuais, como sua vontade de viver. Pode renunciar à sua vida quando as condições para preservá-la parecem insuportáveis. O homem é capaz de morrer por uma causa e de suicidar-se. Viver, para o homem, é resultado de uma escolha, de um julgamento de valor”. [31]

“O traço característico da natureza humana é o de buscar não apenas comida, abrigo e coabitação, como outros animais, mas, também, o de buscar outros tipos de satisfação. O homem tem desejos e necessidades especificamente humanos, que podemos chamar de ‘mais elevados’ do que aqueles que tem em comum com outros mamíferos”. [32]

            Perceba-se que não há diferença de fundo no que afirma Freire e naquilo que diz Mises. A única diferença é a exposição menos floreada e mais objetiva do segundo e sua posição clara e honesta intelectualmente em se mostrar um liberal e escrever um “Tratado de Economia”, analisando a natureza humana e sua relação com o mundo circundante e condicionante, mas jamais determinante. No entanto, a base das ideias expostas é exatamente a mesma. Acontece que são ideias liberais, o que torna Mises coerente com o que escreve e defende, enquanto que Freire, enclausurado em sua mente marxista e com seus ídolos patéticos, chafurda na mais profunda lama da contradição. Isso na medida em que defende ideais liberais, tão liberais quanto os de Mises, no que se refere ao homem como “ser no mundo”, mas tem como referencial teorias que somente geraram totalitarismo e redução de homens a modelos autômatos e pasteurizados.

            Até mesmo um dos ídolos sanguinários de Freire chega a ser mais virtuoso que ele, ao menos em termos de sinceridade. Lênin, como aduz Florestan Fernandes em apresentação à sua obra intitulada “Que fazer”?, dá à luz (ou às trevas) ao “marxismo – leninismo” no formato de “teoria revolucionária” e “prática revolucionária organizada”. [33] Pois, bem também Florestan Fernandes comete o que hoje se chama pelo neologismo de “sincericídio” ao afirmar que “o que Lênin faz com o marxismo só pode ser definido de uma maneira: ele converte o marxismo em processo revolucionário real” (grifo nosso). [34] Ora, então o que se viu acontecer historicamente não é uma distorção e sim a concreção de uma teoria e a obtenção de seus resultados catastróficos. Ademais, Lênin é bem direto ao afirmar com clareza solar que não crê na capacidade das massas operárias. As apresenta claramente como “massa de manobra”, de “doutrinação”, jamais esconde essa face de seu pensamento, conforme faz Freire ao propor uma “Pedagogia” que vai ser “construída junto” com o proletário oprimido. No entanto, Lênin, contraditoriamente, é um dos ícones volta e meia citados por Freire como exemplo de revolucionário canonizado!

            Vejamos o que diz a respeito literalmente o próprio Lênin:

“Os operários, já dissemos, não podiam ter ainda a consciência social – democrata. Esta só podia chegar até eles a partir de fora. A história de todos os países atesta que,  pelas próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência sindical, isto é,  à convicção de que é preciso unir-se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários etc. Quanto à doutrina socialista, nasceu das teorias filosóficas, históricas, econômicas elaboradas pelos representantes instruídos das classes proprietárias, pelos intelectuais. Os fundadores do socialismo científico contemporâneo, Marx e Engels, pertenciam, eles próprios, pela sua situação social, aos intelectuais burgueses”. [35]

 

            Por isso torna-se difícil compreender a atração quase erótica de Freire por Lênin e outros líderes totalitários, na medida em que contradizem diretamente tudo o que afirma acerca das relações entre os oprimidos proletários e a liderança revolucionária. O que Lênin, por exemplo, propõe claramente é um mero adestramento ou, no mínimo, uma doutrinação das massas operárias. Nada semelhante ao devaneio da “Pedagogia do Oprimido” em que o saber é construído em conjunto, onde a voz e a palavra são comunitariamente divididas como o pão na Santa Ceia! Seria cômico se não fosse trágico!

            Também trágico é ver que Lênin realmente é ao menos mais sincero, como já acima frisado. Ele diz claramente em sua obra que pretende um movimento que prepare, determine o início e a realização da “insurreição armada do povo” (grifos no original). [36]

