Resumo: Analisa, por meio de estudo de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, a aplicação do princípio da insignificância aos crimes ambientais, que é admissível apenas de modo excepcional e de maneira cautelosa, pois o bem jurídico tutelado em tais infrações é a proteção ao meio ambiente, direito de natureza difuso, assegurado pela Constituição Federal de 1988.
Palavras-chave: Princípio da insignificância. Crime ambiental. Crime de perigo. Princípio da prevenção.
I – INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo geral analisar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 125.566/PR, cuja problemática se centrou em saber se uma determinada conduta seria revestida ou não de relevância para o Direito Penal Ambiental, a fim de justificar uma resposta punitiva por parte do estado.
O momento é oportuno também pela matéria que envolve, uma vez que o Governo Federal mudou as regras para a concessão do benefício do seguro-desemprego a pescadores artesanais no período de defeso através do Decreto nº 8.967, de 23 de janeiro de 2017, e os Ministérios do Meio Ambiente (MMA) e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) publicaram a Instrução Normativa Interministerial nº 6, no Diário Oficial da União (DOU) do dia 23 de janeiro de 2017, proibindo a captura, o transporte, o beneficiamento, a industrialização e a comercialização do caranguejo-uçá em dez estados brasileiros, dentre eles o Ceará.
II - ANÁLISE DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL DO RECURSO ORDINÁRIO EM HC 125.566/PR
O caso se trata de um acórdão composto pelo voto do Ministro Dias Toffoli, proferido pela Segunda Turma do STF, em face do julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 125.566, julgado em 26/10/2016. De acordo com o voto, uma determinada pessoa foi denunciada por prática descrita no artigo 34, parágrafo único, inciso I, da Lei nº 9.605/1998[1], por ter sido surpreendida pela Polícia Florestal, por volta das 22h, pescando em época proibida (piracema) utilizando um barco de alumínio de aproximadamente cinco metros de comprimento, com o uso de rede de malha número 16 de aproximadamente 70 metros de extensão, bem como na posse de iscas vivas (pirambóias).
O recorrente pediu a aplicação do princípio da insignificância, porque, apesar de estar na posse de petrechos para pesca, com ele não foi encontrado nenhum tipo de peixe, não havendo, portanto, qualquer lesão efetiva ao meio ambiente em decorrência da sua conduta, e, consequentemente, o trancamento da ação penal.
Para melhor compreensão da exposição, é necessário, primeiramente, entender que a Constituição Federal de 1988 reconheceu o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa humana, tendo o seu Capítulo VI do Título VIII dedicação exclusiva ao meio ambiente. Além disso, o direito ao meio ambiente integra a terceira geração dos direitos fundamentais, também denominados direitos de fraternidade ou de solidariedade, cuja titularidade é difusa, cabendo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (SILVA, 2013).
Destaca-se que o Direito Ambiental tem como princípio basilar o da prevenção, e que seu objetivo está voltado para os momentos anteriores à consumação do dano ambiental, ou seja, as medidas que evitem o surgimento de atentados ao meio ambiente devem ser priorizadas, com o escopo de reduzir ou eliminar as causas de ações suscetíveis de alterar a sua qualidade (MACHADO, 2016).
No que diz respeito à responsabilização, o legislador constituinte não se contentou com a mera reparação do dano, enfatizando a possibilidade de o poluidor ser simultaneamente responsabilizado nas esferas civil, administrativa e penal, conforme dicção do artigo 225, § 3º, da CF.
Em face dessa evidência que a Constituição Federal trouxe e da responsabilização penal relativa ao meio ambiente, o legislador infraconstitucional de 1998 criou a Lei nº 9.605/1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
O Direito Penal Ambiental desliza por entre os princípios do Direito Ambiental e deles se alimenta, notadamente do princípio da prevenção a fim de prevenir os danos ambientais. Com efeito, nos crimes ambientais, os bens jurídicos se aproximam mais dos riscos e do perigo do que do dano. No Direito Penal, de acordo com a classificação doutrinária dos crimes, os crimes de perigo se subdividem em de perigo concreto e em de perigo abstrato. O primeiro consuma-se com a efetiva comprovação da situação de perigo. O segundo, por sua vez, consuma-se com a mera prática da conduta, sendo a situação de perigo presumida (SIRVINSKAS, 2011).
