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Tortura: da história mundial à atualidade brasileira

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Neste artigo é apresentado o conceito de tortura, seu histórico mundial até o Brasil atual, com enfoque na ditadura militar brasileira, nos anos de 1964 até 1985, caracterizada pela repressão e práticas abusivas.

1 INTRODUÇÃO

Sabe-se que não há período da História ou povo que desconheça o extremo sofrimento corporal transformado em castigo ou símbolo pelos métodos de tortura. Sendo assim, Norberto Bobbio não nos deixa esquecer que “durante séculos, a tortura foi aceita e defendida como um procedimento judiciário normal”[1].É possível, apenas, entender que, por milênios a humanidade viveu com a convicção da desigualdade entre os homens. Separados entre vencedores e vencidos, libertos e cativos, nobres e plebeus, servos e senhores, pecadores e santos, parecia quase natural que houvesse tratamentos diferentes, cabendo a alguns o fardo mais pesado da existência.

Neste estudo procuramos aprofundar sobre o assunto trazendo-o para a atualidade, tendo como ponto inicial de estudo o caso Amarildo, no Rio de Janeiro. A partir daí surgiu o interesse de trazer à tona um assunto que muito foi questionado durante os tempo e aceito em alguns deles como atos legais, contudo por mais leis existentes nos mais diversos países do globo ainda podemos afirmar que em pleno século XXI existem casos de tortura, no Brasil e no mundo, porém são mais camuflados e procuram manter-se em sigilo.

Questionamentos foram feitos para que este trabalho fosse elaborado, desde "o que é?", como será abordado no primeiro capitulo deste artigo. O capitulo 2 faz um resumo geral do que foi a tortura na história mundial, desde os primeiros estudos feitos sobre o assunto na antiguidade até as duas grandes guerras mundiais existentes. Já no terceiro capitulo o foco passa a ser o Brasil. Passando por questões a respeito da tortura: sempre existiu neste solo? Como ela foi tratada pela legislação da época? Como foi sua evolução até os dias atuais sobre este assunto? São hipóteses como essas que dão norte para uma parte deste trabalho.

A Ditadura Militar é a parte do Brasil está na memória de muitos brasileiros justamente por ter sido uma das épocas mais maldosas e tortuosas do país. Sabendo disso, o quarto capítulo apresenta, principalmente, os métodos de tortura que os militares utilizavam nos civis.

Contudo, mesmo o Brasil tenha sido peça chave na elaboração deste artigo, o capítulo final, cinco, encerra as análises sobre a tortura levando em consideração a Lei de Tortura e as sanções as quais quem comete tal crime na atualidade brasileira poderá responder.


2 DESENVOLVIMENTO

Desde a antiguidade nos deparamos com a tortura, desde a Grécia antiga até os dias atuais, passando da legalidade para a ilegalidade. Dessa forma a lei não define “tortura”, apenas a caracteriza. Destarte, tortura vem do latim, tortura, cujo significado é “suplício, martírio, tormento, transe aflitivo, podendo ser físico ou psicológico”[2].Contudo, vários autores do direito conceituam de maneira distinta e abrangente esse ato, que fere o princípio da dignidade da pessoa humana, direitos indisponíveis e alienáveis ao homem e um dos princípios constitucionais mais importantes. Sendo assim apresentaremos neste capitulo alguns conceitos encontrados para dar início a elaboração deste artigo.

A maioria das pessoas tem junto consigo um conceito para cada questão do dia-a-dia, e com a tortura não é diferente. As pessoas conceituam conforme, principalmente, atitudes vividas por elas, por pessoas próximas ou aderem ao conceito dos noticiários. Contudo, começaremos com o conceito mais simples e direto do Dicionário Houaiss, que caracteriza tortura como “dor violenta que se inflige a alguém, sobretudo para lhe arrancar alguma revelação; suplício”[3]. Embora este conceito seja um dos mais aceitos entre a população, no direito a primeira caracterização de tortura foi através da Assembleia Geral da ONU, em 1975, na qual caracterizava a tortura, da seguinte maneira:

