“Sou o amor que não ousa dizer o nome”
Oscar Wilde
RESUMO / ABSTRACT
Este trabalho analisa a emergência da reponsabilidade civil por dano existencial, de índole Italiana, em decorrência do desrespeito às diferenças de orientação sexual. Vasculha a liberdade de orientação sexual como atributo da personalidade humana, inerente à existência do homem com dignidade. Invoca os Princípios da Dignidade da Pessoa Humana, da Liberdade, da Igualdade, da Solidária e da Pluralidade como meio de amparo e tutela ao projeto de vida do indivíduo, do direito à existência digna e feliz. Conclui que o Dano Existencial exsurge de violação a esses Direitos Fundamentais do Homem, tal como o desrespeito à liberdade de orientação sexual. O ser humano privado do direito de amar, por conta de atos lesivos de intolerância e preconceito, sente sua existência vazia e solitária. No Brasil, o tema dano existencial ainda não é destacado, exceto no Direito do Trabalho. Questões afetas à homoafetividade são relegadas pelo Poder Legiferante ao Poder Judiciário, quem, paulatinamente, supre as omissões legais.
PALAVRAS CHAVES :Dano Existencial – Responsabilidade Civil - Liberdade de Orientação Sexual – Dignidade Humana – Direitos da Personalidade – Homoafetividade – Direitos Fundamentais do Homem - Respeito à Liberdade de Orientação Sexual.
A epígrafe desse artigo é de autoria atribuída ao escritor e dramaturgo irlandês, Oscar Wilde, que, no século XIX, manteve relacionamento homoerótico, pouco discreto e de reconhecimento público, com o jovem Lord Alfred Douglas.
A história revela que a homossexualidade era sentida, neste momento, como perversão e distúrbio de ordem sexual, transtorno de identidade de gênero. Com traços ainda medievais, a homossexualidade masculina era vista como aberração, por conta do desperdício de sêmen, necessário à procriação. A homossexualidade feminina era menos pecaminosa, mera heresia, porque não se desperdiçava o gameta necessário à perpetuação da espécie.
Seja como for, deitar se com uma pessoa do mesmo sexo biológico era prática imoral e antinatural, pecaminosa, que depõem contra preceitos ligados à necessidade de perpetuação da espécie humana. Na Bíblia, lê-se em Gênese: “Crescei e Multiplicai-vos.” (Gênese 1:9). Reforçando o repúdio a sodomia, a Bíblia ainda traz: “com um homem não se deitará como se mulher fosse. É abominação.” (Levítico, 18: 22).
Recentemente, nos calorosos debates entre presidenciáveis de 2014, certo candidato, de forma rançosa, traduziu o livro hebraico de maneira desusada, ao ironizar: “Dois iguais não se reproduzem” e “Nunca ouvi dizer que o aparelho excretor serve como reprodutor”.
Tal argumento, falacioso e afonsino, emudece o preconceito e a intolerância às diferenças, reforçando a carga pejorativa aviltante ao público LGBT.
Retomemos, desta sorte, o julgamento do dramaturgo irlandês: já, no século XIX, por amar outro homem mais jovem, foi condenado a dois anos de trabalho forçado pela prática de sodomia2 .
Após sua saída do cárcere, pouco lhe restou de seu projeto de vida. Necessitou foragir - se para Paris, onde adotou o pseudônimo de Sebastian Melmouth. Passou o resto dos seus dias em hotéis baratos, embriagando - se com absinto e morreu de forma miserável.