Assim, a Lei nº 9.605/1998 traz, em grande parte, tipos de perigo abstrato, reprimindo as condutas preparatórias e militando em favor da prevenção, pois é o modo encontrado para ganhar eficiência, antecipando-se a consumação do delito, isto é, não aguardando o resultado acontecer. Assim, condutas que ponham em perigo o bem jurídico tutelado configuram-se como tipos penais ambientais.
Em que pese a proteção ao meio ambiente tenha respaldo constitucional e seja de interesse geral da coletividade, a doutrina admite, com certa ressalva, a aplicação do princípio da insignificância em matéria de crimes ambientais. Tal princípio funciona como causa de exclusão da tipicidade, pois o Direito Penal não deve ocupar-se de bagatelas, ou seja, os danos de pouca monta devem ser considerados fatos atípicos (FREITAS; FREITAS, 2012).
Independente da divergência doutrinária, o fato é que a jurisprudência tem adotado o entendimento pela aplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes ambientais. A Segunda Turma do STF, por exemplo, aplicou o mencionado princípio no Inquérito 3788, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, julgado em 01/03/2016, em que um deputado federal fora surpreendido por autoridade ambiental em uma pequena embarcação com vara de pescar, linha e anzol em área pertencente à unidade de conservação federal de proteção integral, rejeitando a denúncia por ausência do requisito da justa causa para a abertura da ação penal, conforme Acórdão abaixo transcrito:
INQUÉRITO. DENÚNCIA CONTRA DEPUTADO FEDERAL. CRIME AMBIENTAL. PESCA EM LUGAR INTERDITADO POR ÓRGÃO COMPETENTE. ART. 34 DA LEI N. 9.605/1998. AFASTAMENTO DA PRELIMINAR DE INÉPCIA DA DENÚNCIA. ALEGADA FALTA DE JUSTA CAUSA PARA O PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO PENAL. ACOLHIMENTO.
Inviável a rejeição da denúncia, por alegada inépcia, quando a peça processual atende ao disposto no art. 41 do Código de Processo Penal e descreve, com o cuidado necessário, a conduta criminosa imputada a cada qual dos denunciados, explicitando, minuciosamente, os fundamentos da acusação. 2. Hipótese excepcional a revelar a ausência do requisito da justa causa para a abertura da ação penal, especialmente pela mínima ofensividade da conduta do agente, pelo reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e pela inexpressividade da lesão jurídica provocada.
(Inq 3788, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 01/03/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-122 DIVULG 13-06-2016 PUBLIC 14-06-2016)
A incidência do dito princípio requisita: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada, conforme a lição do Excelso Supremo Tribunal Federal (HC 84412, Relator: Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 19/10/2004, DJ 19-11-2004).
O Ministro Dias Toffoli, relator do RHC 125.566, afastou a tese defensiva com o argumento de que o comportamento do recorrente estava dotado de intenso grau de reprovabilidade, já que atuou com liberalidade ao pescar em período proibido usando redes de pesca de aproximadamente setenta metros, demonstrando ser o ato voltado para a prática de fins econômicos e não artesanais, empregando, portanto, método capaz de colocar em risco a preservação e o equilíbrio do ecossistema aquático.
Ademais, o eminente Ministro pontuou que, segundo o artigo 36 da Lei nº 9.605/1998, considera-se a atividade denominada pesca todo ato tendente a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos, moluscos e vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico, ressalvadas as espécies ameaçadas de extinção, constantes nas listas oficiais da fauna e da flora. Logo, a pesca não se limita a efetivamente capturar os espécimes citados.