            Mas, Freire, por seu turno, mitificou Lênin e não seguiu a sua única virtude que seria a de declarar-se como aquilo que verdadeiramente é e erigir uma obra com honestidade intelectual.  Em certo ponto Freire inicia apontando a impossibilidade de desenvolver uma “Pedagogia dos Oprimidos” sob o tacão dos opressores. [37] O raciocínio é logicamente impecável, desde que se aceitem essas divisões arbitrárias e tendentes ao genocídio muito ao gosto dos “ismos” ao longo da história (racismo, fascismo, comunismo, leninismo, nacional - socialismo etc.). Em todos os casos as motivações para matar se alteram, mas permanece a morte e a divisão em categorias (brancos e negros, oprimidos e opressores, burgueses e proletários, raça pura e raça impura etc.). Ao fomentar uma “luta de classes” opondo “oprimidos e opressores”, Freire não se dá conta ou se se dá não se importa com o fato de que inexiste “uma diferencia moral básica entre la guerra de clases y la guerra de razas, entre destruir una classe y destruir una raza”. Pois, foi dessa forma que “nació la práctica moderna del genocídio”. [38] Observe-se que afirmar que o raciocínio freireano é “logicamente impecável” nada tem a ver com sua correção. A lógica é um simples molde para o pensamento no seio do qual se podem adequar absurdos indefensáveis no plano da realidade fática. O silogismo (lógica) não é instrumento para a descoberta da verdade, ele vem depois, já no discurso analítico e expõe de forma inteligível o que foi dialeticamente descoberto (entendendo-se por dialética a discussão honesta em busca da verdade, com uso de argumentos em moldes aristotélicos e platônicos). É perfeitamente possível dizer com lógica impecável que: “Felix é um gato; todo gato voa; portanto Felix voa”. Trata-se de um absurdo diante da facticidade, mas o silogismo é perfeito.

            Pois então, se aceito a premissa da divisão das pessoas em oprimidos e opressores, é claro que os segundos não irão promover uma educação libertadora dos primeiros. Assim sendo, Freire é impecável sob o prisma lógico, o que lhe dá uma vantagem no convencimento dos desavisados, que não têm a capacidade de criticar essa divisão entre pessoas e seu potencial genocida.

            No seguimento o autor comentado faz mais uma afirmação lógica, qual seja: se a educação libertadora implica em poder político há uma barreira para sua implantação antes de promovida a revolução. Aqui está posta a base lógica (não necessariamente verdadeira, já que baseada em um preconceito dicotomizador da sociedade em oprimidos e opressores) para a sugestão insidiosa da revolução armada sob o manto de uma iniciativa “pedagógica” cheia de “boas intenções”. O que vem a seguir é mesmo uma pérola da alienação ideológica do autor e da eufemização marcante de seu discurso:

“A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão compreendendo-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação”. [39]

            Trocando em miúdos, bem miúdos e diretos, sem rodeios ou eufemismos, sem fingir que se acredita em uma educação libertadora na qual nada seja imposto, especialmente considerando os exemplos históricos escrachados: primeiro doutrinação e adestramento da massa de manobra; depois revolução armada, morte, coerção de dissidentes. Finalmente, supostamente o surgimento de um novo homem, moldado pelo milagre socialista ou comunista. Nessa fase já estamos nos contos de fadas, com a única diferença de que estes têm sempre final feliz. É de se indagar o que há de diferente, a não ser o rebuscamento emotivo e apelativo marcante do discurso freireano, daquele que apregoa uma suposta “revolução democrática de base popular” num primeiro momento, seguindo-se o controle estatal pelas forças revolucionárias “democráticas” (sic) e a final “transição para o socialismo”? [40] E a resposta é nada, ou melhor, há o fato de que Freire desenvolve um discurso enrustido, insidioso, daquele que, como hoje se diz popularmente, quer “sair do armário”, mas tem receio de chocar.

            De contradição em contradição, chega-se à clássica fórmula em que “os fins justificam os meios”, santificando-se os meios em prol de fins supostamente maravilhosos que levariam à construção de um “mundo melhor”. Nada que surpreenda, tendo em vista o referencial do autor:

“Consciente ou inconscientemente, o ato de rebelião dos oprimidos, que é sempre tão ou quase tão violento quanto a violência que os cria, este atos dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor”. [41]

            Será que é isso mesmo? Através da violência se chega ao amor? E talvez, por amor se pratica a violência? Será que Freire e outros revolucionários bem intencionados também acreditam que homens matam mulheres “por amor” e vice versa? Maior contradição não pode existir. Mas, isso faz parte de uma espécie de psicopatia que acomete esse pensamento revolucionário embasado na matriz marxista – leninista. O Paraíso Terrestre futuro justifica quaisquer atos praticados agora. É uma questão de teleologia que lhes parece divina, mas que é, em verdade, demoníaca.

            É verdade, sejamos justos, que em “Pedagogia da Autonomia”, Freire defende uma “ética universal do ser humano”, repudiando veementemente atos como o terrorismo. [42] Isso confronta com sua visão de caminho da violência para chegar ao amor. No entanto, mesmo em “Pedagogia da Autonomia”, usando seu método eufemístico, apregoa o cultivo de uma “raiva” (para não dizer a palavra exata que seria “ódio”). Cria uma gradação entre o que chama de “justa raiva”, a qual deveria ser incentivada pela educação e “raivosidade” como um meio termo que leva finalmente à “odiosidade”. Afirma que estes dois últimos deveriam ser evitados. Chega a dar como exemplo comparativo (absurdo) a atitude de Jesus Cristo contra os vendilhões do templo. [43] Apaga assim, a total diferença entre uma doutrina que apregoa uma revolução violenta, uma dominação pelas armas e a pregação de Jesus que sequer visava um reino terrestre. Obnubila a excepcionalidade do episódio que serve muito mais para demonstrar a mescla entre humanidade e divindade no Cristo, destacando um momento de fraqueza humana. Disso quer retirar uma regra que supostamente encontraria sustento nos evangelhos. Como se este fosse um livro que apregoa a “raiva” como caminho para a redenção humana. Portanto, é preciso analisar essa questão sob um ângulo mais amplo. Tanto a vida de Cristo não pode ser reduzida a um momento isolado, como as intenções e a obra de Freire não podem nos enganar com seus eufemismos que soam contraditórios numa interpretação sistemática.

