É impossível, na Ciência do Direito, qualquer interpretação jurídica que não tenha carga valorativa do intérprete. Por isso, a expressão “autoridade policial” vem causando muita celeuma e um debate acirrado ultimamente, quanto ao significado e abrangência. Esse artigo tem por objetivo estritamente enfrentar e responder essa problematização sobre o termo “autoridade policial” para responder se o referido termo corresponde a qualquer agente de segurança pública e militar das forças armadas ou apenas ao Delegado de Polícia.
Provavelmente, a discussão acerca da interpretação extensiva dos vocábulos “autoridade policial”, ocorreu com a publicação da obra Juizados Especiais Criminais, comentários à Lei nº 9.099/95, de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes, que, ao interpretar o art. 69 da Lei 9.099/95, lecionavam:
Qualquer autoridade policial poderá ter conhecimento do fato que poderia configurar, em tese, infração penal. Não somente as polícias federal e civil, que têm a função institucional de polícia judiciária da União e dos Estados (art. 144, § 1º, in. IV, e § 4º), mas também a polícia militar. O legislador não quis – nem poderia – privar as polícias federal e civil das funções de polícia judiciária e de apuração das infrações penais. Mas essa atribuição – que só é privativa para a polícia federal, como se vê pelo confronto entre o inc. IV do § 1º do art. 144 e seu § 4º – não impede que qualquer outra autoridade policial, ao ter conhecimento do fato, tome as providências indicadas no dispositivo, até porque o inquérito policial é expressamente dispensado nesses casos (v. comentário ao § 1º do art. 77). (Grifei)
A melhor interpretação se forma não apenas sobre teses plausíveis, construídas com base em argumentos quase lógicos ou em argumentos que se fundam na estrutura do real, mas também sobre opiniões amplamente aceitas. Neste contexto, são as palavras de Luís Roberto Barroso acerca da interpretação, fenômeno que tem carga subjetiva do intérprete:
A interpretação não é um fenômeno absoluto ou atemporal. Ela espelha o nível de conhecimento e a realidade de cada época, bem como as crenças e valores do interprete, sejam os do contexto social em esteja inserido, sejam os de sua própria individualidade.
Interpretar é uma ação mediadora que procura compreender aquilo que foi dito ou escrito por outrem. Neste diapasão, para definir o conteúdo e alcance da expressão “autoridade policial”, há necessidade de seguir-se um método, uma via que nos leve a um conhecimento seguro e certo. Assim, método é o caminho que dever percorrido para a aquisição da verdade, ou por outras palavras, de um resultado exato ou rigorosamente verificado. Sem método não há ciência.
Sendo assim, o método dedutivo é um caminho, para construir toda a sistemática interpretativa, com fulcro na legislação, doutrina e jurisprudência para chegar ao resultado que o vocábulo “autoridade policial”, refere-se exclusivamente e tão somente ao Delegado de Polícia. É opção do legislador, uma vez que tal agente público tem participação ativa na persecução penal, desempenhado funções de Polícia Judiciária, conferida pela Constituição Federal, nos termos do art. 144, §§1º e 4º. A Constituição Federal é necessária para partir dessa premissa, pois é de onde se irradia toda a legislação infraconstitucional, para qualquer construção de raciocínio lógico dedutivo:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
(...)
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. (grifo nosso)
A Constituição Federal confere as competências, sentido de atribuição, ao Delegado de Polícia, para exercerem as funções de polícia judiciária. Desse modo, fazendo uma interpretação sistemática do art. 4º do Código de Processo Penal como o art. 10, §3º do Código de Processo Penal de Militar (CPPM), logo se percebe claramente, sem qualquer margem de dúvidas, que os militares (policiais militares e militares das forças armadas), não são “autoridades policiais”, In verbis :
art. 4º do Código de Processo Penal
“A policia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”.
Código de Processo Penal de Militar (CPPM),
Art. 10 (...)
Infração de natureza não militar
§ 3º Se a infração penal não fôr, evidentemente, de natureza militar, comunicará o fato à autoridade policial competente, a quem fará apresentar o infrator. Em se tratando de civil, menor de dezoito anos, a apresentação será feita ao Juiz de Menores. (Sic) (Grifei e negritei).
Portanto, art.10, §3º do Código de Processo Penal Militar deixa claro que militar não é “autoridade policial”. Este dispositivo da legislação castrense, é uma regra que determina que se o fato não é crime militar, em outras palavras, se fato criminosos não se enquadra na moldura típica de algum dispositivo incriminador do Código Penal Militar, cabe ao delegado de polícia, Federal ou Civil, tomar conhecimento do fato, e fazer a análise técnico-jurídica do fato, para adotar as providências necessárias para apuração da autoria e prova da materialidade.