Vale saborear a singular e inigualável defesa lançada por Wilde3 , perante as acusações levianas perpetradas pela Promotoria:
Esse amor é a grande afeição de um homem mais velho por um homem mais jovem, como aquela que houve entre Davi e Jônatas, o amor que Platão tornou a base de sua filosofia, o amor que se pode achar nos sonetos de Miguel Ângelo e Shakespeare. Tal amor é tão mal compreendido neste século que se admite descrevê-lo como o ‘amor que não ousa dizer seu nome’. Ele é bonito, é bom, é a mais nobre forma de afeição. Não há nada nele que seja antinatural. Ele é intelectual, e repetidamente tem existido entre um homem mais velho e um homem mais novo, quando o mais velho tem o intelecto e o mais jovem tem toda a alegria, a esperança e o encanto da vida à sua frente. O mundo não compreende que seja assim. Zomba dele e, às vezes, por causa dele, coloca alguém no pelourinho4.
A biografia de Oscar Wilde exibe as mazelas do dano à existência, à dignidade e à felicidade do homem que, por conta de um “amar desigual”, é marginalizado e reduzido perante seu semelhante. Trata – se de uma diferença que frutifica outras diferenças, capazes de arruinar à sua vida.
Machado de Assis5 , em severa crítica à existência humana alicerçada em valores depreciáveis, dedica sua obra póstuma ao verme “que primeiro lhe roeu as frias carnes de seu cadáver.”. Vinga-se da vida, recusa-a radicalmente, tratando de demoli-la, quando concluiu: “Não tive filhos, não transmite a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
Brás Cubas nega, empregando radical niilismo, que a humanidade mereça ter continuidade, e se vangloria de não ter tido filhos, de não dar prosseguimento a sua existência.
Esse é o enredo de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, marcado pela descrença no ser humano. Machado parece buscar transmitir uma forma de encarar o mundo, mostrando que a piedade, a caridade, a igualdade, a sinceridade, a fraternidade e o afeto, dentre tantos outros valores existenciais, estão perecendo na conjuntura em que a humanidade se acomoda. Denuncia uma sociedade de interesses meramente econômicos e classistas, de desrespeito a valores humanos fundamentais. Vejamos uma situação narrada: o amor de Marcela, uma prostituta espanhola e a primeira namorada de Brás Cubas, durou “quinze meses e onze contos de réis; nada menos”. O contexto do livro é um prelúdio à formação de um cenário niilista, esvaziado de valores existenciais fundamentais à vida humana pautada na dignidade.
Nesse passo, com o apoio das professoras Teresa Ancona Lopez e Maria Berenice Dias, postulamos, decerto, que a Responsabilidade Civil decorrente do Desrespeito à Diferença Sexual Minoritária (LGBT) é fonte de onde emerge Dano Existencial ou o Dano ao Projeto de Vida.
O Dano Existencial, cujo berço é italiano, foi investigado no Brasil, de início, pelo advogado civilista Amaro Alves de Almeida Neto. Ele o diferenciou do dano moral, porquanto “Dano moral é essencialmente sentir. No existencial não se sente, mas se deixa de fazer alguma coisa.” Ele diz que este instituto “é a tutela da dignidade humana”, já que ninguém tem o direito de mudar a vida das pessoas ou tirar - lhes o direito de fazer algo que seja lícito. “A pessoa é dona da sua vida e da sua agenda.”6
Na academia jurídica, o estudo dano existencial foi investigado ao lado do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e dos Direitos de Personalidade pela profa. Dra. Teresa Ancona Lopez, em sua disciplina “Tendências da Responsabilidade Civil no Direito Contemporâneo”, oferecida aos doutorandos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 2.010.7
A estudiosa concorda com os apontamentos de Amaro Alves de Almeida Neto. Estes ressaltam que o que não se pode fazer é deixar de indenizar uma pessoa porque não se vê o mal causado.
O dano existencial pode, conforme a extensão da lesão, ser reparável ou irreparável. Neste último caso, ele crucifica valores irremontáveis do ser humano, como a dignidade, a igualdade, a liberdade, a solidariedade, a pluralidade e os Direitos da Personalidade. Compromete – se, dessarte, o próprio Direito à Felicidade.
