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Revisitando a Súmula Vinculante n. 24

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Agenda 04/08/2017 às 15:15

Se o raciocínio que embasou a SV n. 24 for levado às últimas consequências, não bastaria aguardar o lançamento definitivo para considerar configurado o delito contra a ordem tributária, mas também eventual julgamento de ação cível proposta pelo infrator para contestar esse lançamento tributário.

Sumário: 1. Introdução; 2. Origens da Súmula Vinculante n. 24; 3. Elementos do crime contra a ordem tributária; 4. Os absurdos decorrentes da SV 24; 5. A independência das instâncias administrativa e judicial; 6. Os reflexos do pagamento do tributo devido sobre a responsabilização criminal; 7. A relação do lançamento com os crimes contra a ordem tributária; 8. Conclusão; 9. Bibliografia 

Resumo: A Súmula Vinculante n. 24 do Supremo Tribunal Federal preconiza que o crime contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/1990, não se tipifica antes do lançamento definitivo do tributo. Tal enunciado incide em impropriedades flagrantes e traz consequências absurdas, tanto no plano jurídico quanto fático. Recentes julgados, no entanto, admitiram a flexibilização dessa súmula, fato que aponta para uma possível revisão da norma em um futuro não muito distante.

Palavras-chave: Súmula Vinculante. Tipicidade. Lançamento tributário. Sonegação fiscal.


1. Introdução 

No apagar das luzes do ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a Súmula Vinculante (SV) n. 24 com o seguinte verbete: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.

Trata-se, talvez, de uma das mais desastradas decisões do STF neste século, tanto pelas implicações jurídicas quanto práticas.

Juridicamente, a súmula pecou por considerar elemento do tipo penal o ato administrativo do lançamento tributário. Na prática, a súmula engessou sobremaneira a ação do Ministério Público, subordinando a justiça penal à atividade da administração tributária.

Felizmente, em 2016, com quase metade da composição alterada, o STF começa a compreender o equívoco na formulação dessa súmula vinculante e já admite a sua flexibilização, como se depreende de recentes julgados, a exemplo do Habeas Corpus n. 106.152 e do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo n. 936.653/MG.[1]

Deveras, passados alguns anos da edição dessa súmula, revela-se imperioso o cancelamento ou, ao menos, a revisão do enunciado, nos termos da Lei n. 11.417/2006. Isso porque o verbete em questão encerra verdadeiro absurdo jurídico, com consequências nefastas para a persecução dos crimes contra a ordem tributária.


2. Origens da Súmula Vinculante n. 24

A SV n. 24 foi proposta a partir do julgamento proferido no Habeas Corpus (HC) n. 81.611, no qual ficou assentada, entre outras conclusões, que “falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 - que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento”.[2]

A questão da relação do lançamento definitivo do tributo com o tipo penal descrito no art. 1º da Lei n. 8.137/1990 é tormentosa e foi muito discutida, não se chegando a um consenso até a aprovação da súmula. Em princípio, compreendia-se que o lançamento definitivo era exigência para a propositura da ação penal, sem o qual não haveria justa causa para a deflagração da persecução penal. Exemplo desse entendimento está no julgamento da ADIn 1571, ocorrido em 10/12/2003.[3] Com o passar do tempo, o entendimento do STF oscilou, ora afirmando que o lançamento era elemento normativo do tipo, ora concluindo que o lançamento era condição objetiva de punibilidade. No HC n. 84.555, julgado em 07/08/2007, por exemplo, ficou assentado que o lançamento era elemento normativo do tipo penal.[4] Já no HC n. 86.032, curiosamente decidiu-se que o lançamento era condição objetiva de punibilidade e, ao mesmo tempo, elemento do tipo.[5]

Essa absoluta falta de consenso sobre a relação do lançamento definitivo do crédito tributário com a persecução penal dos crimes contra a ordem tributária não passou despercebida pelo Ministro Marco Aurélio. Nos debates que antecederam a aprovação da súmula, o Ministro, que votou contra o enunciado, chamou a atenção para isso, chegando a sugerir que a edição da súmula seria açodada em vista das controvérsias ainda existentes no âmbito do Tribunal:

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“Não votei essa matéria, Presidente. Jamais votei essa matéria – exigência de lançamento definitivo, para ter-se a persecução criminal quanto a crimes mencionados na citada lei. Constou a referência a lançamento num precedente do Ministro Sepúlveda Pertence, porém o que se discutia, no caso, não era o tipo, mas uma condição de procedibilidade quando em jogo sonegação de tributo – e há crimes diversos, quanto à configuração, que podem desaguar, claro, na sonegação. Portanto, não se versava sobre tipologia.

[...]