Avançando sobre o tema, cabe destacar que apenas alguns militares são denominados de “autoridade militar”, as quais exercem atividades de polícia judiciária militar, quando elas desempenham as atribuições previstas no art. 8º, do Código de Processo penal Militar:
Exercício da polícia judiciária militar
Art. 7º A polícia judiciária militar é exercida nos têrmos do art. 8º, pelas seguintes autoridades, conforme as respectivas jurisdições:
a) pelos ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, em todo o território nacional e fora dêle, em relação às fôrças e órgãos que constituem seus Ministérios, bem como a militares que, neste caráter, desempenhem missão oficial, permanente ou transitória, em país estrangeiro;
b) pelo chefe do Estado-Maior das Fôrças Armadas, em relação a entidades que, por disposição legal, estejam sob sua jurisdição;
c) pelos chefes de Estado-Maior e pelo secretário-geral da Marinha, nos órgãos, fôrças e unidades que lhes são subordinados;
d) pelos comandantes de Exército e pelo comandante-chefe da Esquadra, nos órgãos, fôrças e unidades compreendidos no âmbito da respectiva ação de comando;
e) pelos comandantes de Região Militar, Distrito Naval ou Zona Aérea, nos órgãos e unidades dos respectivos territórios;
f) pelo secretário do Ministério do Exército e pelo chefe de Gabinete do Ministério da Aeronáutica, nos órgãos e serviços que lhes são subordinados;
g) pelos diretores e chefes de órgãos, repartições, estabelecimentos ou serviços previstos nas leis de organização básica da Marinha, do Exército e da Aeronáutica;
h) pelos comandantes de fôrças, unidades ou navios; (sic)
Desse modo, as autoridades militares, apenas as arroladas no art. 7º do Código de Processo Penal Militar, têm competências, o sentido de atribuições, para apurar os crimes militares, conforme art.8º, do Código Penal Militar:
Competência da polícia judiciária militar
Art. 8º Compete à Polícia judiciária militar:
a) apurar os crimes militares, bem como os que, por lei especial, estão sujeitos à jurisdição militar, e sua autoria;
b) prestar aos órgãos e juízes da Justiça Militar e aos membros do Ministério Público as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos, bem como realizar as diligências que por êles lhe forem requisitadas;
c) cumprir os mandados de prisão expedidos pela Justiça Militar;
d) representar a autoridades judiciárias militares acêrca da prisão preventiva e da insanidade mental do indiciado;
e) cumprir as determinações da Justiça Militar relativas aos presos sob sua guarda e responsabilidade, bem como as demais prescrições dêste Código, nesse sentido;
f) solicitar das autoridades civis as informações e medidas que julgar úteis à elucidação das infrações penais, que esteja a seu cargo;
g) requisitar da polícia civil e das repartições técnicas civis as pesquisas e exames necessários ao complemento e subsídio de inquérito policial militar;
h) atender, com observância dos regulamentos militares, a pedido de apresentação de militar ou funcionário de repartição militar à autoridade civil competente, desde que legal e fundamentado o pedido. (Grifei e sublinhei)
Portanto, não é todo e qualquer policial militar ou militar das forças armadas que é “autoridade militar”. É necessário que o militar seja uma das autoridades elencadas no art. 7º do Código de Processo Penal Militar, já que somente essas autoridades têm a competência, no sentido atribuições, de exercer as atribuições de polícia judiciária militar, as quais se restringem aos crimes militares.
Superada a distinção entre autoridade policial e autoridade militar, passamos a interpretar o art. 69 da Lei nº 9099/95. Assim, está escrito o referido artigo: "A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e encaminhará imediatamente ao Juizado com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários." (grifo nosso). Isso significa que apenas o Delegado de Polícia é competente para a lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). Desse modo, o delegado de polícia, após fazer um juízo técnico-jurídico do fato que foi levado ao seu conhecimento, tomara a decisão se o fato é um ilícito penal (crime ou contravenção penal) e de menor potencial ofensivo.