Neste ínterim, como indenizar ou reparar projetos existenciais danificados e não precificáveis por sua própria natureza, tal qual a dignidade, a felicidade e a liberdade? Qual o preço da felicidade? Existe valor pecuniário apto a ressarcir o non facere que o dano imprime à vítima, alterando sua “rotina existencial”? 8
Oscar Wilde, em nosso sentir, jamais reconquistou o status quo ante e retomou seu projeto de vida. O repúdio ao seu relacionamento com o jovem lord pela sociedade britânica do século XIX, seu julgamento e sua condenação, o conduziram, após o cumprimento da reprimenda em Londres, a se refugiar em Paris, com outro pseudônimo, embriagando e vivendo de forma improdutiva e miserável. Morreu de forma famélica.
Notem as sérias alterações no projeto de vida do dramaturgo que, por sua orientação sexual diversa, sofreu danos irreversíveis, inestimáveis, de cunho extrapatrimonial. As alterações assistidas não passíveis de valoração econômica, precificação, ou indenização de ordem moral ou material. Lastimo que Wilde tenha se constituído em sofrível exemplo de Dano à Existência Humana, por conta do desrespeito e da intolerância à diferença de orientação sexual.9
O enredo assistido secularmente não nos parece muito distante, se relembrarmos o caso do jogador de futebol Richarlyson. Este, após ser ofendido em campo pelo técnico do time adversário, socorreu – se no Poder Judiciário, e obteve sentença em Queixa Crime, obtusa, que transcrevo em parte, para chocar o leitor que a desconhece:
“(...) 7. Quem se recorda da “COPA DO MUNDO DE 1970”, quem viu o escrete de ouro jogando (FÉLIX, CARLOS ALBERTO, BRITO, EVERALDO E PIAZA; CLODOALDO E GÉRSON; JAIRZINHO, PELÉ, TOSTÃO E RIVELINO), jamais conceberia um ídolo seu homossexual. (...) 9. Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas, forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si.” .10
A orientação sexual em si é atributo da personalidade do homem, portanto inerentes à sua existência. Estudos modernos da Engenharia Genética apontam as raízes da homossexualidade em fatores biológicos e genéticos, desligando - a da influência cultural na formação da condição sexual.
Decerto que tais teorias devem ser avaliadas cum grano salis, porquanto o assunto ainda carece de consenso científico. Nesta seara, a psicanálise, a medicina e a engenharia genética travam, entre si, severos “embates dialéticos” (ousei empregar um pleonasmo enfático), na busca de uma explicação convincente para o tema.11
Seja como for, algo é inconteste: a orientação sexual caracteriza - se como Direito da Personalidade, cujo rol, capitulado no Código Civil e na Constituição Federal, não é taxativo, possibilitando o reconhecimento de novos direitos ligados à existência humana.
A identidade sexual, considerada como um dos aspectos mais importantes e complexos compreendidos dentro da identidade pessoal, forma - se em estreita conexão com uma pluralidade de direitos, como são aqueles atinentes ao livre desenvolvimento da personalidade.
Vê-se que a sexualidade e os prazeres carnais regentes da própria evolução social não podem ser “sufocados” diante da diversidade de condições sexuais, sob pena de se comprometer elemento intrínseco ligado à própria existência humana. Tal atitude pode conduzir o indivíduo à involução social, comprometendo – se, de sobremaneira, sua autoestima, sua autoconfiança, sua autoaceitação e sua autoimagem.
Alguns homossexuais, por carregarem tais comprometimentos da própria autoestima e seus desdobramentos, acabam por construírem relacionamentos inadequados, ruinosos, atravessados pela “compra do afeto e do amor”. Mormente se envolvem com drogas lícitas ou ilícitas, como meio de nutrir o vazio deixado pela privação que sentem no “inexistente ou inalcançável direito de amar”.
