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Ronald Dworkin: desmistificando eutanásia e aborto

O presente artigo visa fornecer um estudo sobre aspectos relevantes, do ponto de vista ético, da obra “Domínio da Vida: Aborto, eutanásia e liberdades individuais” do filósofo norte-americano Ronald Dworkin.

RESUMO

O presente artigo visa fornecer um estudo sobre aspectos relevantes, do ponto de vista ético, da obra “Domínio da Vida: Aborto, eutanásia e liberdades individuais” do filósofo norte-americano Ronald Dworkin. Vislumbram-se como a alegação da existência de direitos e interesses fetais é uma falácia e envereda-se pela densa teoria do valor intrínseco, sagrado e inviolável da vida, entendida do ponto de vista da integridade e dos limites da natureza.

Palavras-Chave: Eutanásia; Aborto; Ética; Ronald Dworkin.

INTRODUÇÃO

Discute-se nesse artigo o problema ético do aborto e da eutanásia utilizando como ponto norteador o pensamento discursivo e crítico de Ronald Dworkin em sua obra “Domínio da Vida: Aborto, eutanásia e liberdades individuais”. Entretanto, não se adentrará no mérito político, bem como não serão discutidos os óbices legais brasileiros à prática do aborto e da eutanásia. Pelo contrário, adotar-se-á uma perspectiva da moralidade e do Direito Constitucional em detrimento da discussão (errônea) de direitos do feto ou do enfermo.

            Será pautada aqui a necessidade de individualização e relativização das conclusões acerca do assunto. Pois se entende que a liberdade individual e a autonomia devem ser fatores centrais na discussão das práticas abortivas ou da eutanásia, devendo estas, essencialmente, serem situadas na seara de decisão personalíssima, ou seja, da consciência.

Desse modo, compreende-se que, em um mundo ideal, o Estado deveria ficar apartado dessa equação, não cabendo aos seus agentes a determinação absoluta do que seria “certo ou errado”, pois acabaria por cessar a possibilidade de escolha. 

            Finalmente, buscar-se-á compreender como a sacralização da vida humana e a interferência religiosa também influenciam no tema aqui proposto – sendo relevantes tanto do ponto de vista filosófico quanto constitucional.

Para tanto, serão utilizados como guias os critérios de escolha realçados por Ronald Dworkin, entre eles, a importante diferenciação entre o pensamento “independente” e o “derivativo”.

Ressalte-se, por fim, que não serão incluídas no presente trabalho as posturas totalitaristas tão atuantes e conhecidas ao longo da história, isto é, não trataremos do assunto do ponto de vista da dualidade simplista defendida pelos grupos extremistas pró-vida versus pró-escolha.

EUTANÁSIA E ABORTO ETICAMENTE DISCUTIDOS NA OBRA "DOMÍNIO DA VIDA"

A discussão moral do aborto e da eutanásia não pode levar em conta argumentos ou explicações de cunho meramente pragmático, ou seja, não é possível concluir que o aborto ou a eutanásia são aceitáveis apenas porque têm significativa incidência prática; ou que as condições inadequadas em que são praticadas justificariam por si só a sua legalização.  

Deve-se, em vez disso, procurar uma fundamentação pormenorizada dos comportamentos e pensamentos dos sujeitos submetidos a essas situações e não simplesmente relacionar aspectos do Direito Penal de um determinado país como parâmetro para o posicionamento acerca do assunto.

Ronald Dworkin questiona em “Domínio da Vida: Aborto, eutanásia e liberdades individuais” a existência ou não de direitos individuais inerentes ao feto. Para ele, aqueles que acreditam na existência desses direitos individuais dos nascituros possuem um pensamento derivativo.

O autor, então, faz uma importante observação: ele relaciona a questão dos direitos do feto à possibilidade ou não de se atribuir personalidade aos nascituros, pois, para Dworkin, só é possível falar em direitos quando existirem interesses. E não se pode falar em interesses individualizados quando não há consciência ou qualquer vida mental propriamente dita por parte do indivíduo a que nos referimos. Ele acredita que esses interesses devem ser tomados de forma atual, não podendo ser levado em conta o interesse futuro ou potencial por tratar-se de evento incerto.

