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Impossibilidade jurídica de sentença mandamental da Justiça Trabalhista para adequar condutas funcionais de autoridades da Inspeção do Trabalho e do Ministério do Trabalho

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Agenda 08/04/2017 às 10:00

3 – O caráter exceptivo do inciso VII do art. 114 da CF e sua aplicação restritiva

Carlos Maximiliano, em sua obra Hermenêutica e Aplicação do Direito[22], leciona que são consideradas excepcionais as disposições que “dão competência excepcional” ou que “introduzem exceções, de qualquer natureza, a regras gerais, ou a um preceito da mesma lei, a favor, ou em prejuízo, de indivíduos ou classes da comunidade.” Aplica-se então o postulado de que as exceções devem ser interpretadas restritivamente. No item 270 de seus estudos o autor traça uma identificação de uma regra excepcional:

270. Em regra, as normas jurídicas aplicam-se aos casos que, embora não designados pela expressão literal do texto, se acham no mesmo virtualmente compreendidos, por se enquadrarem no espírito das disposições: baseia-se neste postulado a exegese extensiva. Quando se dá o contrário, isto é, quando a letra de um artigo de repositório parece adaptar-se a uma hipótese determinada, porém se verifica estar esta em desacordo com o espírito do referido preceito legal, não se coadunar com seu fim, nem com os motivos do mesmo, presume-se tratar-se de um fato da esfera do Direito Excepcional, interpretável de modo restrito.

No mesmo item 272 o autor, com fonte em Domat[23], trata da interpretação restritiva com estas palavras:

272. As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente.

Sob a luz desses preceitos, arrazoa-se que estender a aplicação da competência ditada pelo inciso VII do art. 114 da CF para além dos limites da norma, extrapolando os atos de poder de polícia de autoridades fiscais frente a um empregador a ponto de alcançar o controle jurídico-administrativo ou jurídico-estatutário de autoridades da Inspeção do Trabalho, viola o postulado hermenêutico da interpretação restritiva de regras de exceção.

O acórdão do TRT-18 referido anteriormente tem um de seus lastros nesse argumento. O desembargador do Trabalho Daniel Viana Júnior, relator do RO da União nos autos da ACP no TRT-18, assentou, em seu voto, seu entendimento da excepcionalidade com respaldo na jurisprudência (pág. 16):

Cumpre registrar, ainda, a baliza hermenêutica de que se vale o c. STJ, no julgamento dos conflitos de competência que lhe são submetidos, segundo a qual "As normas restritivas - como as que determinam a competência jurisdicional – requerem interpretação igualmente restritiva. Logo, não se pode atribuir à Justiça do Trabalho competência que não encontre fundamento imediato no rol exaustivo do artigo 114 da Constituição Federal" (excerto do aresto proferido no CC 130.946/CE, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24-9-2014, DJe 30-9-2014).

É esse entendimento que se endossa neste artigo. Nesse ponto, desenvolve-se um pouco mais esse argumento.

Para uma melhor interpretação do inciso VII do art. 114 da CF propõe-se fixar a atenção nas excepcionalidades do inciso I, parte final, do art. 109 da CF, que estabelece as competências dos juízes federais[24]. É o próprio dispositivo constitucional que classifica como exceção à competência da Justiça Federal as causas em que a União é parte interessada e que se sujeitam à competência da Justiça do Trabalho. Trata-se de uma exceção à regra geral de competência da primeira parte do inciso I do art. 109 (competência em razão da pessoa). Daí se poder falar em competência excepcional negativa à regra geral do inc. I do art. 109 da Carta. A ela corresponde uma competência excepcional positiva na Justiça do Trabalho, que se encontra no inciso VII do art. 114 da CF. Com efeito, se a execução da Inspeção do Trabalho é competência privativa da União (CF, art. 21, XXIV), os litígios envolvendo atos de autoridades da Inspeção do Trabalho seriam atraídos para a Justiça Federal não fosse a força exceptiva do inciso VII aludido.

A justificativa para o inciso VII do art. 114 da CF repousa no fato de que a ação dos órgãos de fiscalização do trabalho (União) está voltada para a garantia do Direito do Trabalho em sua natureza material. O interesse da União se assenta exclusivamente na verificação, pelos auditores-fiscais do trabalho, do cumprimento da legislação trabalhista por parte de um empregador. Daí a pertinência com a Justiça especializada, cuja competência é fixada em razão da matéria (Direito do Trabalho). Pode-se dizer, assim, que o que identifica o caráter de excepcionalidade positiva para a Justiça laboral é a existência de uma ação judicial cuja causa de pedir e pedidos se originam da relação jurídico-administrativa de uma autoridade da Inspeção do Trabalho frente a um empregador no contexto de uma relação de trabalho. O interesse da União não decorre das relações jurídico-administrativas com seus servidores (auditores-fiscais do trabalho), mas sim de relações jurídico-administrativas praticadas por seus servidores em face de um empregador em um contexto fático-jurídico de fiscalização de uma relação de trabalho. Não existindo esses fatores, não há que se falar em competência da Justiça do Trabalho.