Entende-se por tortura todo o ato pelo qual um funcionário público, ou outrem por ele instigado, inflija intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos graves, físicos ou mentais, com o fim de obter dela ou de terceiro uma informação ou uma confissão, de a punir por um ato que tenha cometido ou se suspeite que cometeu, ou de intimidar essa ou outras pessoas.[4]

Mesmo embora já tendo sido caracterizada quando a Assembleia da ONU aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos o qual versava em seu artigo 5º que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.”[5]

Conforme o direito foi se modificando as denominações também precisaram se atualizar e onze anos depois da Assembleia Geral da ONU de 1975 a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1984, trouxe um novo conceito de tortura:

O termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissão; de puni-la por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada em discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público ou por outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência, inerentes ou decorrentes de sanções legítimas.[6]

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Outros doutrinadores como Hungria e Noronha buscaram definir o tortura de forma legal, dessa forma surgiu uma definição para cada um, porém muito parecidas. Para Noronha a tortura é o ato de “infligir-se um mal ou sofrimento desnecessário e fora do comum”[7]. Já Hungria, como o “meio supliciante, a inflição de tormentos, a ‘judiaria’, a exasperação do sofrimento da vítima por atos de inútil crueldade”[8]


HISTÓRIA DA TORTURA

Desde que o mundo é mundo nos deparamos com práticas de tortura. Acontece que nem sempre ela foi tratada como um crime. Durante a antiguidade, período que vai desde a invenção da escrita (4000 a.C a 3500 a.C) até a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C) e início da Idade Média, a tortura era caracterizada como ato legal.

Antes das civilizações clássicas percebeu-se que a prática da tortura era concebida como algo inerente à punição. Os castigos corporais infligidos aos condenados apresentavam não somente a pretensão de lhes causar dor e sofrimento, mas também deixar no corpo as marcas que tornariam visíveis os seus delitos.

A Bíblia, a religião, foi precursora de muitos atos realizados pelos seus seguidores prova disso é o Antigo Testamento traz consigo uma contradição e esse respeito, pois defendia os escravos “Se alguém ferir o seu escravo ou a sua serva com uma vara, e o ferido morrer debaixo de sua mão, será punido”[9] (Êxodo 21,20), mas se contradiz e admite a tortura escravista em Eclesiástico “jugo e rédea dobram o pescoço, e ao escravo mau torturas e interrogatório”[10], 33,27. Já o Novo Testamento tratava os açoites como punição mais comum aos acusados, um fato curioso é que há relatos de que Paulo, apostolo de Cristo, apela para a cidadania romana para se livrar da tortura[11] (Atos dos Apóstolos 22,24).

A tortura nesse período vê-se erguida por pertencer nas punições dos Códigos mais antigos, como o de Hamurabi, primeiro código de leis, que dispunha de penas severas e degradantes, como a do Talião, do “olho por olho, dente por dente” e o de Manu[12].

Na Grécia antiga a tortura era utilizada como punição de crimes ou para confissões, dos acusados em busca da verdade no processo, porém somente os escravos e ou estrangeiros estavam sujeitos a esse tratamento, mas com exceções aos crimes contra o Estado, onde todos, sendo escravo, estrangeiro ou cidadão, teriam o mesmo tratamento. Baccaria explica como e em quais casos este procedimento era utilizado:

A tortura de um criminoso durante seu julgamento é uma crueldade consagrada pelo uso, na maior parte das nações. É usada com a intenção de fazê-lo confessar o crime, ou para explicar alguma contradição na qual ele caiu enquanto depunha, ou ainda para descobrir seus cúmplices, ou por algum tipo de purgação metafísica e incompreensível da infâmia, ou finalmente, para descobrir outros crimes dos quais ele não é acusado, mas dos quais ele pode ser culpado.[13]

Foucault é outro autor que se refere a tortura nesta época, para arrancar confissões dos acusados e em sua obra Vigiar e Punir diz:

[...] em primeiro lugar, porque esta constitui uma prova tão forte que não há nenhuma necessidade de acrescentar outras, nem de entrar na difícil e duvidosa combinação dos indícios; a confissão, desde que feita na forma correta, quase desobriga o acusador do cuidado de fornecer outras provas (em todo caso, as mais difíceis).[14]