Não se nega ou se priva o amor, os prazeres carnais, a sexualidade e a vida conjugal entre seres livres, dotados de autodeterminação, liberdade, igualdade. Como bem infere Maria Berenice Dias12 :
Às claras que o enlaçamento de vidas decorre da busca pela felicidade. Ainda que não esteja consagrado constitucionalmente, ninguém duvida que é um direito fundamental. Talvez se possa dizer que a felicidade decorre do dever do Estado de promover o bem de todos, assegurar o direito à liberdade e à igualdade e de garantir o respeito à dignidade de cada um. Assim, mesmo não expresso explicitamente na Constituição Federal, o direito à felicidade existe e precisa ser assegurado a todos. Não só pelo Estado, mas por cada um, que além de buscar a própria felicidade, precisa tomar consciência que se trata de direito fundamental do cidadão, de todos eles.
A exclusão e a rejeição social derivada da condição sexual minoritária depõem, sem ares de dúvidas, contra o próprio amor ao próximo.
Invoque-se, aqui, o Papa João XXIII e sua Encíclica Pacem in Terris13. Para o pontífice, a dignidade humana é mecanismo de convivência humana bem constituída e eficiente, partindo do princípio que cada ser humano é uma pessoa singular e valiosa, dotada de inteligência, livre arbítrio e autodeterminação. Cada humano traz consigo caracteres que lhe são próprios, inatos à sua condição existencial. Daí se deduzir pela inviolabilidade e irrenunciabilidade destes atributos, o que alimenta a tolerância, o respeito e o amor ao próximo. Categoriza, de forma clara, que
Em uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo, direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis.14
Ainda, não raras às vezes, as diferenças sexuais servem de agressão à moralidade de outrem.
Na Itália, v.g., um senador da república foi alvo de mordazes sátiras, escárnios e achincalhamentos por conhecido jornalista, que ansiava abater a vida pessoal e política do legislador.
O Tribunal de Milão, invocando o artigo 2º da Constituição Federal Italiana, o artigo 1º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e precedente da Suprema Corte – julgamento n 7990/08 – decidiu indenizar o dano imaterial suportado pelo político, arrimando:
Mesmo com a transformação LGBT, a orientação sexual de um indivíduo não pode ser elemento de paródia com escárnio, com boa dose de imoralidade e perversão e com a exposição de sua vida intima e sexual da pessoa (...) constitui o ato em séria ofensa contra a dignidade da pessoa, que merece ser punido nos termos do art. 2059 Código Civil15.
No Brasil, consigne-se que há projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional (antigo projeto nº 6.960/02, hoje com nº 276/2.007), que eleva a “opção sexual” à categoria de Direito da Personalidade.
Não obstante a tramitação de tal projeto e de vários outros congêneres, o dissenso legislativo, sua inércia e despreocupação com assuntos deste calibre, torna - o um poder infenso às questões das minorias sexuais.
É nessa esteira que laureamos o entendimento do Ministro Celso de Mello, no notabilíssimo voto proferido no julgamento da ADIN 426716 :
O Poder Legislativo, certamente influenciado por valores e sentimentos prevalecentes na sociedade brasileira, tem se mostrado infenso, no que se refere à qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar, à necessidade de adequação do ordenamento nacional a essa realidade emergente das práticas e costumes sociais.
Tal situação culmina por gerar um quadro de submissão de grupos minoritários à vontade hegemônica da maioria, o que compromete, gravemente, por reduzi-lo, o próprio coeficiente de legitimidade democrática da instituição parlamentar, pois, ninguém o ignora, o regime democrático não tolera nem admite a opressão da minoria por grupos majoritários. É evidente que o princípio majoritário desempenha importante papel no processo decisório que se desenvolve no âmbito das instâncias governamentais, mas não pode legitimar, na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais, como o livre exercício da igualdade e da liberdade, sob pena de descaracterização da própria essência que qualifica o Estado democrático de direito.
Estimamos que o embaraço, o dédalo intricado em torno da questão homoafetiva não pode se exultar em ser tratada pelos rudimentos do caput do artigo 5º e pela reiteração de decisões advindas dos tribunais.