            E a doutrinação continua em sua contradição disfarçada por eufemismos quando Freire passa a defender que os atuais oprimidos, ao tomarem o poder, terão de “pôr freios” nos atuais opressores. Não faz nenhuma restrição a esses “freios”. Apenas diz que esses “freios” não são o mesmo que “opressão”, uma “opressão”, por assim dizer, que apenas mudaria de polo. Afirma que isso que chama de “freios” (na verdade “opressão” e destruição da liberdade das pessoas), visa gerar uma “liberdade” (sic). A liberdade seria gerada por um ato que coarta a própria liberdade; não um ato que limita a liberdade de forma a preservá-la com respeito à razoabilidade e proporcionalidade, mas uma repressão sistemática da liberdade das pessoas. Freire está dizendo eufemisticamente e com desonestidade intelectual que um regime totalitário pode gerar liberdade e que essa suposta liberdade é a única verdadeira! [44] Isso não somente é absurdo, é assustador. Mas, não é surpreendente se voltamos ao referencial que embasa seu pensamento. Afinal, como destaca Johnson, Lênin (uma das grandes referências freireanas) afirmava que a “‘consciência revolucionaria’ era la única idea moral que debía aplicarse en la gigantesca maquinaria de massacre y crueldade que él había creado”. [45]

            Citando Erich Fromm, [46] Freire critica o falseamento do autêntico “agir humano”. Aponta o uso de técnicas que podem fazer com que o homem pense e sinta estar agindo, quando, na verdade, não passa de um teleguiado. Fromm, citado por Freire, descreve esse processo mediante a submissão de alguém a uma pessoa ou a um grupo com que possa identificar-se. Dessa maneira, uma participação meramente simbólica na vida dessa outra pessoa ou grupo cria a ilusão no homem submetido de que ele atua por si, quando, na realidade, “não faz mais que submeter-se aos que atuam e converter-se em parte deles”.  Ora, a denúncia dessa técnica é absolutamente verdadeira. No entanto, pode ser perfeitamente aplicada ao neoliberalismo tão atacado por Freire, como ao socialismo real, especialmente ao modo dos ícones, dos ídolos tão decantados pelo autor. O exemplo do pensamento de Lênin, afirmando claramente que o proletário não passa de massa de manobra, incapaz de tomar suas próprias deliberações, já exposto neste texto, é absolutamente contundente. Em que pode pensar Freire que sua “Pedagogia do Oprimido” é superior ao encantamento mórbido da propaganda neoliberal?

            Em meio a tudo isso ainda surge a manifestação de um comunitarismo ingênuo, tosco e apartado de qualquer contato com o mundo real:

“Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”.  [47]

Isso não passa de um jogo de palavras sem sentido algum, sem apoio na realidade. É claro que, mesmo no seio do modelo supostamente “pedagógico” de Paulo Freire, há o educador e o educando. Também é mais que óbvio que as pessoas se educam sim a si mesmas. Claro que sempre em contato com o mundo circundante e com os materiais de informação a que tenham acesso. Mas o ato de buscar esses materiais e de com eles formar seu entendimento é manifestação de autonomia que não necessariamente precisa se envolver com uma aprendizagem comunitária. Freire quer o impossível: autonomia sem ação fora do comunitário, autonomia sem individualidade, mas apenas uma individualidade diluída no comunitário, o que, na verdade, não é mais individualidade e somente Freire e seus prosélitos não percebem.

O sucesso de frases de efeito como esta se deve ao que Mathias Aires já ensinava há mais de trezentos anos:

“O engano vestido de eloquência, e arte, atrai, e a verdade mal polida nunca persuade”. [48]

Falando nisso, vejamos outra passagem tão bela, contendo alguma verdade, mas que logo se revela no livro de acordo com suas raízes e sua verdadeira face:

“Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia do amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens”. [49]

            Nossa, esse é Paulo Freire ou Jesus Cristo?