O autor ressalta que, nos Estados Unidos, a Constituição não estende aos nascituros, de forma expressa, a condição de pessoa titular de direitos. E vai ainda mais além, ao lembrar que os direitos de uma pessoa juridicamente reconhecida (a mãe) só podem ser restritos quando outra pessoa também estiver envolvida. O que não ocorre quando o pretenso sujeito passivo da questão é um nascituro.

Nesse sentido, defende Dworkin:

não é raro que os conservadores em matéria de aborto também admitam outras exceções. Para alguns deles, o aborto é moralmente permissível não apenas para salvar a vida da mãe, mas também quando a gravidez é resultado de estupro ou incesto. Quanto mais se admitem tais exceções, mais claro se torna que a oposição conservadora ao aborto não pressupõe que o feto seja uma pessoa com direito à vida (DWORKIN, 2003, p. 43-44).

 Em geral, os adeptos do pensamento derivativo entendem que ninguém pode ameaçar o direito à vida inerente ao feto (em razão da condição de pessoa e titular de direitos e deveres que ele teria adquirido a partir da sua concepção) e, portanto, endossam o dever do Estado de defender esses direitos e interesses, mesmo que, para isso, eles tenham que ser sobrepostos aos interesses maternos.

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Em contrapartida a essa abordagem, Dworkin começa a explicar outra corrente de pensamento: o independente.

Para que se entenda esse pensamento, primeiramente é necessário compreender a classificação de Dworkin acerca dos valores atribuídos a algo: o primeiro deles seria o valor instrumental (ou seja, aquilo que é valorado pela sua utilidade); o segundo, o valor subjetivo (quando algo possui valor especial para um sujeito determinado); e o terceiro, o valor intrínseco (quando uma coisa tem valor independentemente do que ela pode proporcionar ou da sua importância em relação ao sujeito, ou seja, aquilo que possui valor em si mesmo).

Para os que percebem a vida de forma independente, ela é entendida como algo cujo valor é intrínseco, valor esse que Dworkin acaba por relacionar (magistralmente, aliás) ao valor que se atribui ao sagrado, afirmando que:

o valor intrínseco apresenta duas categorias: a incremental e a sagrada. As coisas são incrementalmente valiosas à medida que quanto mais delas se têm, melhor é. No caso do valor intrínseco sagrado ou inviolável não há qualquer relação com a quantidade, mas sim com o modo pelo qual algo se tornou o que é. O valor se deve, então, à existência da coisa em questão, sem relação com a quantia disponível dela (DWORKIN, 2003, p. 102).

Ainda é possível se extrair dessa leitura, que o valor intrínseco de algo, apesar de estar relacionado ao valor sagrado, não deixa de obedecer à liberdade de credo, já que Dworkin não trata o sagrado a partir do seu sentido religioso e relativo, mas sim no sentido de ser algo inviolável, algo de valor incomum.

De forma clara, Dworkin exclui a ideia de que somente os criacionistas podem atribuir valor sagrado à vida, já que:

 a idéia de que cada vida humana individual é inviolável tem raízes em duas bases do sagrado que se combinam e confluem: a criação natural e a criação humana (DWORKIN, 2003, p. 115).

Também se depreende da leitura de “Domínio da Vida” que aqueles que são contra o aborto e a eutanásia baseados em um pensamento independente, assim o fazem por acreditarem que a vida tem um valor que é respeitado desde tempos imemoriais (processo histórico de construção) e que essa valoração mantém o equilíbrio natural entre as coisas.

Dworkin, no tocante ao aborto, defende o segundo pensamento, ou seja, a concepção de valor intrínseco da vida, porque, para ele, entrar na discussão da possibilidade ou não de classificar o nascituro como pessoa (ou fixar o momento em que ele passaria a ter direitos) é não só controverso como também de difícil aplicabilidade prática, tanto para o Direito, quanto para a Medicina. O autor critica as posições mais conservadoras, pois demonstra que pouquíssimas pessoas acreditam que o feto seja uma pessoa (com direitos e interesses equivalentes aos dos outros membros da sociedade) desde o momento concepção, ou seja, ele deixa claro que a maior parte das pessoas pensa de forma independente.

Dworkin ressalta que comumente o critério adotado para a decisão de quem tem “mais direito à vida” (a mãe ou o feto) é o de tempo de vida. Ou seja, o feto deveria ser preservado em detrimento da mãe por ela ter mais tempo de vida.

