5 – Descumprimento de dever funcional e sua natureza jurídico-estatutária: uma argumentação ablativa
Nos fatos sob exame, as causas de pedir das ACPs se assentam no dever de controle de uma autoridade federal (secretário de Inspeção do Trabalho) sobre servidores civis federais (auditores-fiscais do trabalho). Que esse controle só é possível sob a matriz de relações jurídico-estatutárias é a tese forte defendida.
Com efeito, da leitura da ACP se constata que os próprios autores afirmam que a medida judicial “está voltada para o cumprimento de um dever específico, incumbido legalmente à Auditoria do Trabalho e à autoridade de direção da Inspeção do Trabalho” (sem o destaque no original). Alegam, porém, que esse dever “não está previsto em norma de caráter geral (estatuto dos servidores públicos), mas sim em normas especiais, quais sejam a CLT e demais legislação trabalhista, que regulam especificamente a matéria relativa às penalidades administrativas a serem impostas a empregadores.” Dai concluem que, não obstante se tratar de um dever, “o fato é que se cuida de matéria específica”. E arrematam: “E, portanto ante o critério hermenêutico da especialidade, resta evidente que a competência para a matéria é inegavelmente da Justiça do Trabalho e a correlata atribuição deste Ministério Público do Trabalho.” (destaques no original). E observam:
“De fato, os pedidos e a causa de pedir vinculados nesta Ação Civil Pública em momento algum se esteiam em irregularidades relativas a remunerações, indenizações, diárias, gratificações e adicionais, férias ou licenças de servidores federais (art. 40 e segs. da Lei 8112/90); nem mesmo se fundamentam em descumprimento de deveres gerais também previstos no referido estatuto, pois não se cuida de verificar se os citados servidores são leais às instituições a que servem, se cumprem as ordens superiores, se atendem com presteza ao público em geral, se zelam pela economia do material e a conservação do patrimônio público, se são assíduos e pontuais ao serviço etc (art. 116 e segs. da Lei 8112/90).” (destaque agora acrescentado).
Em suma: segundo o entendimento jurídico dos procuradores do Trabalho, pelo fato de o art. 628 estar contido na CLT, tida como a lei especial no Direito do Trabalho, e diante da inexistência de descumprimento de deveres gerais da lei geral dos servidores federais (Lei 8.112/90), prevalece o critério hermenêutico da especialidade, daí que “resta evidente que a competência para a matéria é inegavelmente da Justiça do Trabalho e a correlata atribuição deste Ministério Público do Trabalho.”
Todavia, demonstra-se que a ACP cuida de descumprimento de dever estatutário que, talvez por conveniência, não foi referido na inicial. Confira-se o arrazoado.
A Lei n.º 8.112/90 é norma geral para os servidores civis federais e, portanto, para os AFTs. A legislação especial que rege a atuação dos AFTs compreende a Convenção n.º 81 da Organização Internacional do Trabalho (C. 81), que dispõe sobre a inspeção do trabalho na indústria e comércio, e a Lei n.º 10.593/2002, cujos artigos 9º a 11 organizam a carreira Auditoria-Fiscal do Trabalho.
No que diz respeito à CLT, ainda que se possa falar em disposições especiais para os AFTs e demais autoridades do Ministério do Trabalho contidas em seu Título VII (sobre processo de multas administrativas), tal característica não tem o efeito de se sobrepor à Lei Estatutária.
A única relação existente entre a CLT e a Lei n.º 8.112/90 se estabelece entre o Título VII do código laboral (do processo de multas administrativas) e o Título IV da Lei estatutária (do regime disciplinar). Essa relação estabelece um liame de complementariedade. A norma celetista complementa um tipo disciplinar, mais precisamente o art. 116, inciso III, dos Estatutos, segundo o qual, é dever do servidor público federal “observar as normas legais e regulamentares.”
Deveras, a relação de complementariedade entre o caput do art. 628 celetista e o inciso III do art. 116 estatutário é a mesma que existe entre uma norma penal em branco e aquela que lhe complementa a descrição da conduta proibida. Nas palavras de Fabio Medina Osório, “sustenta-se, em doutrina, a ideia de que não há diferenças substanciais entre normas penais e normas administrativas sancionadoras” (Osório 2015, 120).