Em Roma não foi diferente, porém a Igreja exercia forte influência no Estado, o que deixava, de certa forma, os cidadãos mais seguros e protegidos. Roma utilizava do modelo absolutista, a partir da criação dos impérios, sendo esse “um regime político em que apenas uma pessoa exercia poderes absolutos, podendo para criar leis [ou praticar atos] sem aprovação da sociedade.”[15]

Santo Agostinho “repudiava sua aplicação, por tratar-se de pena imposta a quem não se sabe ainda se é culpado.”[16] Baccaria também segue a mesma tese de Agostinho quando discute um dilema:

Ele é culpado ou inocente? Se culpado ele deveria sofrer a pena imposta pela lei e, assim, a tortura se torna inútil, pois sua confissão é desnecessária; se ele não é culpado, um inocente foi torturado, pois aos olhos da lei todo homem é inocente se o crime não for provado. Ademais, confundem-se todas as relações ao exigir-se que um homem seja ao mesmo tempo acusado e acusador e que a dor seja o teste da verdade, como se a verdade residisse nos músculos e nas fibras de um miserável torturado. Por esse método, o mais resistente escapará e o mais frágil será condenado. São essas as inconveniências desse falso teste da verdade, pertencente somente aos canibais e que os romanos, bárbaros sob muitos aspectos reservavam apenas aos escravos, vítimas de uma feroz e muito admirada virtude.[17]

O uso sistemático da tortura ocorreu após o século XI, na Europa, atingindo seu ápice entre os séculos XIII e XVII, com a Inquisição.

A Idade Média foi marcada por inúmeros casos de tortura que aconteceram a partir de interpretações errôneas da Bíblia. Foi nessa época que surgiu o termo herege, nome dado aos que questionam dogmas implantados pela religião. Para combater os hereges a igreja criou no século XIII o Tribunal da Santa Inquisição ou também conhecido como Tribunal do Santo Oficio, o qual julgava crimes praticados contra a igreja e suas crenças, feitiçarias e bruxarias associando os crimes aos pecados, as confissões eram o requisito principal para a condenação e as sanções as penitências[18]. É relevante mencionar que essa posição da Igreja Católica é controversa a da decisão em sínodo, realizado em Roma em 384 d.C., quando a tortura foi condenada como meio para obtenção de prova, confissão ou informação. Nada modificou este cenário mesmo o Papa Nicolau I já tendo a oportunidade de afirmar que a tortura violava a lei de Deus.

No livro o Manual dos Inquisidores, Nicolau Eymerico discorre sobre a época da Inquisição católica apontando diversos pontos relacionados a tortura. Em seu capítulo 3 o inquisidor reco­menda: “aplicar-se-lhe-á a tortura, a fim de lhe poder tirar da boca toda a verdade”[19]. Já o capítulo 5 tem como frase introdutória: “Tortura-se o Acusado, com o fim de o fazer confessar os seus crimes”[20]. Quem tortura, os eclesiás­ticos ou o braço secular? A esta indagação responde o frade ita­liano que comandou a Inquisição na região espanhola de Aragón:

Quando começou a estabelecer-se a Inquisição, não eram os Inquisidores quem aplicavam a tortura aos Acusados, com medo de incorreram em irregularidades. Esse cuidado incum­bia aos juízes leigos, conforme a Bula Ad Extirpanda, do Papa Inocêncio IV, na qual esse Pontífice determina que devem os Magistrados obrigar com torturas os Hereges (esses assassi­nos das almas, esses ladrões da fé cristã e dos sacramentos de Deus) a confessar os seus crimes e a acusar outros hereges seus cúmplices. Isto no princípio; posteriormente, tendo-se verificado que o processo não era assaz secreto e que isso era inconveniente para a fé, achou-se que era mais cômodo e salutar atribuir aos Inquisidores o direito de serem eles mesmos a infligir a tortura, sem ser preciso recorrer aos juízes leigos, sendo-lhes ainda outorgado o poder de mutuamente se relevarem de irregularidades em que às vezes, por acaso, incorressem.[21]