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Naturalmente que o magistrado do Trabalho, ao julgar a causa, aplicará as normas do Direito Administrativo que regulam os atos de poder de polícia das autoridades da Inspeção do Trabalho frente ao empregador. Nesse caso, ele examinará a competência, a forma, a finalidade, o motivo e o objeto desses atos administrativos. Por evidente, o objeto do ato administrativo envolve matéria do Direito do Trabalho, razão fundamental para que a causa seja julgada na Justiça especializada.

Os limites para a competência excepcional da Justiça obreira são delimitados, portanto, pelos atos de polícia administrativa da Inspeção do Trabalho frente a um empregador no contexto da fiscalização das relações de trabalho. Além desse limite se esgota a exceção e impera a competência da Justiça Federal.

Nessa linha argumentativa, podemos estabelecer então essa importante distinção: a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar os atos de polícia administrativa de autoridades da Inspeção do Trabalho praticados no curso de uma ação fiscal diante de um empregador em face uma relação de emprego cujos direitos trabalhistas são tutelados pelo Estado. Não havendo empregador como parte na ação judicial, não há direito trabalhista a ser tutelado pela Justiça laboral. Se a causa não está fundada, não é derivada ou não é oriunda da relação de emprego, não há que se falar em competência da Justiça especializada (STJ, Primeira Seção. CC 51.791/CE. Rel. min. Teori Zavascki. DJe 15/05/2006).

É o caso das ACPs em exame. Nelas não se identifica objetivamente um empregador ou empregadores como parte, mas apenas a União como ré em ações ajuizadas pelo MPT. E o objeto das ACPs é a adequação da conduta funcional de autoridades da Inspeção do Trabalho, e não o descumprimento de direitos trabalhistas por parte de um empregador. A conduta funcional dos servidores públicos federais são regidas por normas inerentes às relações jurídico-estatutárias típicas do Direito Administrativo e, por isso, estranhas ao Direito do Trabalho. Se um auditor-fiscal do trabalho lavrar auto de infração em desacordo com as normas legais, poderá sobrevir a decretação de nulidade do auto de infração por parte da Justiça do Trabalho. Mas eventual medida de sua responsabilização ou de sua adequação funcional é discutida na Justiça Federal. Como bem argumentado pelo desembargador Viana Júnior, “ainda que eventual resolução do mérito [da ACP] tenha o potencial de gerar reflexos nas relações de trabalho de todo o país, e ainda que para a solução da lide seja necessário interpretarem-se normas de natureza eminentemente trabalhista”, tal circunstância não atrai a competência da Justiça do Trabalho.


4 – Da incompetência do Ministério Público do Trabalho e a usurpação de competência do Ministério Público Federal

Outra forma de examinarmos a competência da Justiça do Trabalho na questão tematizada é averiguar a legitimidade do MPT para a propositura das ações civis públicas em questão. Para tanto, novamente a dúvida será dirimida pela causa de pedir e pelo pedido da ação judicial.

Convém relembrar que o magistrado da Vara do Trabalho de Anápolis/GO, na parte expositiva de sua sentença, extraiu da ACP a causa de pedir apresentada pelo MPT, segundo a qual, “a ré não vem realizando, com a eficiência esperada, a fiscalização das relações de trabalho”. Os procuradores do Trabalho entenderam então que lhes cabia exercer o controle da eficiência da Inspeção do Trabalho como forma de garantir os direitos constitucionais dos trabalhadores. De fato, em ambas as ACPs tomadas como paradigmas e que partem de interpretações do art. 628 da CLT se tem como causa de pedir supostas condutas inadequadas de autoridades da Inspeção do Trabalho que militariam em desfavor dos direitos sociais constitucionalmente assegurados aos trabalhadores. E os pedidos formulados buscam adequar o exercício de uma função pública por parte de órgãos e servidores públicos aos ditames da lei e da Constituição, como bem identificado pelo desembargador do Trabalho Daniel Viana Júnior.

Porém, o controle do funcionamento dos órgãos federais é da competência do Ministério Público Federal (MPF), e não do MPT. Conforme o art. 128, I, da CF/88, o Ministério Público da União (MPU) compreende o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Ministério Público Militar e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Mas o § 5º desse artigo constitucional remete para a lei complementar o estabelecimento das atribuições de cada Ministério Público, entre outras definições.