O que se quer dizer com isso é que a conduta funcional do AFT que descumpre o disposto no caput do art. 628 da CLT nada mais é do que violar o dever estatutário de observar as normas legais e regulamentares insculpido na Lei n.º 8.112/90, art. 116, inciso III. Além disso, deixar de lavrar auto de infração configura conduta que, em certas circunstâncias, viola o dever de exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo (Lei 8.112/90, art. 116, I), bem como, no plano teórico, o dever de manter conduta compatível com a moralidade administrativa (idem, inciso IX). Tais deveres são próprios do regime estatutário que rege os servidores civis federais.
Descumprimento de dever é ato interno ao agente e que se vincula à disciplina funcional da Administração. Nas lições de José dos Santos Carvalho Filho (Filho 2001, p. 47), a disciplina funcional é “a situação de respeito que os agentes da Administração devem ter para com as normas que os regem, em cumprimento aos deveres e obrigações a eles impostos”. Segundo o administrativista,
“A disciplina funcional resulta do sistema hierárquico. Com efeito, se aos agentes superiores é dado o poder de fiscalizar as atividades dos de nível inferior, deflui daí o efeito de poderem eles exigir que a conduta destes seja adequada aos mandamentos legais, sob pena de, se tal não ocorrer, serem os infratores sujeitos às respectivas sanções”
A expressão “normas legais e regulamentares” que está no tipo administrativo do inciso III do art. 116 estatutário é qualquer norma que obriga o servidor. No magistério de José Armando da Costa, “o tipo em comento (art. 116, inciso III) refere-se à lei e ao regulamento em suas acepções formais.” (Costa 2009, 334). É o caso do art. 628, caput, da CLT, que veicula um dever para os AFTs.
O resultado prático dessa argumentação é que as disposições do art. 628 trabalhista, ainda que contidas na CLT, originam obrigações jurídico-estatutárias para os AFTs.
Por isso, quando os procuradores do Trabalho afirmam que a conduta não se enquadra como descumprimento de dever previsto na norma geral (L. n.º 8.112/90), desconsideraram, inescapavelmente, as normas emanadas dos incisos I, III e IX do art. 116 dos Estatutos, que não foram citados na inicial. São justamente esses dispositivos estatutários que remetem a causa de pedir e o pedido para a órbita do Direito Administrativo. Aventa-se então à hipótese de uma argumentação ablativa[26], ou seja, a omissão dos incisos aludidos nos fundamentos apresentados pelo MPT.
O arrazoado do MPT pode confundir um leitor desatento e pouco conhecedor da matéria disciplinar que rege a conduta funcional dos servidores civis federais. Por esse ponto de vista, ganha relevância a observação feita pelo desembargador do Trabalho Viana Júnior, do TRT-18, em alusão indireta ao voto da ministra do STF Carmem Lúcia no julgamento do RE 573.202/AM, segundo a qual, o pedido pode ser feito de tal forma que seja encaminhado à Justiça que convém ao interessado. Uma argumentação ablativa se presta a esse fim.
Resta dizer que aquele raciocínio exposto na ACP – qual seja, se o dever descumprido está previsto na CLT, então a competência para processar e julgar o caso é da Justiça do Trabalho –, acarreta situações insólitas.
6 – Justiça do trabalho e o julgamento de condutas de autoridades da Inspeção do Trabalho: violação da isonomia, da coerência e da integridade do Direito.
Lenio Luiz Streck, um dos juristas e doutrinadores que vem proclamando com ênfase a necessidade da coerência e da integridade nas decisões judiciais, escreveu artigo sobre os mecanismos do novo Código de Processo Civil para combater decisionismos e arbitrariedades[27]. Entre esses mecanismos o jurista cita a coerência e a integridade da e na jurisprudência. Para o professor e doutrinador, “haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos”. Quanto à integridade o autor leciona:
Já a integridade é duplamente composta, conforme Dworkin: um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido. A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito, constituindo uma garantia contra arbitrariedades interpretativas; coloca efetivos freios, através dessas comunidades de princípios, às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é antitética ao voluntarismo, do ativismo e da discricionariedade. Água e azeite.