Sendo assim, após a análise técnicojurídica do fato, o delegado entender que fato é crime, em tese, e não é de menor potencial ofensivo, ele autua o conduzido em flagrante delito. Sobre a decisão a lavratura do auto de prisão em flagrante, é basilar o ensinamento de Julio Fabbini Mirabete;
Ao receber o preso e as notícias a respeito do fato tido como criminoso, a autoridade policial deverá analisar estes e os elementos que colheu, com muita cautela, a fim de verificar se é hipótese de lavrar o auto de prisão em flagrante. A prisão não implica obrigatoriamente a lavratura do auto, podendo a autoridade policial, por não estar convencida da existência de infração penal ou por entender que não houve situação de flagrância, conforme for a hipótese, dispensar a lavratura do auto, determinar a instauração de inquérito policial para apurar o fato, apenas registrá-lo em boletim de ocorrência etc., providenciando então a soltura do preso.
Para esclarecer ainda mais, os Tribunais têm decido que o Delegado de Policia é a autoridade competente que deve analisar os fatos para decidir a infração penal é de menor potencial ofensivo ou não:
A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o Delegado de Polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante. (RT, 679/351).
A autoridade policial goza de poder discricionário de avaliar se efetivamente está diante de notícia procedente, ainda que em tese e que avaliados perfunctoriamente os dados de que dispõe, não operando como mero agente de protocolo, que ordena, sem avaliação alguma, flagrantes e boletins indiscriminadamente. (RJTACRIM, 39/341).
É bastante interessante o escrito de Romeu de Almeida Salles Júnior, obra clássica escrita em 1986, sobre o tema:
Geralmente, a pessoa interessada – quase sempre a vítima- procura a Delegacia de Polícia e verbalmente comunica a ocorrência de um fato com as características de crime. Assim, o Delegado de Polícia, de pronto toma conhecimento do fato.
(...)
É que, se o crime noticiado for de ação penal pública incondicionada, a autoridade policial pode instaurar inquérito sem qualquer manifestação especifica por parte do interessado. Se a ocorrência versar sobre crime de ação penal privada, somente com manifestação expressa do ofendido ou seu representante legal, solicitando a abertura do inquérito, é que a autoridade policial terá condições de agir.” (grifei)
Fernando da Costa Tourinho Filho, ao comentar acerca das atribuições da Polícia Judiciária, esclarece que essas funções ficam a cargo da autoridade policial, o qual é o Delegado de Polícia.
Essas funções da Polícia Judiciária são exercidas pelas autoridades policiais, os Delegados de Polícia. Como o território do Estado é vasto, para melhor administração, é ele divido em pequenas áreas territoriais, denominadas distritos, municípios, comarcas. E, nessas áreas territoriais, o Estado mantém um certo número de autoridade policiais para exercerem, dentro dos seus respectivos limites, as funções que lhe são cometidas. Assim, o Delegado de Polícia de Rincão, distrito de Araraquara, é a autoridade policial competente para investigar as infrações penais acaso cometidas naquela aérea territorial.
Ao buscar na doutrina moderna, Guilherme de Souza Nucci interpretando a Lei nº 9099/95, que tratada dos Juizados Especiais criminais, escreve a autoridade policial é apenas o delegado de polícia:
Autoridade policial: na realidade é apenas o delegado de policia, estadual ou federal. Policiais civis ou militares constituem agentes da autoridade policial. Portanto, o correto é que o termo circunstanciado seja lavrado apenas pelo delegado.
A Lei nº 9099/95, art. 90, exclui dos Juizados Especiais Criminais todos os crimes militares, mesmos que sejam de menor potencial ofensivo. Por exemplo, o militar que for surpreendido, dentro do quartel, com droga para consumo pessoal, será autuado em flagrante delito, uma vez que não cabe na Justiça Militar, o Termo Circunstanciado de Ocorrência, e se o crime militar a pena máxima ultrapassar a 02 (dois) anos, não há arbitramento de fiança, conforme previsão legal, art. 324, II do Código de Processo Penal.
As palavras de Julio Fabbrini Mirabete acerca da autoridade competente para a lavratura do Termo Circunstanciado são esclarecedoras:
Na legislação processual comum, aliás, só são conhecidas duas espécies de “autoridades”: a autoridade policial, que é o Delegado de Polícia, e a autoridade judiciária, que é o juiz de Direito. Somente o Delegado de Polícia e não qualquer agente público investido de função preventiva ou repressiva tem, em tese, formação técnica profissional para classificar infrações penais, condição indispensável para que seja o ilícito praticado incluído ou não como infração penal de menor de potencial ofensivo. Somente o Delegado de Polícia pode dispensar a atuação em flagrante delito, nos casos em que se pode evitar tal providencia, ou determinar a autuação quando o autor do fato não se comprometer ao comparecimento em juízo, arbitrando fiança quando for o caso.