            É Paulo Freire, não se iluda o leitor. Uma nota de rodapé no texto original demonstra claramente isso. Ali Freire mostra quem são seus ídolos. Fala nos revolucionários como “seres de amor”, no ato revolucionário como “criador e libertador”, “um ato de amor”. Afirma que a revolução é feita pelos homens e para os homens “em nome de sua humanização”. O ápice vem com a citação de Guevara, dizendo que o “verdadeiro revolucionário é animado por fortes sentimentos de amor”. [50]

            Há uma patologia em quem cita Guevara como exemplo de “revolucionário amoroso”. Um assassino egocêntrico, marcado por uma vaidade doentia, pelo racismo, pela crueldade e pela covardia, não pode ser exemplo de amor. [51]

            O problema, a patologia de Freire e de muitos outros similares é que incorporaram de tal modo uma série de conceitos e preconceitos, de ilusões e iconografia falsificada, que isso passou a fazer parte constituinte de seu ser. Seu pensamento é praticamente o de um psicótico ou alucinado por drogas, mergulhado em um mundo próprio. Voltando aos ensinamentos de Aires:

            “Alguns sentimentos há, que se incorporam e unem de tal  forma a nós que vêm a ficar sendo uma parte de nós mesmos”. [52]

            As mais belas ideias, as mais lindas frases e mesmo suas intenções podem estar contaminadas por um mal radical inimaginável. É por isso que há passagens até mesmo de “Mein Kampf” de Hitler que se apresentam, isoladamente dos fatos históricos e do contexto, com aparência de benignas. [53]

            Observe-se a cegueira de Freire com seus ídolos quando critica a si mesmo logo adiante sem sequer notar que seu discurso, em razão dos próprios fundamentos, se torna autofágico:

“Dizer uma coisa e fazer outra, não levando a palavra a sério, não pode ser estímulo à confiança. Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo, é uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens é uma mentira”. [54]

            Ora, quem dá título a um livro com a palavra “Pedagogia” quando escreve um manual de doutrinação revolucionária é confiável? É sincero e verdadeiro? Quem apregoa o humanismo amoroso e apresenta Che Guevara como modelo pode ser levado a sério? Quem fala em Democracia e indica Cuba como paradigma histórico pode ser levado em consideração? É digno de mínima confiança? Quem defende a participação do povo na formação do próprio saber, sua manifestação livre, sua “autonomia” individual e coletiva e apresenta como paradigma líderes totalitários que trataram o povo como massa de manobra, de doutrinação heterônoma absoluta, senão de adestramento animal, pode ser respeitado? É claro que não.

            Em dado momento parece realmente que Freire sofria de esquizofrenia. Numa página afirma que Mao Tsé – Tung concentra em uma frase lapidar toda uma “teoria dialógica de constituição do conteúdo programático da educação”. [55] Não bastasse esse absurdo, na página seguinte, descreve o modelo de “educador humanista” que, supostamente, seria fulcrado nos ensinamentos de Mao:

“Para o educador humanista ou o revolucionário autêntico, a incidência da ação é a realidade a ser transformada por eles com os outros homens e não estes.

Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada são os dominadores”. [56]

            Então Mao Tsé – Tung promoveu uma “educação humanista” durante a chamada “Revolução Cultural Chinesa”? Quis transformar a realidade com os homens e não transformá-los? Não praticou doutrinação e dominação? Sinceramente, é demais ler um absurdo desses!

            Para quem quiser se informar e sentir um pouco de terror basta ler uma história real da Revolução Cultural Chinesa, narrada por Ting – Xing Ye. Ela demonstra como as pessoas eram tratadas abaixo do nível de animais. Ela expõe a personalidade perversa, violenta, cruel, totalitária e antidialógica de Mao e seus seguidores. Ali está exposto aquilo que absurdamente Freire apresenta como um paradigma de “educação dialogada” (sic). Mais uma vez seria muito cômico, se não fosse extremamente trágico. [57]

            Contradição paroxística unida a desonestidade intelectual. Alguém precisaria ter avisado Freire e a seus leitores e admiradores que, como adverte Kolm, “dois vícios não fazem uma virtude”. [58]

            Valendo-se do trabalho de Kosik, [59] Freire faz mais uma afirmação correta no bojo de sua obra de sedução:

“E é como seres transformadores e criadores que os homens, em suas permanentes relações com a realidade, produzem, não somente os bens materiais, as coisas sensíveis, os objetos, mas também as instituições sociais, suas ideias, suas concepções”. [60]         

            É claro e evidente que essa é uma afirmação verdadeira. O problema é que Freire enviesa todo seu constructo para o campo teórico do marxismo sem qualquer visão crítica, inclusive a respeito dos exemplos históricos das barbaridades que resultaram dessa escolha. Essa é uma característica típica das pessoas ideologizadas ao ponto de pretenderem adequar a realidade às suas teorias e não o reverso. Quando se fala em adequar a teoria à realidade, isso não impede mudança, como pretende Freire, impede a fantasia desvairada, a cegueira deliberada, só isso. Não é possível aderir, como fazem Freire e outros, à frase claramente jocosa de Albert Einsten: “Se os fatos não se adequam à teoria mude os fatos”. Isso simplesmente porque seria uma belíssima orientação para a impostura científica mais medonha e profunda. [61]