Assentamos que a terminologia empregada no projeto referido merece francas críticas. A redação do artigo 11 do Código Civil, pelo projeto em trâmite, traria o texto:
Art. 11. O direito à vida, à integridade físico-psíquica, à identidade, à honra, à imagem, à liberdade, à privacidade, à opção sexual e outros reconhecidos à pessoa são natos, absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis. (grifos nossos)
Seria mais curial com as modernas diretrizes da Psicologia, da Psicanálise e da Engenharia Genética, que nota a gênese da homossexualidade em fatores biológicos, que se empregassem as terminologias “orientação sexual”, ao invés de, “opção sexual”.
O psicólogo João Batista Pedrosa17 , em carta enviada ao Deputado Ricardo Fiuza, desmistifica que a
homossexualidade tem, segundo a Psicologia Evolucionista e a Engenharia Genética, bases genéticas, o que não permite ao homossexual simplesmente optar pela sua preferência sexual. Trata-se, neste prisma, de orientação e não mera opção pelo gosto sexual. Não se opta, destarte, pela cor dos olhos, pela estatura, assim como não se opta pela orientação sexual. Ademais, O Conselho de Psicologia na Resolução n. 001/99, de 22 de março de 1.999, ‘Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual.
Enrijeço, com o beneplácito de Maria Berenice Dias18 , que a angústia existencial do homossexual que assim se descobre, temeroso da rejeição social, não o conduz a optar pelo sofrimento, pelo exílio da própria felicidade, escolhendo “ser gay”.
A exemplo da atração entre homens e mulheres, os homossexuais não optam em amar pessoas de idêntico sexo biológico, mas tem tal atração de maneira involuntária, não comportando aqui o entendimento de que tal condição nasce de um ato de escolha ou mera opção.
Lúcido estudo sobre o homoerotismo, do psicanalista Jurandir Freire Costa19, propõe a substituição dos termos homossexualismo e homossexualidade pelo termo homoerotismo (ou Homoafetividade, como sugere Berenice Dias).
Madlener e Diniz20 ponderam que longe de ser mero jogo de palavras, as categorias que criam as identidades sexuais não são universais, mas de efeitos histórico – culturais, também produzidos pela linguagem.
A linguagem, como reflexo direto e elemento que integra e caracteriza a cultura de uma sociedade, traz consigo uma carga valorativa, capaz de designar o sujeito por determinadas parte do seu ser, v.g., o “ser homossexual”.
Resistir a tais terminologias implica em resistir também à carga negativa com que a ciência e a cultura vêm sobrecarregando tais termos: continuar discutindo sobre homossexualidade, partindo da premissa de que todos somos ‘por natureza heterossexuais, bissexuais e homossexuais’, significa tornar - se cúmplice de um jogo de linguagem que mostrou - se violento, discriminador, preconceituoso e intolerante, pois nos levou a crer que pessoas humanas são moralmente inferiores só pelo fato de sentirem atração por outras do mesmo sexo biológico.21
Não obstante todo embaraço e polêmica do tema, há que se dissipar esforços para contradizer projetos de decretos legislativos, marcadamente, insipientes, tais quais o néscio “Projeto da Cura Gay”.
Tal medida legislativa, proposta por alguns deputados que alegam a defesa dos valores morais, cristãos e das famílias tradicionais, viola, de sobremodo, os Direitos Humanos Fundamentais, os Direitos da Personalidade e ofende, visivelmente, a Dignidade de Minorias Sexuais.
Demais disso, torna pecaminoso o amor selado entre pessoas do mesmo sexo biológico, propondo a cura de tal transtorno sexual por meio de tratamento psicológico.22
Com a devida venia, algumas publicações que o deputado e pastor Marcos Feliciano lança em sua rede social – Facebook23 - são ignominiosas, infames.
Em tal rede o conteúdo marcadamente contrário às conquistas homoafetivas são malquistas e formam opiniões que avalizam à discriminação às diferenças sexuais. Há, v.g., vídeo acenando contra o casamento gay (https://noticias.gospelprime.com.br/video-contra-casamento-gay-viral/) e outras declarações na contra mão da batalha LGLSI.24
A moderna concepção do Direito Familiar não cuida conferir caráter reducionista e excludente a sujeitos jurídicos.
