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Vida (in) comum e (des) amor conjugal: os «demônios» da ruptura

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Agenda 19/02/2016 às 13:10

A promessa de aprender a arte de amar também é real e factível quando cada sujeito encontra seu proveito na existência do outro, não em sua supressão.

Vida (in) comum e (des) amor conjugal: os «demônios» da ruptura

Atahualpa FernandezÓ

Marly FernandezÒ

“Amor mío, no te quiero por vos ni por mí ni por los dos juntos, no te quiero porque la sangre me llame a quererte, te quiero porque no sos mía, porque estás del otro lado, ahí donde me invitás a saltar y no puedo dar el salto, porque en lo más profundo de la posesión no estás en mí, no te alcanzo, no paso de tu cuerpo, de tu risa, hay horas en que me atormenta que me ames,... me atormenta tu amor que no me sirve de puente porque un puente no se sostiene de un solo lado. J. Cortázar

Nenhum procedimento legal, nenhuma norma ou ação judicial poderão ser jamais o bastante velozes como para seguir de perto o momento tremendo em que um casal decide romper seu matrimônio, porque a verdadeira “causa” (s) da ruptura precede em muito tempo a decisão de divociar-se/separar-se. E quando esta chega, nem Deus sabe o que fazer.

Da situação anímica que impulsou a promessa de duas pessoas a permanecerem unidas “por todos os dias de suas vidas” não somente não resta nada, senão que em ocasiões se transforma em um verdadeiro ninho de egoísmo insano e agravos recíprocos, com consequências que chegam às vezes à agressão moral (física) e/ou ao sofrimento desnecessário. Um acúmulo de cinzas arrastadas pelos silenciosos e assoladores ventos da discórdia. Os exemplos gritam e os números cantam.

Em determinadas ocasiões, matrimônios contaminados pela busca da novidade: sexo novo, amores novos, uma nova visão do mundo, uma nova «super-família-mais-unida», um novo e bonito começo antes que seja demasiado tarde “para ser feliz”. Um ato de esperança![1] Em outras, a simples consciência de uma convivência radioativa que leva à ruína os despojos de uma vida frustrada antes da retirada definitiva. Com frequência um dos cônjuges chega a odiar ou menosprezar a quem amou em outra época. Uma pessoa que no passado produziu uma profunda emoção positiva, agora se apresenta como proporcionalmente negativo e o sentimento atual, motivado pela desleal memória, se incumbe de exagerar tudo o que resulta inaceitável.[2]

Embora ansiemos a continuidade, a pugna psicológica, a dor provocada pelo desafeto e/ou a indiferença recíproca simplesmente amplificam as acumuladas ofensas que minaram pouco a pouco, mas de modo irreversível, por falta de confiança na emenda mútua, a harmonia do casal. Na mente dos protagonistas, a história do matrimônio é reescrita como um estado destinado ao fracasso e o amor um ingênuo “espelhismo”. Sobram as palavras e a caída revela a evidência de que a vida nunca é como inquietamente a sonhamos. É o momento de remediar os sonhos e as otimistas promessas de amor eterno que a realidade se encarregou de aniquilar. É o momento de armazenar na mente a dor terrível pelo sucedido, e com ela a angústia de sentir-se desnudo ante a própria insegurança e o arrependimento; é o momento da ruptura, e com ela o abandono da asfixiante soga da dependência emocional.

Mas a vida segue, a vida cambia e, de quando em quando, a vida olvida. Agora é hora de encontrar culpados, de ruminar os lamentos, de enfrentar-se à guerra interior contra as próprias paixões, de reflexionar sobre os motivos da separação, de “reiniciar”, de não olvidar em que se converteu nosso mundo e «por que», de suspender a evidência de que sobre as razões dos demais só se pode especular e de olvidar que nunca existe uma única causa, senão um conjunto de contradições, um “nexus” ou confluência de motivos para uma atitude dificilmente discernível (incluindo a inexistência de motivos que impediriam o corrido em uma relação exigente cognitiva e emocionalmente).[3]