Na Lei que tratada dos Juizados Especiais, em nenhum dos seus artigos, refere-se a outros agentes públicos atribuição para a Lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência.
Para arrematar o tema, interpretação do art. 69, da Lei nº 9099/95, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI nº 3.614, AM, que teve como redatora para o acórdão a Ministra Cármen Lúcia, pacificou o entendimento segundo o qual a atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar. Na oportunidade o acórdão restou assim ementado:
RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PERANTE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL. LEI ESTADUAL Nº 3.514/2010. POLÍCIA MILITAR. ELABORAÇÃO DE TERMO CIRCUNSTANCIADO. IMPOSSIBILIDADE. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA. ATRIBUIÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA – POLÍCIA CIVIL. PRECEDENTE. ADI Nº 3.614. INVIABILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.1. A repercussão geral pressupõe recurso admissível sob o crivo dos demais requisitos constitucionais e processuais de admissibilidade (art. 323 do RISTF).2. Consectariamente, se o recurso é inadmissível por outro motivo, não há como se pretender seja reconhecida “a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso” (art. 102, III, § 3º, da CF).3. O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, ao julgar a ADI nº 3.614, que teve a Ministra Cármen como redatora para o acórdão, pacificou o entendimento segundo o qual a atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar.4. In casu, o acórdão recorrido assentou:ADIN. LEI ESTADUAL. LAVRATURA DE TERMO CIRCUNSTANCIADO DE OCORRÊNCIA. COMPETÊNCIA DA POLÍCIA CIVIL. ATRIBUIÇÃO À POLÍCIA MILITAR. DESVIO DE FUNÇÃO. OFENSA AOS ARTS. 115 E 116 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTES.- O dispositivo legal que atribui à Polícia Militar competência para confeccionar termos circunstanciado de ocorrência, nos termos do art. 69 da Lei nº 9.099/1995, invade a competência da Polícia Civil, prevista no art. 115 da Constituição do Estado do Amazonas, e se dissocia da competência atribuída à Polícia Militar constante do art. 116 da Carta Estadual, ambos redigidos de acordo com o art. 144, §§ 4º e 5º, da Constituição Federal.5. O aresto recorrido não contrariou o entendimento desta Corte.6. Recursos extraordinários a que se nega seguimento. Decisão: Trata-se de recursos extraordinários interpostos pelo GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAZONAS, PELO PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO AMAZONAS e pela ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO AMAZONAS, todos com fundamento no disposto no artigo 102, III, a,da Constituição Federal, contra acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, assim do (fl. 158): ADIN. LEI ESTADUAL. LAVRATURA DE TERMO CIRCUNSTANCIADO DE OCORRÊNCIA. COMPETÊNCIA DA POLÍCIA CIVIL. ATRIBUIÇÃO À POLÍCIA MILITAR. DESVIO DE FUNÇÃO. OFENSA AOS ARTS. 115 E 116 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTES. - O dispositivo legal que atribui à Polícia Militar competência para confeccionar termos circunstanciado de ocorrência, nos termos do art. 69 da Lei nº 9.099/1995, invade a competência da Polícia Civil, prevista no art. 115 da Constituição do Estado do Amazonas, e se dissocia da competência atribuída à Polícia Militar constante do art. 116 da Carta Estadual, ambos redigidos de acordo com o art. 144, §§ 4º e 5º, da Constituição Federal. Na origem, o Procurador Geral de Justiça, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto é o inciso VIII, § 3º, da Lei 3.514/2010, do Estado do Amazonas, que prevê a possibilidade da Polícia Militar, no âmbito de sua jurisdição,confeccionar Termo Circunstanciado de Ocorrência. Asseverou que o disposto contido no mencionado inciso viola a Constituição Estadual, pois ao tratar sobre segurança pública, consoante determinação da Carta Magna, disciplinou e organizou as Polícias Civil e Militar, exatamente como balizada na Constituição. Sustentou que “ao atribuir à Polícia Militar a elaboração de Termo Circunstanciado, invadiu a esfera de competência da Polícia Civil” (fl. 05). O pedido foi julgado procedente alegando-se a usurpação de competência, consoante ementa supra mencionada. Opostos embargos de declaração, foram rejeitados. Na sequência houve interposição de recursos extraordinários. Nas razões recursais do Governador do Estado do Amazonas, bem como do Procurador-Geral do Estado do Amazonas, sustenta-se a violação ao artigo 144, §§ 