Nesta guisa, a Ministra Carmen Lúcia25 cuidou, com maestria da questão trazida à baila, em seu ovacionado voto quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 846.102:
Assim interpretando por forma não reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo − data venia de opinião divergente - é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade. (Grifos Nossos)
Sinalize-se, de outra banda, que a retórica do Pastor Yago Martins é insuficiente, se consideramos a moderna construção dos Direitos da Personalidade, nascidos com a emergência da figura do Direito Subjetivo, do século XIX.
A codificação atual de 2002 não tratou da liberdade de orientação sexual como atributo da personalidade humana. Decerto, o anteprojeto de Código Civil, idealizado por Miguel Reale na década de 70, se perdeu por longos 30 (trinta) anos, nos corredores da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Ainda assim, Miguel Reale conceituou personalidade como “um valor fundamental, a começar pelo do próprio corpo, que é a condição essencial do que somos, do que sentimos, percebemos, pensamos e agimos.”.26
Aponta-se, do supracitado conceito, que genialidade de Reale superou todo alheamento e incúria do Poder Legislativo.
O autor da Teoria Tridimensional do Direito, com invejável sapiência, adotou um sistema de cláusulas gerais ou conceitos jurídicos de textura aberta. Tais cláusulas se constituem em verdadeiros elastérios interpretativos, que têm com o escopo garantir a efetividade do Direito, por meio da análise casuística realizada pelo exegeta.
O juiz, aqui, não é mais concebido como mera e passiva inanimada boca da lei. As situações jurídicas, dessarte, se não acenadas pelo legislador, correrão por conta da interpretação prudente, justa e equânime do julgador. A inexpressividade legislativa ou a não previsão normativa asseguram ao exegeta introduzir valores fundamentais ao deslinde do impasse. Tal fenômeno da operabilidade jurídica, além de flexibilizar e individualizar a aplicação do direito invocado, proporciona a sua constante atualização em face da modernização social.27
Alçou-se, desta sorte, um rol aberto, não taxativo, de direitos designados da personalidade. Estes sempre escudam a existência nobre do ser humano, seja em qual época for. Para se constituírem em direitos da personalidade, o interprete deve averiguar sua pertinência temática vale dizer, advogam, militam pela existência nobre do homem?
A verticalização da averiguação dos novos direitos que tutelam o homem é uma construção que exsurge da constante necessidade de atualização jurídica frente às nuances e transformações sociais.28
A jurisprudência pátria, com destaque para as decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), cuidou de equiparar questões de orientação sexual minoritárias aos Direitos da Personalidade e ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
O tema foi capitaneado pela Desembargadora Maria Berenice Dias, a quem, com todo respeito aos demais estudiosos, ouso epitetar de “Dama dos temas homoafetivos no Brasil”.
Berenice Dias29 diz que :
sexualidade integra a própria condição humana. Ninguém pode realizar-se como ser humano, se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual como a liberdade da livre orientação sexual (...) A sexualidade é um elemento da própria natureza humana, seja individualmente, seja genericamente considerada. Sem liberdade sexual, sem o direito ao livre exercício da sexualidade, o próprio gênero humano não se realiza, do mesmo modo que ocorre quando lhe falta qualquer outra das chamadas liberdades ou direitos fundamentais.