            Mas, Freire não está sozinho nesse caminho tortuoso. É claro que as teorias psicanalíticas de Freud podem ser criticadas. No entanto, essas críticas devem ter um mínimo de conteúdo psicanalítico e não somente político. Pois bem, dois ícones da literatura socialista, Deleuze e Guattari, criticam o Mito de Édipo e seu uso por Freud na psicanálise. Entretanto, o argumento central é o de que Freud “reduzia a libido plural da loucura (e da esquizofrenia) a um fechamento familiarista, de tipo burguês e patriarcal”. No livro “O antiédipo”, eles apresentam a figura de Édipo como um obstáculo imposto às forças produtivas, criativas e libertadoras do inconsciente, de maneira a aproximá-lo e aprisioná-lo em categorias burguesas, chamando a isso de “imperialismo de Édipo”. [62]

            Mais contundente ainda é o exemplo de Lissenko. Nunca é demais lembrar o exemplo cômico – trágico do semi – analfabeto técnico do Centro Experimental de Reprodução Vegetal Ordzhonikidze, Trofim Denissovith Lissenko (1898 – 1976), cujas estapafúrdias teorias sobre hereditariedade foram aprovadas e vedadas quaisquer refutações simplesmente porque se adaptavam à visão marxista do sistema político. Como bem destaca Watson, “o lissenkoísmo constitui a incursão mais flagrante e ofensiva da política no âmbito da ciência desde a Inquisição”. [63]

            É preciso lembrar sempre, como aduz Pracontal,  que

“a separação entre o poder político e o poder científico parece uma condição mínima para garantir não apenas a possibilidade de uma pesquisa autêntica, mas também as bases da democracia”. [64]

            Sobre a relação entre o povo, sua consciência e a propaganda, os meios de comunicação, a mídia em geral, Freire é certeiro:

“Que o povo então desenvolva o seu espírito crítico para que, ao ler jornais ou ao ouvir o noticiário das emissoras de rádio, o faça não como mero paciente, como objeto de ‘comunicados’ que lhes prescrevem, mas como uma consciência que precisa libertar-se”. [65]

            Mais uma vez o texto isolado de Freire não merece a menor crítica. O problema não está no texto e sim no contexto. Porque o referencial teórico do autor é claramente de um pensamento de esquerda que prima pelo totalitarismo. Dizer que o povo tem de desenvolver seu senso crítico diante da mídia e, ao mesmo tempo, defender ideias socialistas e comunistas, oriundas de uma marxismo que congrega como ícones indivíduos como Fidel Castro, Mao, Lênin dentre outros, é , no mínimo, contraditório. A propaganda falseada, a alienação da população subjugada é marca indelével dos regimes que resultaram de toda a base do pensamento freireano. E já era assim quando ele escrevia seu livro. Não é dizer que algo novo ocorreu, que a coisa degringolou depois da publicação do autor que não poderia ser um vidente. Não. Quando Freire escrevia sua obra, os resultados de sua referência teórica estavam escancarados, somente não enxergando um cego deliberado, um idiota – útil ou uma pessoa de absoluta má fé. Qual opção serve a Freire, cabe a cada um formar uma opinião. Para este subscritor, a hipótese do idiota – útil está descartada porque se trata de uma pessoa muito articulada e com pleno acesso à informação, além de grande capacidade de sedução pelo discurso melífluo.

            Não é possível crer que Freire não tivesse ciência de que suas afirmações sobre conscientização e espírito crítico não poderiam ter campo fértil na ideologia em que eram encrustadas. Dissertando sobre o desencanto da União Soviética, Aleksievitch descreve com maestria o choque de realidade ocorrido com a abertura dos arquivos pela “perestroika”, quando somente então  o povo soviético veio a ter ciência da história que lhes era ocultada, sonegada pelo regime totalitário. [66]

            Por seu turno, Johnson descreve o controle de notícias, o fechamento de jornais, a abolição de qualquer liberdade de imprensa e expressão que sustentaram o governo de Lênin. [67] Também expõe o fato de que milhares de pessoas foram assassinadas após a tomada do poder pelos revolucionários, mas que os detalhes dessas atrocidades talvez jamais sejam plenamente conhecidos porque foram sepultados “por la historiografia soviética debajo de una enorme montaña de mentiras”. [68] O que Lênin, um dos ídolos de Freire, ofertava às pessoas em termos de consciência e liberdade era o seguinte: “silencio aquiescente, la cárcel o el exilio”. [69] Finalmente é destacável que o autor apresenta Hitler ao lado de Lênin e Stalin como destacados profissionais no vício mais radical do século XX, qual seja, a engenharia social, baseada na ideia de que é possível usar os seres humanos como se fossem ladrilhos ou tijolos de uma construção. [70]

            Como é possível que alguém que tem como ídolos, como referencial teórico, tais pessoas e ideias, venha falar e defender uma abertura de consciências dos indivíduos? Seria mais coerente se defendesse a literal abertura física das cabeças das pessoas a fim de introduzir em seus cérebros os pensamentos de uma elite revolucionária e supostamente detentora da clarividência de um mundo mais justo em seus moldes.