Ainda no mesmo discurso, o frade, diz que os juízes não deve partir ou criar torturas inusitadas, sendo estas responsáveis pela autoglorificação dos juízes do que propriamente para arrancar do acusado a confissão:

De ordinário utilizam os nossos Inquisidores cinco espécies de tormentos no decorrer da tortura. Como isso são coisas sabidas de toda a gente, não irei deter-me neste assunto. Podem consultar-se Paulo, Grilando, Locato, etc. Já que o Direito Canônico não prevê particularmente este ou aquele su­plicio, poderão os juízes servir-se daqueles que acharem mais aptos para conseguirem do acusado a confissão de seus cri­mes. Não se deve, porém, fazer uso de torturas inusitadas. Marcílio menciona catorze espécies de tormentos: acaba por afirmar que imaginou ainda outros, como seja a privação de sono, também referida e aprovada por Grilando e Locato. Mas, se me é permitido dizer a minha opinião, isso é mais trabalho de carrascos do que tratado de Teólogos. (...) É por certo um costume louvável aplicar a tortura aos cri­minosos, mas reprovo veemente esses juízes sanguinários que, por quererem vangloriar-se, inventam tormentos de tal modo cruéis que os Acusados morrem durante a tortura ou acabam por perder alguns dos membros. Também Antônio Gomes condena violentamente esse procedimento.[22]

Devido a isso até nos dias atuais muitos se recordam deste tribunal e dos crimes tortuosos realizado por ele. A Igreja não costuma se pronunciar muito a respeito, porém o Papa João Paulo II em uma declaração pediu perdão “pelos erros cometidos a serviço da verdade por meio do uso de métodos que não têm relação com a palavra do Senhor"[23] perdão este também valido “tanto para os dramas relacionados com a Inquisição quanto para as feridas deixadas na memória [coletiva] depois daquilo.”[24]

No século XV a Romênia no principado de Valáquia, atual Transilvânia, conheceu seu mais famoso torturador: o príncipe Vlad. Após ser prisioneiro dos turcos em seu território e aprender os métodos de tortura que eles utilizavam, Vlad, tornou-se rei do local com o pretexto de unificar e expulsar seus antigos captores dando assim início a uma chacina e sangrenta batalha. Utilizando de punições cruéis, dignas de uma mente sádica como cozinhar pessoas, queimá-las em fogueiras, esfolamento, mutilações ele também utilizava do método do empalhamento que consistia em introduzir um ferro no ânus ou no umbigo, até que saísse pelo pescoço da vítima.[25]

Do século XVI ao XIX não faltam momentos em que ocorreram essas práticas, pois foi nessa época em que os negros ou qualquer povo colonizado era tratado de forma desumana e torturado pelos europeus. Sendo elevado à forma sistemática a tortura neste período se encontra nos fatos históricos mais comuns estudados como a Independência dos Estados Unidos onde Thomas Jefferson redigiu a Declaração dos Direitos do Homem e da Independência, podemos citar também a Queda da Bastilha, Revolução Francesa e na América Latina, suas independências.[26]

Embora até então já tivessem tido provas de tortura suficientes foi durante a Segunda Guerra Mundial que foram ocorreram terríveis, até hoje lembradas, torturas nos campos de concentração do Holocausto.

O antissemitismo dos Alemães, liderados por Theodor Adolf Hitler, teve suas ideologias etnocêntricas colocadas em pratica contra todos aqueles que não eram considerados arianos, ou seja, de raça nobre como aqueles que faziam parte do movimento nazista, e as experiências desumanas realizadas por eles contra o povo judeu, em sua maioria, eram consideradas normais perante suas concepções. Muitos judeus foram torturados, chegavam a virar “ratos de laboratório” para as experiências em pessoas vivas dos nazistas, que denominaram de “SoluçãoFinal” o Holocausto[27]. Anos depois a Alemanha teve que assumir as consequências desses atos.

Sobre os autores
Camila Tawane

Acadêmica do Curso de Direito na Faculdade do Norte Novo de Apucarana - FACNOPAR. Estagiária no escritório Zanetti Advogados Associados.

Carlos Henrique dos Santos

Graduando em Direito pela Facnopar.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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