4º, 5º e 7º, da Constituição Federal, sob o fundamento de que a elaboração de Termo Circunstanciado pela Polícia Militar não é trabalho investigativo, mas sim simples registro de fatos. A Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, nas razões do apelo extremo, aponta violação ao artigo 144, §§ 4º, 5º e 7º, sustentando, em síntese que “cabe às Polícias Militares a preservação da ordem pública, competência ampla e que engloba, nclusive, a competência específica dos demais órgãos policiais” (fl. 273). É o relatório. DECIDO. Ab initio, a repercussão geral pressupõe recurso admissível sob o crivo dos demais requisitos constitucionais e processuais de admissibilidade (art. 323 do RISTF). Consectariamente, quando a ofensa for reflexa ou mesmo quando a violação for constitucional, mas necessária a análise de fatos e provas, não há como se pretender seja reconhecida a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso (art. 102, III, § 3º, da CF). O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI nº 3.614, que teve como redatora para o acórdão a Ministra Cármen Lúcia, pacificou o entendimento segundo o qual a atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar. Na oportunidade o acórdão restou assim ementado: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. DECRETO N. 1.557/2003 DO ESTADO DO PARANÁ, QUE ATRIBUI A SUBTENENTES OU SARGENTOS COMBATENTES O ATENDIMENTO NAS DELEGACIAS DE POLÍCIA, NOS MUNICÍPIOS QUE NÃO DISPÕEM DE SERVIDOR DE CARREIRA PARA O DESEMPENHO DAS FUNÇÕES DE DELEGADO DE POLÍCIA. DESVIO DE FUNÇÃO. OFENSA AO ART. 144, CAPUT, INC. IV E V E §§ 4º E 5º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE. Especificamente sobre o tema, colhem-se trechos dos votos dos ministros: O problema grave é que, antes da lavratura do termo circunstanciado, o policial militar tem de fazer um juízo jurídico de avaliação dos fatos que lhe são expostos. É isso o mais importante do caso, não a atividade material de lavratura. (Ministro Cezar Peluso). A meu sentir, o Decreto, como está posto, viola claramente o § 4º do artigo 144 da Constituição Federal, porque nós estamos autorizando que, por via regulamentar, se institua um substituto para exercer a função de polícia judiciária, mesmo que se transfira a responsabilidade final para o delegado da Comarca mais próxima. Isso , pelo contrário, a meu ver, de exceção gravíssima na própria disciplina constitucional. (Ministro Menezes Direito). Parece-me que ele está atribuindo a função de polícia judiciária aos policiais militares de forma absolutamente vedada pelos artigos 144, §§ 4º e 5º da Constituição. (Ministro Ricardo Lewandowski). Observe-se que o aresto recorrido não divergiu do entendimento desta Corte. Ex positis, NEGO SEGUIMENTO aos recursos extraordinários, com fundamento no artigo 21, § 1º, do RISTF. Publique-se. Brasília, 28 de agosto de 2012.Ministro Luiz FuxRelatorDocumento assinado digitalmente(STF - RE: 702617 AM, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 28/08/2012, Data de Publicação: DJe-173 DIVULG 31/08/2012 PUBLIC 03/09/2012)
Portanto, o art. 69 da Lei nº 9099/95 é o centro nefrálgico de toda a discussão acerca do significado e alcance da expressão “autoridade policial.” Sendo assim, após demonstrar que autoridade policial é apenas o delegado de polícia, deve o interprete, ao se depara com essa expressão, a qual consta diversos diplomas legais, ler: Delegado de Polícia.
A Lei nº 12.830/13 deixa claro que a autoridade policial é apenas o delegado de polícia, pois cabe exclusivamente a essa autoridade a condução de investigação criminal e as funções de polícia judiciária:
Art. 2o As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
§ 1o Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
Não resta qualquer dúvida de que a autoridade policial, que se refere à legislação infraconstitucional, é só o Delegado de Polícia. Diante disso, por melhor técnica legislativa, o legislador passou a optar pela expressão “delegado de polícia”, em substituição “autoridade policial”, para dirimir quaisquer dúvidas acerca das atribuições das autoridades envolvidas na persecução penal, como exemplo, a Lei nº 11.343/06, (Lei de drogas):
Art. 32. As plantações ilícitas serão imediatamente destruídas pelo delegado de polícia na forma do art. 50-A, que recolherá quantidade suficiente para exame pericial, de tudo lavrando auto de levantamento das condições encontradas, com a delimitação do local, asseguradas as medidas necessárias para a preservação da prova. (Redação dada pela Lei nº 12.961, de 2014).