Aída Kemelmajer de Carlucci30 comunga do mesmo entendimento, ao se pronunciar:
El derecho a la livre determinación de cada uno es considerado hoy um derecho humano. La circunstancia de que no este mencionado em el catálogo que contienen los tratados nacionales e internacionales sobre derechos humanos no significa que no exista. Así como existe um derecho a la livre determinación de los pueblos, existe um derecho a la livre determinación del individuo. El derecho a la orientación sexual como derecho a la livre determinación de cada uno aparece, cronologicamente, dentro de estos derechos de la tercera generación, cuando después de la segunda guerra mundial se toma conciencia de las discriminaciones contra estos grupo de personas; sin embargo, desde el punto de vista de su esencia, es um derecho que puede ser ubicado entre los derechos de la primera generación porque: 8 - Está intimamente conectado a los derechos a la privacidad, a la libertad individual, al derecho de asociación, etc. - No tiene costo econômico (inexpensive): cuesta mey pouco permitir que las personas capaces decidam ellos mismos com quien compartir sus sentimientos y deseos: permitirles el derecho a expresarse y a organizarse, etc. - Es esencialmente justiciable; permitir que alguien no sea discriminado por su orientación sexual no es uma acción extravagante, exótica. Por esto se ha dicho que, em realidad, el derecho a la orientación sexual no es algo revolucionário, sino estrictamente conservador.
Da mesma banda, se posiciona Roger Raupp Rios31 para quem:
Ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a um ser humano, em função da orientação sexual, significa dispensar tratamento indigno a um ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo (na qual, sem sombra de dúvida, inclui-se a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana.
O dano à existência da pessoa tem profundas raízes na violação de qualquer dos direitos fundamentais da pessoa, tutelados pela Constituição Federal ou no Código Civil. In casu, averiguamos o direito à livre orientação sexual. O desrespeito à diferença sexual corrói a personalidade do ser humano, sua existência nobre, seu direito à felicidade plena.32
Parece nos claro que o desrespeito ao direito à diferença sexual sugere mais do que mero gravame moral.
Convém se socorrer na doutrina italiana, destacadamente, de Matteo Maccarone33 , para quem:
o dano moral é essencialmente um ‘sentir’; o dano existencial é mais um ‘fazer’ (isto é um ‘não mais poder fazer’, um ‘dever agir de outro modo’). O primeiro refere - se quanto à sua natureza ao ‘dentro’ da pessoa, à esfera emotiva; o outro relaciona - se ao ‘exterior’, o tempo e espaço da vítima. No primeiro toma - se em consideração o pranto versado, as angústias; no outro as atenções se voltam para a reviravolta forçada da agenda do indivíduo.
E encerra Almeida Neto:
O dano existencial, em suma, causa uma frustração no projeto de vida do ser humano, colocando - o em uma situação de manifesta inferioridade – no aspecto de felicidade e bem estar – comparada àquela antes de sofrer o dano, sem necessariamente importar em um prejuízo econômico. Mais do que isso, ofende diretamente a dignidade da pessoa, dela retirando, anulando, uma aspiração legítima.
Seria possível, a título de mera exemplificação, elencar alguns comportamentos que alarmam para emersão da responsabilidade civil por dano existencial decorrente do desrespeito à orientação sexual minoritária. É claro que o elenco abaixo requer avaliação minudente e casuística, de trato multidisciplinar, apto a averiguar a ocorrência dos pressupostos necessários à configuração da responsabilidade civil. Reportemos algumas ocorrências constatadas na leitura forense, que sublinhe danos no projeto de vida de pessoas vitimas pela rejeição por conta da orientação sexual minoritária:
1. Problemas psicológicos e psiquiátricos nascidos de traumas juvenis, como o bullying escolar, social e, até, familiar – típica rotulação de que “Fulano é gay, não curte mulher...” e sua consequente marginalização;
2. Do item anterior, pode – se listar o comprometimento da autoestima, da autoconfiança, da autoimagem e da autoaceitação da pessoa. Daí, exsurgir formas diversas de drogadicção, relações afetivas inadequadas e intranquilas, desenvolvimento de transtornos mentais fundados no contexto juvenil. O suicídio.34 Não é um comportamento raro. Outrossim, a mercantilização do amor e a valorização do sexo pago são típicos comportamentos assimilados pelo contexto de constante rejeição social e de crença em um afeto dissimulado – rememoremos o caso de Marcela, a primeira namorada da personagem Brás Cubas, de Machado de Assis, outrora comentado;
3. Opressão e rejeição social, calcadas no preconceito disseminado por valores morais intolerantes, com exclusão laborativa, escolar, religiosa, de grupos sociais e da própria vida pública. Tais comportamentos são reforçados por ideologias segregacionistas, como algumas de ordem religiosas e outras, visivelmente, de caráter homofóbicas;