Tendo isso em perspectiva, parte-se para um exercício didático.
Na hipótese de o secretário da Receita Federal do Brasil (RFB) deixar de exercer o controle das atividades dos auditores-fiscais da RFB, dever previsto no art. 45 do Anexo I ao Decreto n.º 7.482/2011 (aprova a estrutura regimental do Ministério da Fazenda), acarretando ineficiência na arrecadação de tributos federais, indaga-se: qual órgão do Ministério Público da União (MPU) é competente para ajuizar ação civil pública com pedido para que o secretário seja obrigado a exercer o controle efetivo das atividades dos auditores-fiscais da RFB? Seria um procurador da República ou um procurador do Trabalho?
Não se cogita divergência quanto à conclusão de que compete ao procurador da República acionar judicialmente a União com o pedido mencionado. E o foro apropriado para ajuizar a ACP é, sem dúvida, a Justiça Federal. Procurador da República não oficia na Justiça do Trabalho.
Considerando-se agora a situação concreta em que o secretário da Inspeção do Trabalho figura como autoridade demandada na ACP firmada por um grupo de procuradores do Trabalho, pela qual buscam impor obrigação de fazer consistente em exercer controle sobre atos dos AFTs, fazem-se outras indagações: por qual razão o órgão do MPU que ajuíza a ACP contra o secretário da Receita é um procurador da República e o que ajuíza ACP contra o secretário da Inspeção do Trabalho é um procurador do Trabalho? E por que motivo o juiz competente para processar e julgar a ACP contra o Secretário da Receita é um juiz federal e aquele que processa e julga ACP contra o secretário da Inspeção do Trabalho é um juiz do Trabalho? Não há fundamento jurídico e racionalidade para tal diferenciação.
Tal exemplo demonstra as violações da coerência e da integridade do Direito por parte de sentenças de juízes do Trabalho que condenam a União a promover medidas administrativas para ajustar a atuação de autoridades do Ministério do Trabalho ao controle pretendido pelo MPT.
A leitura que procuradores do Trabalho fazem do art. 628 da CLT também conduz a resultados inusitados e absurdos.
O artigo celetista elenca vários deveres para os AFTs além daquele de lavrar auto de infração a cada constatação de irregularidade. Assim, se prevalecer a argumentação dos procuradores do Trabalho (deveres contidos na CLT devem ser julgados pela Justiça laboral), então esses outros deveres também se sujeitam à Justiça especializada. Convém, portanto, reproduzir excertos do art. 628, com os destaques acrescidos, para demonstrar, a um simples olhar, a extravagância da tese do Parquet laboral:
Art. 628. Salvo o disposto nos arts. 628 e 628-A, a toda verificação em que o Auditor-fiscal do trabalho concluir pela existência de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto de infração.
§ 1º (...);
§ 2º (...);
§ 3º Comprovada má fé do agente da inspeção, quanto à omissão ou lançamento de qualquer elemento no livro, responderá ele por falta grave no cumprimento do dever, ficando passível, desde logo, da pena de suspensão até 30 (trinta) dias, instaurando-se, obrigatoriamente, em caso de reincidência, inquérito administrativo.
§ 4º A lavratura de autos contra empresas fictícias e de endereços inexistentes, assim como a apresentação de falsos relatórios, constituem falta grave, punível na forma do § 3º.
Como se percebe, os parágrafos do art. 628 estabelecem não apenas deveres aos auditores como também tipificam condutas ilícitas passíveis de responsabilidade civil, penal e administrativa, conforme admitido pelo art. 121 da Lei n.º 8.112/90. Como é do senso comum, as responsabilidades civil, penal e administrativa de servidores não estão sujeitas às competências da Justiça do Trabalho.