(...)
Art. 50. Ocorrendo prisão em flagrante, a autoridade de polícia judiciária fará, imediatamente, comunicação ao juiz competente, remetendo-lhe cópia do auto lavrado, do qual será dada vista ao órgão do Ministério Público, em 24 (vinte e quatro) horas.
§ 4o A destruição das drogas será executada pelo delegado de polícia competente no prazo de 15 (quinze) dias na presença do Ministério Público e da autoridade sanitária. (Incluído pela Lei nº 12.961, de 2014)
§ 5o O local será vistoriado antes e depois de efetivada a destruição das drogas referida no § 3o, sendo lavrado auto circunstanciado pelo delegado de polícia, certificando-se neste a destruição total delas. (Incluído pela Lei nº 12.961, de 2014)
(...)
Art. 72. Encerrado o processo penal ou arquivado o inquérito policial, o juiz, de ofício, mediante representação do delegado de polícia ou a requerimento do Ministério Público, determinará a destruição das amostras guardadas para contraprova, certificando isso nos autos. (Redação dada pela Lei nº 12.961, de 2014). (Grifo nosso)
Também na Lei nº 12.850/13, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal, passa a utilizar a expressão “delegado de Polícia”, conforme alguns dispositivos transcritos:
Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
(...)
§ 2o Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).
(...)
§ 6o O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.
(...)
§ 9o Depois de homologado o acordo, o colaborador poderá, sempre acompanhado pelo seu defensor, ser ouvido pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia responsável pelas investigações.(Grifo nosso)
A polícia judiciária, por exercer função essencial à administração da justiça criminal, é dirigida pelo Delegado de Polícia de Carreira, conforme exigência constitucional assentada no art. 144,§4º, da Carta Magna. Por isso, de acordo com a Lei 12.830/13, o cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito e carreira jurídica. Desse modo, faz o Brasil um país avançado na seara da Justiça criminal, uma vez que as atribuições do Delegado de Polícia não se resumem ao mero ato de investigar, executar diligências, comandar operações policiais. O delegado de policia tem capacidade postulatória para requer ao Juiz de Direito diversas medidas cautelatórias, tais como prisão preventiva, prisão temporária, busca e apreensão, quebra de sigilo telefonia e tantas outras. Destaca-se ainda que além das funções de polícia judiciária e investigativa, o delegado de polícia desempenha e executa atividades de direção, supervisão, coordenação, planejamento, orientação, execução e controle da administração da polícia judiciária bem como outras atribuições previstas na Lei do cargo.
Essa pesquisa bibliográfica e documental focadas no estudo dogmático, pautado na legislação, doutrina, jurisprudência, isento de qualquer carga ideológica e corporativista, conclui-se que não há razões para interpretações extensivas para a expressão “autoridade policial”, constante na legislação infraconstitucional. Por isso, é interessante o ensinamento do ilustre jurista italiano Norberto Bobbio que diz:
Ora, a característica da fundamental da ciência consiste em sua avaloratividade, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízos de valor e rigorosa exclusão destes últimos do campo cientifico: a ciência consiste somente em juízos de fato. O motivo dessa distinção e exclusão reside na natureza diversa desses dois tipos de juízo: o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro a minha constatação; o juízo de valor representa, ao contrário, uma tomada de posição frente à realidade, visto que sua formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir sobre o outro, isto é, de fazer com o outro realize uma escolha igual à minha e, eventualmente, siga certas prescrições minhas. (sic).
Portanto, à luz da Constituição Federal e da sistemática jurídica brasileira, conclui-se, que a autoridade policial é apenas o Delegado de Polícia, e só ele pode lavrar o termo circunstanciado, previsto no art. 69, da Lei nº9099/95. Sendo assim, os agentes públicos que efetuarem a prisão em flagrante de qualquer pessoa devem encaminhar imediatamente as partes envolvidas para a Delegacia de Policia para serem adotas as providências que o caso requer.
É preciso que as peças de expedientes assinadas pelo Delegado de Polícia, não mencionem o termo “autoridade policial”, se bem que o Legislador sempre opte sempre pela expressão “delegado de polícia”, em substituição à “autoridade policial”, por questões de técnica legislativa, fins de evitar usurpação de funções previstas na Lei, bem como para preservar as garantias dos direitos fundamentais do cidadão.
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