            Não há como compreender que Freire tenha por ídolos e referenciais esses indivíduos e pensamentos. Não há como entender por que então não indica como referência um sujeito como John Stuart Mill, o qual defende claramente a controvérsia, a discussão livre de ideias. Afirma Mill

“ser necessário para o desenvolvimento da personalidade de alguém que as opiniões desse sujeito não lhe sejam simplesmente passadas, mas que sejam opiniões próprias. De fato, segundo Mill, uma pessoa formada pela sociedade é menos do que completamente humana: ‘Quem deixa que o mundo, ou a sua parte do mundo, escolha o seu plano de vida no seu lugar não necessita de qualquer outra faculdade além da faculdade simiesca de imitação’.  E mais: ‘Embora os costumes possam lhe parecer bons e adequados, não obstante conformar-se ao costume meramente como costume não educa ou desenvolve o sujeito em nenhuma das qualidades que comportam as qualidades distintas do ser humano. As faculdades humanas de percepção, julgamento, sentimento discriminativo atividade mental e até mesmo preferência moral só são exercitadas quando se faz uma escolha. Quem faz algo somente porque é costume não faz escolha alguma. Não ganha prática quer de discernir quer de desejar o melhor. As capacidades mentais e morais, assim como as musculares, só se aperfeiçoam se forem estimuladas. Essas faculdades não são exercitadas ao se fazer algo meramente porque os outros o fazem, tampouco quando se crê em algo também somente porque os outros o fazem. Se as bases de uma opinião não são concludentes para a razão do indivíduo, essa razão não pode ser vitalizada, mas antes se verá enfraquecida. E se os motivos de um ato não forem tais que se coadunem com os sentimentos e o caráter da pessoa (quando não estejam em causa afeição e direitos alheios), esse ato torna os sentimentos e o caráter inertes e entorpecidos, em vez de ativos e energéticos’”. [71]

            Dizia acima que a escolha “libertária” de Freire é incompreensível e inconciliável com suas referências pessoais e teóricas. Afirmava não ser inteligível seu desprezo por liberais como Mill, mas é sim possível explicar suas preferências. Ela decorrem obviamente por uma opção pela esquerda, uma opção cega e ideologizada. Note-se que Mill tem em comum com Marx o externar de uma preocupação com “a perda da individualidade” (no linguajar de Marx, com a “alienação”). [72] Portanto, trata-se de simples escolha, onde não importam os resultados desastrosos e desumanos da aplicação da teoria na prática. Freire, como muitos esquerdistas radicais, está contaminado e procura contaminar o maior número possível de pessoas com o que se pode chamar de “teletubismo mental”, a lembrar aqueles bonequinhos coloridos do programa infantil que repetiam “ad nauseam” a expressão “de novo”... “de novo”. A experiência já demonstrou historicamente o desastre da ideologia, mas o ideologizado tem sede de poder para tentar “de novo”. Daí, como bem expõe Dalrymple, “o amor pela verdade, embora exista, é geralmente mais fraco do que o amor pelo poder”. [73] E, assim sendo, “as pessoas retiram das doutrinas filosóficas aquelas consequências que estão de acordo com os seus desejos profundos (melhor seria dizer os menos rasos)”. [74]

            É nesse contexto que Freire é capaz de, com a mais absoluta desfaçatez, de apresentar como referência o trabalho de Lênin em sua obra “Que fazer”, [75] para expor um modelo de formação de pensamento revolucionário, no seio do qual “reflexão e ação” incidam “sobre as estruturas a serem transformadas”. E nesse movimento, embasado na teoria leninista, os líderes não seriam “homens do quefazer” e as “massas oprimidas” não seriam “reduzidas ao puro fazer”. Afirma o autor:

“Não é possível à liderança tomar os oprimidos como meros fazedores ou executores de suas determinações; como meros ativistas a quem negue a reflexão sobre o seu próprio fazer. Os oprimidos, tendo a ilusão de que atuam, na atuação da liderança, continuam manipulados exatamente por quem, por sua própria natureza, não pode fazê-lo”. [76]

            Palavras como contradição e incoerência são ainda fracas para descrever a absurdidade da ligação entre a ideia libertária contida no pensamento advogado por Freire e a referência totalitária em que se baseia. Lênin literalmente aduz em seu trabalho citado por Freire que não acredita numa força que emane do “despertar das massas” ou do “proletariado industrial” e sim na iniciativa dos “dirigentes revolucionários” aos quais cabe heteronomamente influir, doutrinar ou mesmo adestrar as massas. Lênin aponta essa crença (que é a de Freire) no potencial de autonomia das massas, do proletário ou, no vocabulário freireano, dos “oprimidos”, como uma pura ilusão que marcou apenas o início equivocado do direcionamento do movimento revolucionário.  [77] Das duas uma: ou Freire jamais leu a obra de Lênin ou é um “poeta”, já que “todo poeta é um fingidor”. [78]

            Mas, as contradições seguem de forma descomunal. Afirma Freire:

“A verdadeira revolução, cedo ou tarde, tem de inaugurar o diálogo corajoso com as massas. Sua legitimidade está no diálogo com elas, não no engodo, na mentira”. [79]

 