O autor, então, coloca de forma bem-sucedida que essa percepção não passa, no fundo, de um contrassenso já que, de modo geral, se considera mais aceitável a perda do feto nas fases iniciais em comparação às fases finais da gestação. Para ele, a aceitabilidade do aborto:

depende da fase da vida em que ocorre, pois a frustração é maior se a morte ocorrer depois que a pessoa tiver feito um investimento pessoal significativo em sua própria vida, e menor se ocorrer depois que algum investimento tiver sido substancialmente concretizado, ou tão substancialmente concretizado quanto poderia ter sido (DWORKIN, 2003, p. 122).

O autor relata que não há que se falar em frustração quando não é possível se falar em investimento realizado naquela vida. Essa afirmação, no entanto, é percebida de modo diverso pelos diferentes posicionamentos: os conservadores acreditam que o investimento que deve ser levado em conta é o investimento natural ou divino (ou seja, a essência, o poder divino que foi investido naquele ser), enquanto os liberais valorizam o investimento humano e cultural que se realizou naquela vida.

Assim, ficam justificadas as posições dos conservadores contra o aborto (pois estaria sendo frustrado o investimento divino feito sobre o feto) e dos liberais (que preconizam a qualidade de vida da família e da mãe, assim como da criança que estar por vir, visto que a contribuição dela seria negativa, frustrando o investimento humano e o valor criativo agregado à vida daqueles envolvidos). Resumidamente, para os liberais:

é de crucial importância que sobrevivamos não apenas biologicamente, mas culturalmente também, e que nossa espécie não apenas viva, mas prospere (DWORKIN, 2003, p. 106).

Nessa perspectiva, a aceitabilidade moral ou não do aborto fica na dependência do motivo (moralmente aceitável ou não). Assim, o aborto apenas deveria ser rechaçado, quando a sua prática tiver como consequência algum tipo de desrespeito ao valor intrínseco da vida humana.

O autor também ressalta a inconformidade das leis acerca do aborto com qualquer uma das teorias por ele elencadas. Ele explica que as justificativas fornecidas pelos textos legais atuais para a proibição dessa prática acabam por não utilizar nenhuma base filosófica ou doutrinária coerente. Isso pode ser percebido porque, em se utilizando o pensamento derivativo como parâmetro, a lei não abriria exceção a ponto de permitir o aborto em casos de estupro. Já, utilizando do pensamento independente, se estaria, em ultima instância, desrespeitando uma das maiores garantias constitucionais de um Estado: a liberdade religiosa.

Adentrando agora a discussão acerca da eutanásia, o autor a aborda de acordo com três situações: quando, mesmo consciente, o paciente não pode mais pôr em prática a sua vontade de forma autônoma, necessitando de assistência (eutanásia ativa); quando o paciente se encontra inconsciente e cabe a terceiros a decisão acerca do seu destino; e quando o paciente está consciente e pode não só manifestar sua vontade, como ainda atuar de modo a consubstanciá-la – lembrando que não se pode equiparar essa conduta ao suicídio, porque aqui deve ser levado em conta o valor intrínseco da vida, ou seja, ela deve ser poupada até os limites do natural. Como o autor ressaltou em determinado ponto do livro:

[...] a ideia abstrata do valor intrínseco da vida possui muitas e distintas interpretações – tanto em relação à eutanásia quando ao aborto. O cerne dessa discussão reside no fato da expressão “valor intrínseco da vida” – quando na verdade deveríamos nos preocupar com o valor intrínseco do “viver”(DWORKIN, 2003, p. 96).

A manutenção de uma vida por meios artificiais não é, assim, uma objeção de modo geral, mas não deve exceder os padrões da natureza. Não se pode privar o paciente de uma morte digna sob o pretexto de que está se respeitado o caráter sagrado que possui uma vida ou simplesmente porque os avanços tecnológicos permitem que ela seja estendida de modo indefinido e antinatural. Nas palavras de Dworkin:

prolongar a vida de uma pessoa muito doente, ou que já perdeu a consciência, em nada contribui para concretizar a maravilha natural da vida humana e que os objetivos da natureza não são atendidos quando os artefatos de plástico, a sucção respiratória e a química mantêm o coração batendo em um corpo inerte e sem mente, um coração que a própria natureza já teria feito parar (DWORKIN, 2003, p. 304).