O comando constitucional foi cumprido na Lei Complementar n.º 75, de 20/05/1993. Ela dispõe sobre a organização e o estatuto do MPU, distribuindo ao longo de seus artigos as competências genéricas da instituição entre os seus quatro ramos, conforme regrado no Título II da Lei Complementar. Pode-se argumentar que a sistematização da LC n.º 75/93 dá origem a uma espécie de especialidade a cada ramo do MPU. Ou seja, as disposições que atribuem competências a cada ramo são especiais a cada um individualmente, não podendo ser cometidos por outros, sob pena de usurpação de competências. A aplicação das disposições da Lei Complementar deve, portanto, obediência ao critério hermenêutico da especialidade.

No que interessa objetivamente ao caso concreto, examina-se o caput e o inciso II do art. 39 da LC n.º 75/93[25]. Segundo esses dispositivos, revestidos do caráter de especialidade interna ao MPU, compete ao MPF exercer a defesa dos direitos constitucionais do cidadão, sempre que se cuidar de garantir-lhes o respeito pelos órgãos da administração pública federal direta ou indireta. Ou seja, se um órgão da administração pública federal não está respeitando os direitos constitucionais do cidadão, cumpre ao MPF exercer suas competências legais a fim de ajustar as condutas orgânico-funcionais das autoridades desse órgão de modo que os direitos dos cidadãos sejam respeitados. E o fará por meio dos instrumentos de ação descritos no art. 6º da LC n.º 75/93, entre os quais a ação civil pública (inc. VII). Tem-se por evidente que esse controle se dá sob a matriz de relações jurídico-estatutárias ou jurídico-administrativas que sujeitam os servidores civis federais.

A função de exercer o controle externo da atividade policial federal, por exemplo, é competência do MPU (LC n.º 75/93, art. 3º). Esse dispositivo poderia ensejar a interpretação de qualquer órgão do MPU poderia exercer o controle externo da atividade policial federal. Porém, como já dito, a distribuição das normas gerais ao longo da LC atribui prerrogativas de caráter especial a cada ramo do MPU. Por isso é que o art. 38, inciso IV, da LC atribui essa competência apenas ao MPF. E quando se examina as funções atribuídas ao MPT nos artigos 83 e 84 da LC não se encontra qualquer referência ao controle externo das atividades policiais, e muito menos das atividades da Inspeção do Trabalho. Todas as competências institucionais do MPT estão vinculadas às competências da Justiça do Trabalho. Alude-se então ao silêncio eloquente da LC em relação ao MPT quanto a qualquer iniciativa tendente a controlar as atividades da Inspeção do Trabalho ou mesmo do Ministério do Trabalho ou de qualquer órgão público, exceto se envolver empregados públicos regidos pelas normas da CLT.

Sob tal premissa legal, não cabe ao MPT usar dos instrumentos administrativos ou jurídicos que lhe são outorgados pela LC 75/93 para adequar o exercício das funções da Inspeção do Trabalho ou de suas autoridades aos ditames da lei e da Constituição. Tal competência é reservada ao MPF.

 Levando em conta então que o objeto das ACPs veicula uma suposta ineficiência da União na fiscalização das relações de trabalho, e tendo em vista a norma que emana do inciso II do art. 39 da LC n.º 75/93, então podemos concluir que a matéria vertida na ACP é da alçada do MPF, e não do MPT. E, por isso, o foro apropriado para o ajuizamento da ACP é uma vara da Justiça Federal, e não da Justiça do Trabalho.

Se o controle do funcionamento dos órgãos federais cabe ao MPF, surge então, nos casos concretos, um conflito de competências entre órgãos do MPU.

O STF, ao julgar as ações cíveis ordinárias (ACO) n.º 924 e 1.394 e as Petições n.º 4.706 e 4.863, manifestou-se, por maioria, pela competência do procurador-geral da República (PGR) para dirimir conflitos de atribuições entre instituições do Ministério Público. Os ministros da Corte Suprema entenderam que o conflito de atribuições entre instituições do MP é matéria administrativa, e não jurisdicional.

Cabe ao PGR, portanto, atuar para dirimir conflitos de competências vertidos nos casos examinados.

Sobre o autor
José Adelar Cuty da Silva

Auditor-Fiscal do Trabalho, aposentado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Adelar Cuty. Impossibilidade jurídica de sentença mandamental da Justiça Trabalhista para adequar condutas funcionais de autoridades da Inspeção do Trabalho e do Ministério do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5029, 8 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56979. Acesso em: 9 mai. 2024.

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