E dado que o ser humano, sempre complicando a vida, é uma fabulosa máquina de fabricar motivos (e a memória uma história subjetiva maleável que nos dizemos a nós mesmos), os «heróis» e/ou «heroínas» de uma relação agonizante, guiados preponderantemente pelo incessante fluxo de intuições e emoções, não são capazes de dar-se conta de que, ao ver uma única causa possível (o «outro»), já não buscarão mais explicações. Imersos em uma experiência vital concreta hostil, se excedem em seu entusiasmo autocomplacente e se tornam extremamente sensíveis ao anelo de ver pautas onde só há ruído aleatório, de encontrar relações causais onde não existem e de entregar-se sem reservas ao irracional medo do desconhecido; quer dizer, catastroficamente incapazes de conceber sequer a possibilidade de estarem equivocados em seus diagnósticos e prognósticos.

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É um fato conhecido que a intuição humana é uma guia da realidade notoriamente pobre[4]. Também é deveras sabido que não julgamos igual os atos dos demais e os próprios, que vemos muito bem “la paja en el ojo ajeno pero no la viga en el propio”. Sofremos de uma grande quantidade de vieses cognitivos que distorcem nossa visão do mundo e de nós mesmos. Somos cegos aos nossos próprios equívocos, tendenciosos em nossas avaliações, e muitas vezes não serve de nada que nos expliquem, porque seguiremos pensando o mesmo[5]. Ademais, está o que se conhece como «erro fundamental de atribuição»: uma assimetria - demasiado recorrente em relações conjugais - na atribuição da causa quando estamos considerando a conduta alheia em oposição à nossa própria.

A ideia fundamental é que, ao intentar compreender o comportamento dos demais, as pessoas tendem a atribuir à conduta observada uns fatores de personalidade, em contradição às características das situações. Ao fim e ao cabo, é fácil explicar o comportamento dos demais em termos de personalidade (tanto no que se concerne aos traços relativos ao «caráter» como os vinculados com o «temperamento»), especialmente quando os conceitos e os correlatos de nossas «teorias da personalidade» intuitivas não estão bem definidos (por exemplo: «Sabia que faria isto porque é uma pessoa muito egoísta, um canalha pervertido»).

Por outro lado, quando interpretamos nossas próprias ações, costumamos explicá-las desde uma perspectiva das circunstâncias em que nos encontramos (por exemplo: «Explodi porque me encontrava em uma situação insuportável e baixo muito stress»). Somos sempre vítimas das circunstâncias; os demais, vítimas de uma personalidade viciada e/ou de um caráter débil ou deformado.

A personalidade/caráter rege a conduta dos demais, mas a situação o faz com a nossa. Assim que ao tratar de compreender ou quando penso nas atitudes de meu companheiro (a) percebo que sua personalidade destaca sobre um fundo de diferentes situações, isto é, não tenho nenhum problema para julgar que seu comportamento se baseia fundamentalmente em um determinado tipo de temperamento ou tendências que contribuem à incoerência das pautas de sua vida emocional, de seus pensamentos e de seus atos. Ao tratar de compreender ou explicar minhas próprias ações percebo os câmbios das circunstâncias destacados sobre o fundo estável e fiável de meu caráter, de meu «eu»[6]. Minha ablepsia unicamente se aplica a meus próprios motivos e atos, não aos dos demais.

Em outras palavras, “não existe o bem e o mal, só meu bem e vosso mal” (L. Bruce): miramos em nosso interior e vemos objetividade, miramos em nosso coração e vemos bondade e honradez, miramos em nossa mente e vemos racionalidade, miramos a nossas crenças e desejos e vemos a realidade, miramos a nossas razões, motivos e preferências e vemos infalibilidade. Tendemos a confundir nossos modelos da realidade com a realidade mesma. Como vítimas inocentes dos estragos produzidos pelas circunstâncias, o nosso é o mundo verdadeiro, evidente e normal (a despeito de todo e qualquer indício em contra); desquiciado, egoísta, falso, ilusório, excêntrico, profano, sacana, infiel, disparatado ou ao menos estúpido é o mundo de nosso cônjuge: «Por que meu companheiro (a) não é, nem nunca foi, tão razoável como eu?».