Se a omissão da lavratura de auto de infração envolve ato doloso para obter vantagem pessoal ilícita para o agente fiscal, estar-se-á diante de violação de proibições (Lei n.º 8.112/90, art. 117), como valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública (inc. IX); receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições (inc. XII); ou proceder de forma desidiosa (inc. XV). Tais violações de proibições são condutas que, provadas no devido processo legal, levam objetivamente à pena disciplinar de demissão (Lei n.º 8.112/90, art. 132), como a prática de crime contra a administração (inc. I); improbidade administrativa (inc. IV); corrupção (inc. XI) e transgressões dos incisos IX a XVI do art. 117 dos Estatutos.
No plano da realidade, AFTs foram de fato punidos administrativamente com a pena de demissão por lançarem falsos relatórios de inspeção no sistema Sfit, bem como em razão da omissão de lavratura de auto de infração com a finalidade de obter vantagem para si, caracterizando os ilícitos administrativos de corrupção (Lei n.º 8.112/90, art. 132, inciso XI) e de improbidade administrativa (idem, inciso IV).
Em contraposição, nenhum AFT foi penalizado por deixar de lavrar auto de infração em razão do saneamento da irregularidade trabalhista por parte do empregador faltoso, pois a não lavratura não resultou de pedido ou de aceitação de propina, mas de uma resposta saneadora por parte do empregador em benefício direto para os empregados prejudicados. Não se trata sequer de crime de prevaricação, como pensam alguns, porquanto não há a satisfação de interesse ou sentimento pessoal para o auditor. Exceto a satisfação íntima de garantir o cumprimento de um direito trabalhista ao empregado desassistido.
Considerando-se esse quadro e aplicando-se a tese do MPT, se poderia obter o convencimento de que as ações de improbidade administrativa contra os AFTs deveriam ser ajuizadas pelo MPT junto à Justiça do Trabalho. E mais: o MPT poderia até mesmo ajuizar ação de dano moral coletivo contra os auditores ímprobos, ante o dano praticado contra a coletividade dos trabalhadores. Afinal, os membros do Parquet laboral advogam a competência da Justiça do Trabalho para tratar de causas do Direito Administrativo de forma ampla, e não apenas limitada aos casos expressos no art. 114, VII, da CF. Essa tese até poderia ser amparada em analogia com o inciso VI do art. 114 da CF, que trata das ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho. Com efeito, se a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar ações de natureza indenizatória decorrentes da relação de trabalho, nada mais certo – ainda segundo a tese originalíssima – do que fazer o mesmo em relação às condutas de AFTs que, pelo exercício irregular de suas funções, causam danos morais e patrimoniais a trabalhadores e ao erário no contexto de relações de trabalho. E se a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar o secretário de Inspeção do Trabalho por deixar de exercer o controle de legalidade de cada ação fiscal realizada no País (dever que não está previsto na CLT), entre elas o dever de cada auditor-fiscal de lavrar auto de infração a cada vez que constatar infração trabalhista (CLT, art. 628, caput), então ela será competente para processar e julgar o AFT que não lavrou o auto de infração quando a lei assim o exigia, dever esse prescrito na CLT.
Da aceitação dessa tese resultaria um efeito prático absurdo: os AFTs seriam os únicos servidores civis federais do País a se submeterem ao julgamento da Justiça do Trabalho pelo exercício irregular de suas atribuições, diferentemente de todos os demais servidores, que, por essas ações, são processadas e julgadas pela Justiça comum.
Tais resultados não apenas violariam a integridade e a coerência do Direito, mas implicariam na quebra da isonomia entre servidores federais.
Como já demonstrado, o dever específico do caput do art. 628 da CLT nada mais é do que a norma secundária que complementa o tipo administrativo aberto do inciso III do art. 116 da Lei n.º 8.112/90. Sendo um dever previsto nos Estatutos dos servidores civis federais, então são típicos das relações jurídico-administrativas, alcançados, portanto, pelos efeitos vinculantes da ADI 3.395, ou seja, não se submetem à competência da Justiça do Trabalho.
Mas os problemas não se resumem a isso.