4. Abandono e troca do núcleo de colegas e amigos.
Retomemos julgado da Corte Suprema di Cassazione da Itália retrocitado que confere proteção as três fases (ou componentes) da orientação sexual: o comportamento, a inclinação e a comunicação.
Nas duas primeiras etapas, o sentimento de vergonha e de inaceitação da própria imagem levam o indivíduo “gay” a se distanciar de seu núcleo social originário – comum exemplo seria o do adolescente que, assistindo todos os seus amigos em busca de namoradas, sente aversão ao sexo oposto, não desejando namorar mulheres.
Se superadas tais fases, na terceira, a regra é inversa: tende o próprio grupo social, ou parte dele, a se distanciar do indivíduo “gay”, em decorrência da cultura pouco familiarizada as divergências sexuais. Imaginem, deste modo, que um jovem heterossexual imaturo necessite dividir um quarto de hotel com certo amigo “gay”.
5. O abandono da família sanguínea ou genética;
6. A dificuldade para construir outra família, de cunho afetivo, oriunda de uniões amorosas saudáveis;
7. Dificuldade na adoção de filhos, quando não, rejeição do adotado;
À guisa de conclusão, só resta lastimar que a postura do legislador é de total alheamento e incúria no tratamento do assunto. O Ministro Celso de Mello, com muita propriedade, aduziu que o Poder Legislativo, decerto influenciado por valores e sentimentos prevalecentes na sociedade brasileira, é infenso às questões de ordem homoafetiva. Não atua, desta sorte, no reconhecimento da união LGLS como entidade familiar. Existe, por sinal, à necessidade preemente de adequação do ordenamento nacional a essa realidade emergente das práticas e costumes sociais.
Outro Ministro, César Peluzo, sublinhou que o Poder Legislativo deve assumir a tarefa de reconhecer a entidade familiar homossexual, prevendo meios legais de tutela às minorias sexuais. Ao que parece, pontuou o ministro, até agora, o legislativo não se interessou em normatizar o tema.
Visivelmente, a construção, o reconhecimento e a tutela dos temas homoafetivos é, até então, obra da exegese judicial.
Peca o Poder Legislativo, pois torna a tripartição dos poderes em uma bipartição. O Estado Democrático de Direito, regido pela pluralidade de questões, pelo pluralismo social e, sobretudo, pela dignidade do homem, é relegado aos tribunais, que acabam por “invadir o campo de atuação do legislativo”.
Por fim, vivemos em um Estado Laico ou Secular, ladeado de valores humanos essenciais e prioritários. O pivô das relações sociojurídicas deve ser o homem em sua plenitude, não grupos minoritários submetidos às vontades hegemônicas de parcelas dominantes.
A resposta ao desrespeito suscitado neste trabalho encontra guarida no Poder Judiciário. Esta é a maior prova do declínio e da ineficiência do Poder Legislativo, atrelado a hegemonia das classes dominantes.
É, derradeiramente, a falência do próprio Estado Democrático de Direito, onde Direitos e Garantias Fundamentais são inusuais se cotejados com os interesses de ordem econômica.
O reconhecimento da Responsabilidade Civil por Desrespeito às Diversidades Sexuais será um trabalho um trabalho espinhoso e árduo, de índole eminentemente doutrinária e jurisprudencial. Não temos qualquer substrato legal: eis o desafio! Se lêssemos, ao menos, a atualidade do texto de Jorge Amado, talvez notaríamos, com clareza, o núcleo do tema: “Senhor, nesse mundo nenhum homem nasce por Decreto”.