É sabido que, no dia 31 de agosto de 2.016[1], o Senado da República deliberou acerca do processo de impeachment da Presidente Dilma Vana Rousseff. Contudo, a partir de uma decisão, que, do ponto de vista dogmático-constitucional, é bastante heterodoxa, entendeu-se por bem dissociar a questão relativa à perda do mandato de Presidente da República daquela referente à perda dos direitos políticos da ré.
Tal decisão, da lavra do Ministro Ricardo Levandowski, que, na condição de Presidente do Supremo Tribunal Federal, fora responsável pela condução do julgamento em questão, foi decorrência de um requerimento feito pelo Partido dos Trabalhadores, por meio do senador Humberto Costa (PT-PE).
Como resultado de tal fatiamento, o país observou situação inédita, com resultado bastante diverso daquele estabelecido quando da cassação do então Presidente Fernando Collor de Mello: enquanto a perda de mandato foi aprovada com larga margem, por 60 votos a favor e 21 contrários, a inabilitação para ocupação de cargos públicos acabou por ser rechaçada: 42 senadores foram favoráveis a ela e 36 foram contrários, tendo ocorrido ainda três abstenções. Há que se frisar que, em conformidade com o que dispõe o artigo 52, parágrafo único, da Constituição da República Federativa do Brasil, qualquer decisão relacionada a julgamento de crime de responsabilidade (como é o caso) dar-se-á com a obtenção de uma maioria de dois terços dos senadores, o que, considerando-se a composição do Senado Federal, corresponde a 54 senadores.
Ab initio, impende insistir no fato de que a decisão do Ministro Levandowski não é usual. A leitura atenta do mencionado artigo 52 da Constituição não parece dar margem hermenêutica para permitir a análise das sanções em separado. Senão vejamos:
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;
II processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade;
(...)
Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.
Ora, a leitura combinada do caput do art. 52 com seu parágrafo único é expressa ao indicar que a caracterização de crime de responsabilidade dar-se-á por meio de uma votação no âmbito do Senado Federal, observando-se o quórum constitucionalmente estabelecido.
Caracterizado o crime, pela subsunção do fato ao tipo penal em questão, imperiosa a aplicação da sanção normativamente determinada: “perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”.
Ou seja, trata-se de uma única pena, decorrente de um único crime, com desdobramentos diversos. Não há duas penas, nem concurso de crimes que, eventualmente, poderiam ou não ensejar em um combinado de punições.
Os fatos a serem julgados eram os crimes de responsabilidade. Caracterizado o crime, e realizando-se a subsunção dos fatos à norma, é decorrência lógica a aplicação da punibilidade relativa àquela conduta.
Para fins ilustrativos, imaginemos a seguinte sentença:
“Se A, então B e C”.
Delas, se extrai as seguintes conclusões:
1) “Se A, então B”.
2) “Se A, então C”.
Ora, nos parece que, dentro de nosso panorama lógico, o Senado da República, em decisão respaldada pelo Ministro Lewandowski, aceitou a sentença-premissa bem como a conclusão 1, mas rechaçou a conclusão 2.
Temos que, se tal julgamento se desse no âmbito de um tribunal do júri, poder-se-ia dizer que ocorreu a hipótese disposta no art. 490 do Código de Processo Penal:
Art. 490. Se a resposta a qualquer dos quesitos estiver em contradição com outra ou outras já dadas, o presidente, explicando aos jurados em que consiste a contradição, submeterá novamente à votação os quesitos a que se referirem tais respostas.
O curioso, neste caso, é que o próprio presidente do julgamento, ao deferir pleito do Senador Humberto Costa, concorreu para a obtenção do resultado ocorrido, ao invés de diligenciar para evitar tal contradição lógico-jurídica, como deveria fazê-lo se estivesse contexto de um tribunal de júri.
Seja como for, e mediante o panorama que se afigura, parece-nos seguro inferir que existirão irresignações quanto ao resultado obtido. Foram, neste sentido, aliás, as declarações do Senador Roberto Caiado.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, bem como algumas declarações dos Ministros apresentadas em diversas ocasiões em que estes foram instados a se manifestar, indicam o entendimento do Pretório Excelso de que há soberania do plenário do Senado quanto às decisões de mérito proferidas por aquele órgão, em sede de julgamento de crime de responsabilidade.