Quando o paciente terminal está consciente (mesmo que imobilizado) fica fácil perceber que deve ser priorizada a autonomia da vontade e permitir que o paciente decida sobre os termos da sua morte assim como ele é autossuficiente para decidir sobre os assuntos da sua vida.

No entanto, cria-se um dilema quando ele se encontra em estado de inconsciência e deve-se investigar qual seria sua vontade. A família, obviamente, deve ser a fonte primária de informações, pela proximidade com o paciente e a maior possibilidade de que tenham conhecimento de alguma manifestação inequívoca que o paciente tenha feito durante sua vida acerca do assunto.

O problema é que não raro pessoas chegam a condições vegetativas sem terem discutido, em vida, sobre a eutanásia diretamente ou qualquer de seus desejos quanto aos derradeiros momentos. Além disso, uma questão que sempre vai restar pendente é se o paciente teria ou não mudado de ideia se ainda estivesse consciente no momento final.

Nesse ponto, é importante destacar as noções de interesses experienciais e interesses críticos, introduzidas pelo autor. 

Os interesses experienciais, segundo ele, devem ser entendidos como as atitudes ligadas ao prazer imediato, isto é, aquilo que se faz porque se gosta; enquanto os interesses críticos devem ser definidos como aqueles que a satisfação torna a vida melhor, aquilo que enobrece.

Desse modo, consoante a observância desses conceitos, o autor acredita, que os interesses críticos do paciente (frente aos interesses experienciais dele) devem ter maior relevância moral na decisão dos familiares.

Dworkin, então, dá como solução que se decida de acordo com os interesses do paciente em vida.

tendo em vista que o paciente passou toda a vida lutando, inclusive nas situações que pareciam irremediáveis, é melhor que enfrente a morte até o derradeiro instante, mesmo que esteja inconsciente. Ou que, como Nancy Cruzan, orgulhava-se de sua autossuficiência, o melhor é que sua vida termine quando não houver qualquer possibilidade de seguir em frente(DWORKIN. 2003, p. 271).

Essa autonomia é exatamente o porquê do Estado não dever impor uma concepção unitária através da lei.

CONCLUSÃO: IMPRESSÕES E CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ASPECTOS MORAIS DA OBRA

            O livro “Domínio da Vida: Aborto, eutanásia e liberdades individuais” trouxe para a discussão do aborto e da eutanásia uma rica teoria que permitiu a visualização do assunto a partir de uma diferente e objetiva abordagem. Dworkin impressiona pela amplitude e profundidade teórica com a qual apresenta um assunto corrente nos dias de hoje e cujas possibilidades de posicionamento já pareciam esgotadas.

            O autor consegue entrar no cerne da questão e apontar as justificações morais, religiosas e filosóficas existentes, além de conseguir achar os equívocos e contrassensos que muitas apresentam. Assim, Dworkin alimenta uma teoria baseada na inviolabilidade da vida, na autonomia da vontade e nos interesses e direitos individuais reconhecidos universalmente. Sempre alcançando um posicionamento consciente, relativo e equilibrado, evitando as percepções absolutas.

            A proibição da eutanásia e do aborto pelas autoridades estatais em nome da soberania da lei nada mais é que uma agressão à liberdade individual e um desrespeito à dignidade humana. É também uma indiferença ao valor intrínseco do viver e ao bem-estar de inúmeras mulheres que se veem privadas não só da faculdade de abortar (pois muitas sequer tomariam tal atitude), mas, principalmente, da faculdade de escolher, de decidir acerca da sua própria vida e do seu futuro.

De modo geral, a postura defendida no presente artigo é a que Ronald Dworkin expressa na seguinte frase:

[...] um grande número de intensas convicções pessoais sobre o aborto e a eutanásia, algumas liberais, outras conservadoras. São convicções dignas de respeito, e os que as defendem devem viver e morrer de acordo com o que defendem. (DWORKIN, 2003, p. 343).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005

DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MORAIS, José Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais: o estado e o direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

Sobre os autores
Karen da Rocha Oliveira

Advogada. Graduada em Direito Pela Universidade Federal do Piauí (UFPI)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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