Mas há algo mais. Esta forma de pensamento flácido, esta tendência a dar as explicações que necessitamos e de justificar favoravelmente o que fazemos, pensamos, elegemos e decidimos, tem uma série de consequências no que à coexistência e à dissolução se refere, entre elas «três» muito frequentes suposições sobre os vícios e os desacertos conjugais do «outro»: «suposição da ignorância», «suposição da idiotez» e «suposição da maldade». (K. Schulz)

Na prática, essas suposições, esses «demônios interiores» da ruptura - que vamos comentar (brevemente) à continuação-, contanto que entrem a fazer parte do nosso sentido de identidade, não somente geram a impressão subjetiva de que questioná-las é o mesmo que questionar nossa própria identidade, senão que, quanto mais são desafiadas pela evidência contraditória, mais se fortalecem. O que é uma verdadeira lástima, já que perder algo de controle sobre nossa identidade, por muito pequena que seja essa perda, tem uns efeitos drásticos (e algumas vezes dramáticos) em nossas relações pessoais. Avancemos, pois.

A primeira é a «suposição da ignorância». Seguros de que nossas crenças e intuições se baseiam em fatos concluímos que se nosso cônjuge não está de acordo com o que pensamos é porque simplesmente não está interessado, não esteve atento aos compromissos da relação ou se nega intencionalmente a ver a informação adequada. Desse modo, construímos resolutamente uma visão reduzida do mundo, com muito poucas peças, mas com uma confiança e uma coerência totalitárias, a maioria das vezes por mecanismos inconscientes, que só servem para fomentar ainda mais um entorno (mantido ativamente) de temporais conjugais que resultam impossível capear.

Quando a «suposição da ignorância» nos falha, e nosso cônjuge mantém seus desacordos com nossas crenças depois de haver sido iluminado e ilustrado sobre o problema, passamos a aplicar a «suposição da idiotez». Concedemos que nosso cônjuge-oponente conhece os fatos, mas não tem cérebro para compreendê-los. Chegado a este ponto, pretender que as desavenças, as discussões e os diferentes pontos de vista avancem cumprindo as normas de etiqueta da racionalidade dialógica é uma tremenda ridiculez. Por quê? Porque estamos negando que nosso rival possua as mesmas faculdades intelectuais e morais que nós temos e repudiando o valor e o significado de suas idiossincrásicas experiências de vida. É sempre melhor pensar que nossa infinita perspicácia nos libera da tediosa tarefa de escutar suas estupidezes e passar diretamente a adivinhar seus pensamentos e/ou a condenar seu ego aos grilhões do inferno.

E quando vemos que não é um problema de ignorância, nem de inteligência, então passamos a terceira e mais destrutiva das suposições: a «suposição da maldade». Nosso adversário não é ignorante nem tonto, mas deu as costas deliberadamente à verdade: é mau. Ao não habitar nosso modelo do mundo, ao não compartir nossa visão de como são as coisas e/ou ao errar em ver os fatos como nós os vemos, o cônjuge-inimigo está minando nossa existência e ameaçando-a com sua malvadeza: “Con todo lo que yo hice por ti, ahora ¿me pagas así?” (e nós, logicamente, supomos que representamos a mesma ameaça para ele). E uma vez que todas as decisões que tomamos se baseiam no que sentimos e que tudo o que sentimos se baseia no que pensamos, acabamos não somente convencidos de que não há mais que uma maneira correta de ver a realidade - a saber, a nossa –, senão que também alçamos a mirada desdenhosa por encima de nosso perverso desafeto, sem sequer tomar a cautela de ver a superfície sobre a qual caminhamos.

Claro que dar e receber explicações mágicas sobre a realidade é parte de nossa vida cotidiana (inclusive quando as coisas ocorrem sem razão alguma). São formidáveis à hora de oferecer-nos consolo, esperança, potenciar nossas crenças e evitar as dissonâncias cognitivas que não estamos dispostos a aceitar[7]. O único inconveniente é que a mente humana, quando não tem o subministro de realidade adequado, não só cria suas próprias alucinações compensatórias, senão que as desconcertantes reconstruções imaginativas e as posturas extremas em uma relação eivada pelo abandono, quando não são ridículas, soem atrair reações igualmente corrompidas, discrepantes e desproporcionadas.

