O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição da República Federativa do Brasil, a qual consagrou no país um Estado Democrático de Direito, tem atuado de modo questionável e propenso a desencadear situações para as quais há carência de adjetivos positivos.
O dia foi 23 de abril de 2015. Data em que o Supremo Tribunal Federal, por maioria, deu provimento ao recurso extraordinário n. 632853/CE, com repercussão geral reconhecida, e “fixou a tese de que os critérios adotados por banca examinadora de um concurso não podem ser revistos pelo Poder Judiciário”.
A ementa do julgado, representado pelo tema 485 da Corte Constitucional, reproduz o seguinte: Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Concurso público. Correção de prova. “Não compete ao Poder Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas. Precedentes. 3. Excepcionalmente, é permitido ao Judiciário juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame. Precedentes. 4. Recurso extraordinário provido”.
Entende-se, no julgamento acima, que não pode o Poder Judiciário, no controle da legalidade, “substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas”.
Ocorre que, na prática, o Leading Case está literalmente fechando as portas do Poder Judiciário para os cidadãos que se submetem a concursos públicos. Isso vem ocorrendo tanto nas instâncias ordinárias (TJMS 0837256-77.2013.8.12.0001,TJSP 0004069-08.2013.8.26.0168, TJRS 70064911514, TJSC 0028917-10.2006.8.24.0023e TJBA 0014405-41.2014.8.05.0000), como no Superior Tribunal de Justiça (AgRg no RMS 47.741/MS, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/11/2015, DJe 02/12/2015 e AgRg no RMS 47.607/TO, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/09/2015, DJe 16/09/2015).
A constatação é manifesta. O Poder Judiciário está fechando suas portas aos cidadãos que se submetem legitimamente a concursos públicos e ficam à mercê das bancas examinadoras. Ao que parece, com o julgamento do RE n. 632853/CE e seus reflexos nas demais instâncias do Poder Judiciário, pode a banca examinadora corrigir as provas como bem quiser que ao Poder Judiciário não é franqueada a possibilidade de intervir.
Indagações são pertinentes. Vive-se ainda em um Estado Democrático de Direito? A Constituição Federal, também chamada de Constituição Cidadã, continua trazendo em seu bojo o direito fundamental de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”? Esse preceito limita-se a impor que a lei não exclua, mas o Poder Judiciário sim?
Sabe-se que o conhecimento jurídico, a vivência e outras qualidades mais dos notáveis que compõe o Supremo Tribunal Federal são inquestionáveis. Não obstante, a decisão tomada no RE n. 632853/CE, da forma como fora proferida, parece não ter sido acertada.
Estado Democrático de Direito é diferente de um Estado de Direito. Nesse, temos um estado que simplesmente segue um ordenamento jurídico; naquele, temos um estado que segue um ordenamento jurídico qualificado e garantidor de direitos fundamentais do cidadão, como, por exemplo, o acesso à justiça justa e eficiente, legalidade, dignidade da pessoa humana, razoabilidade, proporcionalidade, entre outros.
Importante esclarecer que na discussão realizada em plenário, para a formação da tese, os ministros discutiram sobre estar-se fechando as portas ou não do Poder Judiciário, para analisar e controlar a legalidade das questões realizadas em concursos públicos. Mais de um ministro verbalizou que a intervenção não pode ser tolhida, mas deve ser minimalista. Infelizmente isso não restou consignado na tese enunciada.
A realidade vivenciada pós RE n. 632853/CE é triste. O Poder Judiciário vem fechando as portas sim para os cidadãos que buscam corrigir ilegalidades variadas cometidas por bancas examinadoras de concursos públicos relacionadas à correção e elaboração de questões.
A esperança é que o tema 485 do Supremo Tribunal Federal amadureça e que o entendimento seja, isso sim, que a intervenção do Poder Judiciário nos casos relacionados a concursos públicos seja minimalista, mas existente.
Havendo erro grosseiro ou ilegalidade evidente, deve ser legitimada a atuação do Poder Judiciário para sanar tal ofensa à lei. Essa deve ser a leitura do RE 632853, tema 485 do Supremo Tribunal Federal.
Alguns tribunais têm notado essa peculiaridade, como, por exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo, que no julgamento da apelação de número 0000645-70.2013.8.26.0357, realizado em 10 de dezembro de 2015, consignou ser possível o “controle jurisdicional em face de questões de vício evidente”, visto que “Não se trata de hipótese de reavaliação dos critérios empregados pela banca examinadora. No caso concreto as questões apresentam vício invencível pelo candidato, diante do erro teratológico na elaboração das hipóteses de resposta”.
Destarte, a expectativa é que isso seja evidenciado pelo Supremo Tribunal Federal. Fato é que o julgamento do RE n. 632853/CE, infelizmente, refletiu um dia em que a ordem jurídica e democrática sofreu um abalo, pois, em sua interpretação fria e literal, restringe-se o acesso à justiça e a atuação do poder judiciário. Espera-se que reflexões e aprimoramentos sejam tomados a fim de que os cidadãos não fiquem a mercê das bancas examinadoras.