Tratando-se, portanto, de um crime de perigo que se consuma com a mera exposição do bem jurídico tutelado a uma situação de perigo, isto é, bastando a probabilidade do dano. De modo que o fato de nenhum peixe ter sido pescado pelo recorrente, não descaracteriza a conduta praticada, já que só não causou danos reais ao meio ambiente por ter sido abordado a tempo por autoridades ambientais.
Dessa forma, a Segunda Turma, por votação unânime, negou provimento ao recurso ordinário, nos termos do lúcido voto do Ministro Relator, conforme Acórdão abaixo transcrito:
Recurso ordinário em habeas corpus. Pesca em período proibido. Crime ambiental tipificado no art. 34, parágrafo único, inciso I, da Lei nº 9.605/98. Proteção criminal decorrente de mandamento constitucional (CF, art. 225, § 3º). Interesse manifesto do estado na repreensão às condutas delituosas que venham a colocar em situação de risco o meio ambiente ou lhe causar danos. Pretendida aplicação da insignificância. Impossibilidade. Conduta revestida de intenso grau de reprovabilidade. Crime de perigo que se consuma com a simples colocação ou exposição do bem jurídico tutelado a perigo de dano. Entendimento doutrinário. Recurso não provido.
1. A proteção, em termos criminais, ao meio ambiente decorre de mandamento constitucional, conforme prescreve o § 3º do art. 225: “[a]s condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. 2. Em razão da sua relevância constitucional, é latente, portanto, o interesse do estado na repreensão às condutas delituosas que possam colocar o meio ambiente em situação de perigo ou lhe causar danos, consoante a Lei nº 9.605/98. 3. Essa proteção constitucional, entretanto, não afasta a possibilidade de se reconhecer, em tese, o princípio da insignificância quando há a satisfação concomitante de certos pressupostos, tais como: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada (RHC nº 122.464/BA-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Celso de Mello, DJe de 12/8/14). 4. A conduta praticada pode ser considerada como um crime de perigo, que se consuma com a mera possibilidade do dano. 5. O comportamento do recorrente é dotado de intenso grau de reprovabilidade, pois ele agiu com liberalidade ao pescar em pleno defeso utilizando-se de redes de pesca de aproximadamente 70 (setenta) metros, o que é um indicativo da prática para fins econômicos e não artesanais, afastando, assim, já que não demonstrada nos autos, a incidência do inciso I do art. 37 da Lei Ambiental, que torna atípica a conduta quando praticada em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família. 6. Nesse contexto, não há como afastar a tipicidade material da conduta, tendo em vista que a reprovabilidade que recai sobre ela está consubstanciada no fato de o recorrente ter pescado em período proibido utilizando-se de método capaz de colocar em risco a reprodução dos peixes, o que remonta, indiscutivelmente, à preservação e ao equilíbrio do ecossistema aquático. 7. Recurso ordinário ao qual se nega provimento.
(RHC 125566, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 26/10/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-252 DIVULG 25-11-2016 PUBLIC 28-11-2016)
III - CONCLUSÃO
Da análise do julgamento em comento, conclui-se que toda interpretação da Lei nº 9.605/1998 deve ser feita à luz do princípio da prevenção e que a presunção de lesão nos crimes de perigo abstrato justifica-se na medida em que novos contextos de risco surgem no cotidiano, demandando uma proteção penal de prevenção, que se aplica antes da existência de danos que, se findos, dariam origem a consequências ainda mais funestas para a coletividade.
Por fim, urge prudência na aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra o meio ambiente, uma vez que protegem bens e valores que dizem respeito a toda a coletividade, sob pena de não se dar as respostas adequadas à atual crise representada pelos riscos tecnológicos da sociedade pós-industrial e pôr em risco a garantia de sobrevivência da vida humana e do planeta.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 09 mar. 2017.
BRASIL. Lei de Crimes Ambientais. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm>. Acesso em: 09 mar. 2017.
FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Crimes Contra a Natureza. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
SIRVINKAS, Luís Paulo. Tutela Penal do Meio Ambiente. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
Notas
[1] Veja-se a íntegra do dispositivo legal: “Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente:
Pena - detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem:
I - pesca espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores aos permitidos;”