Por isso as suposições a que nos referíamos são daninhas, contagiosas e perigosas: o tomar nossas histórias por infalíveis e o desacreditar aos que não estão de acordo com nossas crenças e pensamentos como malvados, idiotas ou ignorantes, só servem para alimentar o conflito, maximizar comportamentos inadaptados e entorpecer nossa capacidade para «dar-se conta» do que realmente ocorre (ou ocorreu)[8]. Recordemos que a capacidade de saber «dar-se conta» da realidade é essencial para sustentar uma boa convivência, já que tem relação com a competência para atender e concentrar-se.

Também tem que ver com a experiência de perceber o que passa dentro e fora de nós, com o saber distinguir entre o que «depende de nós» e que não, com a conciliação harmônica entre a visão do «mim mesmo» junto à visão que tem o outro de mim e com a digna atitude de cada cônjuge relativamente ao outro que inibe qualquer processo de identificação negativa ou nocente. E na medida em que somos escravos daquilo em que fixamos nossa atenção, a vida tem um curioso sentido de humor quando esta capacidade de discernir e centrar-se no que nos interessa (atenção) transpassa os limites da sensatez.    

Assim as coisas, não é de surpreender que algumas rupturas (e relações disfuncionais) estejam carregadas de desvarios, dificuldades, autoenganos, enganos, ilusões, aflições, injúrias, etc...etc. Nada é demasiado casual, impessoal, mundano ou trivial. Os tortuosos processos que a envolvem fazem quase inevitável que entre os dois protagonistas se gerem muitas dessas coisas consideradas a dia de hoje tóxicas por qualquer psicólogo decente. Uma asfixiante sensação de que nosso cônjuge - por quem renunciamos à liberdade e assumimos a alternativa de viver um tipo de relação composta por um conjunto de deveres - nos parece agora mais um estorvo e a causa de nossas desgraças que aquele companheiro ou companheira que havíamos decidido ter sempre ao lado. A febre da paixão e do amor marital, por fim, parece haver encontrado «prazo de validade» - e todo mundo sabe que “el buen gusto consiste en no insistir”. (Albert Camus)

No entanto, nem tudo são más notícias. A promessa de aprender a arte de amar[9] também é real e factível quando cada sujeito encontra seu proveito na existência do outro (não em sua supressão), quando abraçamos um tipo de sentimento que nos permite exercer nossas melhores capacidades e demonstrar nossa valia como seres humanos[10]. E a fórmula para que um matrimônio funcione é, segundo John Gottmann, «sorprendentemente simple: las parejas felizmente casadas no son más inteligentes, más ricas o psicológicamente más sofisticadas que otras, sino las que en su vida cotidiana construyen una relación que deja los pensamientos y emociones negativas sobre el otro muy por debajo de las positivas. Los matrimonios felices se basan en una amistad profunda, respeto mutuo y disfrute de la compañía del otro».

Por dizê-lo de alguma maneira: um tipo de vínculo alicerçado no compromisso e afeto mútuo, seguro e virtuoso, em que os cônjuges se conhecem intimamente, compartem expectativas e que na dinâmica dos pequenos detalhes da vida cotidiana impede que as esquizofrênicas suposições e os pensamentos negativos sobre o companheiro (a) afoguem os sentimentos positivos[11].

É essa «preponderância de sentimento positivo», a capacidade de «dar-se conta» e a renúncia às suposições disparatadas que respaldam as esperanças, sonhos, desejos, preocupações e aspirações mútuas e que dão sentido a uma vida em comum sólida. É esta a única fórmula «mágica» que, como uma mensagem incessante, devemos enviar diariamente ao nosso companheiro (a) para recordar-lhe de que, como «ser humano»[12], é amado, compreendido, respeitado e aceitado, com defeitos e debilidades incluídos.[13]

Depois de tudo, e apesar da força destrutora da falta de sincronização conjugal, são os sentimentalismos implacáveis, as falsas esperanças e os altos ideais românticos os que arruínam a qualquer matrimônio.

Sobre os autores
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Marly Fernandez

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Cognición y Evolución Humana pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Teoría del Derecho pela Universidad de Barcelona- UB (Espanha). Pós-doutorado (Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica) pelo Laboratório de Sistemática Humana- UIB (Espanha). Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB pelo Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog (Espanha). Membro do Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB) do Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB (Espanha).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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