Por outro lado, a mesma Corte indicou pela possibilidade de reforma de decisões procedimentais, especialmente no que se refere ao rito.
Daí, parece-nos razoável supor que, se o Supremo Tribunal Federal apresentar coerência com seu posicionamento histórico, o mesmo entenderá pela sua incompetência para rever o resultado de quaisquer das votações. Por outro lado, em se tratando de questão procedimental, temos que a divisão das votações poderia ser objeto de eventual revisão pela Corte, se a mesma entender que o rito do impeachment se deu em desconformidade com aquilo constitucionalmente disposto. Sendo o caso, a conclusão lógica de tal desconformidade seria a nulidade de ambos os sufrágios, forçando nova rodada de votação, a fim de, conjuntamente, deliberar-se acerca da aplicação ou não das sanções contidas no art. 52, parágrafo único, da Constituição Federal.
Importa salientar, aliás, que a solução de um novo julgamento, em detrimento de uma reforma de uma ou de outra das sentenças, é coerente com a manifestação de vontade proferida pelos Senadores. Por outro lado, uma reforma de mérito, pela qual fosse determinada a perda dos direitos políticos em razão da primeira votação[2], seria incongruente com a manifestação de vontade parlamentar.
O resultado das eleições demonstra a existência de senadores que votaram pela cassação de mandato presidencial, sem perda dos direitos políticos. A manifestação de vontade de tais senadores, em cada uma das votações ocorridas no âmbito do Senado, foi cristalina. E, por óbvio, não se pode dizer que estes senadores votariam pela cassação do mandato presidencial, se, tal qual estabelece o texto da Constituição Federal, o trâmite de votação não a tivesse dissociado da perda dos direitos políticos.
Assim, não se pode dizer o quão preponderante para estes Senadores foi a possibilidade de manifestar a vontade em apartado acerca da perda dos direitos políticos. Também não se pode dizer que a perda dos direitos políticos é necessariamente secundária em face da cassação do mandato: é razoável supor que, eventualmente, algum destes senadores tivesse convicção pela impossibilidade da perda de direitos políticos, ocasião em que a votação favorável à interrupção do mandato só teria sido possível pela separação entre as duas deliberações.
Em outras palavras, temos que a formulação da vontade parlamentar pode ter sido influenciada pelo procedimento de apartamento das votações. Inexiste, no contexto em que ocorreu a votação, a existência de, ao menos, 54 manifestações de vontade direcionadas de modo a ensejar tanto a condenação à perda do cargo quanto, igualmente, dos direitos políticos.
Assim, é de se concluir que não cabe ao Supremo Tribunal Federal deliberar pela nulidade de uma das vontades proferidas pelo plenário do Senado, vinculando ambas as decorrências da sanção prevista no art. 52, parágrafo único, à outra das manifestações de vontade. O eventual reconhecimento de nulidade do procedimento de votação em apartado, neste sentido, implica na nulidade por arrastamento de ambas as deliberações, de tal sorte a se fazer necessária uma nova votação, em que os Senadores manifestar-se-iam expressamente – através de uma demonstração inequívoca de vontade - acerca da viabilidade político-jurídica de serem aplicadas ambas as consequências constitucionais do crime de responsabilidade.
Nota
[1] Data em que o presente texto foi escrito e publicado, aliás.
[2] Não há que se falar, a nosso ver, em reforma para afastar a cassação, em razão de falta de interesse recursal. A moção pela qual a votação em apartado foi solicitada foi requerida pelo Partido dos Trabalhadores, ao qual se integra a Presidente Dilma Rousseff. Ou seja, é razoável dizer tal pedido parte da Defesa, e não da Acusação.
A nulidade, por conseguinte, é decorrência de um pedido da defesa; se esta arguisse aquela, estaria se beneficiando da própria torpeza, em manifesta deslealdade processual, o que não pode ser tolerado pelo ordenamento. Afinal, na hipótese, a defesa arguiria uma nulidade ocasionada de forma deliberada por ela própria.