            Bem, é inegável que uma legítima revolução somente poderia decorrer desse diálogo com as massas e jamais decorrer do “engodo ou da mentira”. Aliás, nada pode se legitimar na “mentira”, no “engano”, na “fraude”. Pois é, mas a passagem de Freire acima transcrita termina com uma nota de rodapé em que apresenta como paradigma um trecho dos famigerados discursos de Fidel Castro, em meio ao qual o líder totalitário afirma que “nunca foram armas da revolução a mentira, o medo da verdade, a cumplicidade com qualquer ilusão falsa, a cumplicidade com a mentira”. [80] Maior mentira que essa somente pode contar aquele mentiroso que diz que nunca mentiu. Aliás, esse é exatamente o caso. Ou Freire é outro contador de estórias fabulosas ou só conhece o Fidel de Hollywood. [81]

            E Freire prossegue com uma ladainha de “pensar com as massas”, de fazê-las pensar [82], olvidando que o próprio termo que tanto gosta de usar (“massas”) pressupõe algo moldável ao bel prazer de mãos estranhas. O autor em destaque e sua obra são apenas mais um dos muitos exemplos de “revolucionários” que mais não fazem do que cair no “lugar – comum” de uma suposta “revolução” que já se operou da mesma forma ao longo da história diversas vezes e que é novamente abraçada com entusiasmo pueril, sem preocupação com qualquer correção de rota. [83]

            É essa cegueira para com o passado e essa ilusão de ser visionário de um futuro brilhante a justificar qualquer ação atual (por mais vil que possa parecer) que permite a Freire descrever exatamente o que fizeram historicamente seus ídolos e sua ideologia de base, apresentando, concomitante e contraditoriamente, uma crítica ao totalitarismo que somente enxerga em seu pressuposto de luta de classes ou confronto entre “opressores e oprimidos”:

“Isto significa deixar-se cair num dos mitos da ideologia opressora, o da absolutização da ignorância, que implica a existência de alguém que a decreta a alguém.

No ato dessa decretação, quem o faz, reconhecendo os outros como absolutamente ignorantes, se reconhece e à classe a que pertence como os que sabem ou nasceram para saber. Ao assim reconhecer-se têm nos outros o seu oposto. Os outros se fazem estranheza para ele. A sua passa a ser a palavra ‘verdadeira’, que impõe ou procura impor aos demais. E estes são sempre oprimidos, roubados de sua palavra.

Desenvolve-se no que rouba a palavra dos outros uma profunda descrença neles, considerados como incapazes. Quanto mais diz a palavra sem a palavra daqueles que estão proibidos de dizê-la, tanto mais exercita o poder e o gosto de mandar, de dirigir, de comandar. Já não pode viver se não tem alguém a quem dirija sua palavra de ordem”. [84]

            Parece desnecessário retomar a absoluta contradição existente entre o discurso freireano acima transcrito e o pensamento e, principalmente, a conduta prática de seus ícones e referências teóricas.

            Entretanto, nem o céu é o limite. Freire fala da “Revolução Cultural” que seria possível num sentido “pedagógico” e “dialógico” que deveria marcas todas as suas fases. Esse diálogo seria um meio muito eficaz para evitar a institucionalização do “poder revolucionário” em forma de “burocracia contrarrevolucionária”, a qual representaria a feição reacionária de uma revolução. [85] E Freire está certo. Entretanto, seu pensamento é baseado nas diretrizes de ninguém menos que Mao Tsé – Tung! Será possível que o autor realmente acreditava que a “Revolução Cultural” chinesa foi realizada e mantida por meio do diálogo, da ação comunicativa democrática? Será que ele nunca leu o que pensava seu ícone Lênin a respeito, por exemplo, da “liberdade de crítica”? Pois bem, para Lênin, a “liberdade de crítica” significa apenas uma brecha para o “oportunismo” apto a minar as conquistas revolucionárias. [86] Ou seja, as referências teóricas de Freire entendem a liberdade de crítica, o diálogo como a liberdade de pensar tal qual é determinado pelo poder central e o diálogo como um monólogo gritado autoritariamente nas orelhas de todos.

            Mas, Freire adora citar Lênin:

“E quanto mais a revolução exija a sua teoria, como salienta Lênin, mais sua liderança tem de estar com as massas, para que possa estar contra o poder opressor” (primeiro grifo nosso). [87]

            Seria cômico se não fosse trágico voltar Freire a Fidel Castro para falar de “liderança dialógica”, sem qualquer espírito critico para enxergar que uma ditadura (a de Batista) foi simplesmente substituída por outra ainda mais sangrenta e duradoura:

“A liderança de Fidel Castro e de seus companheiros, na época chamados de ‘aventureiros irresponsáveis’ por muita gente, liderança eminentemente dialógica, se identificou com as massas submetidas a uma brutal violência, a da ditadura de Batista”. [88]

            E a situação chega ao cúmulo do absurdo quando Guevara é apresentado como modelo de humildade e capacidade de amar em comunhão dialógica com o povo! Para arrematar atribui a Che uma “linguagem às vezes quase evangélica”! [89]Somente em leituras enviesadas sobre Che Guevara é que se poderia encontrar uma imagem invertida como esta de um indivíduo que determinava fuzilamentos sem qualquer pudor, que manifestava um racismo e elitismo terríveis mesmo diante de seus supostos “companheiros”. [90] Freire nos deixa em dúvida entre a mentira deliberada e a ingenuidade infantilizada nesses momentos inacreditáveis de seu trabalho.

            Entretanto, em alguns momentos transparece o lado sombrio do texto e do espírito de Freire, um idoso de barbinhas brancas e palavrório melífluo:

“A revolução é biófila, é criadora de vida, ainda que, para criá-la, seja obrigada a deter vidas que proíbem a vida”. [91]

            Agora fica bem fácil perceber a razão da afinidade de Freire com indivíduos e pensamentos como os de Lênin, Mao, Guevara, Fidel entre outros. Todos são atingidos pela mesma psicopatia que domina todo aquele que crê numa utopia futura e justifica quaisquer atos bárbaros no presente em nome da glória de um mundo melhor. Só que esse “mundo melhor”, nunca vem. O máximo que ocorre é a criação de “paraísos artificiais” que mais se assemelham a infernos na Terra. O que Freire está dizendo é o que dizem todos seus ídolos: é preciso matar muito para abrir caminho para a vida! Que coisa linda e cheia de lógica, impregnada pelo princípio da não contradição, não é?

            A designação “psicopata” acima utilizada pode parecer por demais agressiva. Mas, não é. Trata-se apenas e tão somente de não utilizar métodos eufemísticos como faz Freire e dizer o que deve ser dito às claras.

            Lobaczewski, em estudo aprofundado, comprovou a adequação do termo à situação anteriormente descrita:

“No psicopata, um sonho emerge como um tipo de utopia de um mundo ‘feliz’ e de um sistema social que não os rejeite, nem os force a se submeter a leis e costumes cujo significado é incompreensível para eles. Eles sonham com um mundo no qual seu modo simples e radical de experimentar e perceber a realidade fosse o modo dominante, onde eles poderiam, é lógico, garantir segurança e prosperidade. Nesse sonho utópico, eles imaginam que aqueles ‘outros’, diferentes, mas também tecnicamente mais habilidosos do que eles, deveriam ser colocados para trabalhar de forma a atingir esse objetivo para os psicopatas e outros do seu tipo. ‘Nós’ , eles dizem, ‘afinal de contas,  criaremos um novo governo de justiça’. Eles são preparados para lutar e para sofrer pelo bem desse novo mundo corajoso e, também, é claro, para infligir o sofrimento sobre os outros. Essa visão justifica matar as pessoas, cujo sofrimento não lhes causa compaixão, porque ‘eles’ não são exatamente da mesma espécie” (grifo final nosso). [92]

            A verdade é que muitos “ismos” são assim erigidos por seus mentores pela criação de antagonismos que justifiquem a eliminação de pessoas: judeus e alemães; brancos e negros; católicos e protestantes; muçulmanos e o resto; burgueses e proletários e, finalmente, “opressores e oprimidos”, dentre outras dicotimizações sanguinárias.

            Nessa senda de racionalização e busca de justificação para as mais variadas absurdidades, Freire segue a linha do que chamamos de “nominalismo mágico” ou que também poderia ser designado pela palavra “logomaquia”. Chama de “ideologia” aquilo que quer que seja “ideologia” e dá um nome diverso para a “sua” ideologia, designando-a como uma “forma de ação cultural”. Senão vejamos:

“Se para manter divididos os oprimidos se faz indispensável uma ideologia da opressão, para a sua união é imprescindível uma forma de ação cultural, através da qual conheçam o porquê e o como de sua ‘aderência’ à realidade que lhes dá um  conhecimento falso de si mesmo e dela. É necessário desideologizar”. [93]

            É pitoresco ver Freire usando o neologismo “desideologizar” quando pretende apenas fazer a troca do que chama de uma “aderência” a uma ideologia por uma “aderência” a outra, que denomina, para sua comodidade, de “ação cultural”. [94]

            Essas foram as considerações julgadas necessárias para uma visão crítica da obra de Paulo Freire, especialmente tendo em vista a denúncia da contradição absoluta entre seu referencial teórico e pessoal e as ideias que aparentemente apregoa.

            Já prevendo a objeção recorrente de que as referências às condutas dos indivíduos e aos resultados históricos práticos de suas ideologias constitui um argumento “ad hominem”, deixo consignado que, como o próprio Freire alega com razão, a teoria e a práxis não podem ser apartadas. As condutas e os resultados daquilo que um homem ou um grupo faz não podem ser separados arbitrariamente das ideias que fomentaram essas condutas e resultados. É simplesmente impossível e indesejável, porque falso e artificial, estudar uma teoria política qualquer de forma asséptica, separando-a cuidadosamente de seus efeitos e seus feitos históricos positivos ou desastrosos.

 

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

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