Presidente, sei que estamos numa fase de pragmatismo maior, de tentar-se chegar a resultado que implique celeridade judiciária, mas somente se avança culturalmente levando-se em conta a segurança jurídica. E verbete com essa natureza, com o efeito de aditar norma penal e exigir elemento que não compõe a configuração de crimes, dos crimes tributários, é passo demasiadamente largo.

[...]

Que se aguarde um pouco. Não devemos atuar com tanta rapidez, para não falar em açodamento. Aguarde-se que a matéria se torne pacificada, no âmbito do Supremo, para chegar-se, com absoluta fidelidade aos precedentes, à edição de um verbete.

Peço vênia para votar de forma contrária à aprovação desse verbete.”[6]

Apesar dessa advertência salomônica, a proposta de súmula foi aprovada por maioria com o seguinte enunciado:

“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.

Pois bem.

A súmula encerra, pelo menos, duas impropriedades gritantes. Primeira, inexplicavelmente deixou de fora o inciso V do art. 1º da Lei n. 8.137/1990. Considerando-se que a técnica legislativa empregada para positivar o tipo penal consistiu em descrever duas ações nucleares no caput do dispositivo (suprimir ou reduzir tributo) e diversas ações meio nos incisos, não se compreende porque a súmula abarcou apenas os quatro primeiros incisos. O inciso V descreve igualmente uma conduta meio que somente configura o delito se atingir o resultado descrito na cabeça do artigo. Logo, se a tipificação do delito nas hipóteses dos incisos I a IV depende do lançamento definitivo do tributo, da mesma forma esse lançamento é necessário para que a conduta descrita no inciso V também configure o delito. A exclusão do inciso V é tão injustificada que autores já aventaram a hipótese de simples esquecimento:

“Não se sabe exatamente o porquê desse inciso V no enunciado da Súmula. Provavelmente, resultou de omissão involuntária por ocasião de sua elaboração. Entretanto, esse fato é irrelevante juridicamente porque o inciso V integra as condutas referidas no art. 1º.”[7]

A propósito, registre que o Superior Tribunal de Justiça, em reiterados julgados, tem estendido o alcance da SV n. 24 para outros delitos contra a ordem tributária de natureza também material, a exemplo do art. 168-A e 337-A do Código Penal.[8] Aliás, o art. 337-A foi redigido nos mesmos moldes do art. 1º da Lei n. 8.137. Ora, se a súmula alcança delitos descritos em outros tipos penais, por muito mais razão há de incidir também sobre o desprezado inciso V, por se tratar do mesmíssimo tipo penal.

A par desse lapso, a súmula possui uma segunda impropriedade, consistente em considerar o lançamento definitivo do tributo um elemento do tipo penal. Diante dessa autêntica aberração jurídica, é forçoso concluir que o Ministro Marco Aurélio tinha razão quando afirmou que a aprovação da súmula refletia “açodamento” dos seus pares.


3. Elementos do crime contra a ordem tributária

A SV 24 afirma que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária... antes do lançamento definitivo do tributo”. O emprego da expressão “tipifica” não foi casual e tampouco espelha um sentido coloquial. A tipicidade, em direito penal, significa o enquadramento de uma determinada conduta ocorrida concretamente ao fato descrito abstratamente no tipo penal, chamado fato típico. Nesse sentido, aprende-se na doutrina:

“...o fato típico é a síntese da conduta ligada ao resultado pelo nexo causal, amoldando-se ao modelo legal incriminador. Em outras palavras, quando ocorre uma ação ou omissão, torna-se viável a produção de resultado juridicamente relevante; constatada a tipicidade (adequação do fato da vida real ao modelo descrito abstratamente na lei), encontramos o primeiro elemento do crime.”[9]

Por certo, não basta o fato se encaixar na definição legal do tipo penal. Modernamente, somente se considera típica a conduta apta a lesar ou gerar um perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal, como ensina ROGÉRIO SANCHES CUNHA:

“Para a doutrina moderna, entretanto, a tipicidade penal engloba tipicidade formal e tipicidade material. A tipicidade penal deixou de ser mera subsunção do fato à norma, abrigando também juízo de valor, consistente na relevância da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.”[10]

Portanto, tipicidade é um termo técnico, jurídico, utilizado para definir um dos elementos do crime, qual seja o fato típico ou o tipo penal, que é justamente “o modelo genérico e abstrato, formulado pela lei penal, descritivo da conduta criminosa ou da conduta permitida”.[11] Assim, quando uma conduta se encaixa ao tipo penal diz-se que essa conduta é típica. Ainda não se pode afirmar que a conduta é criminosa, pois crime é fato típico, ilícito e culpável ou fato típico e ilícito, segundo se adote a teoria tripartite ou bipartite do crime. Do contrário, ou seja, se a conduta não se amolda a um tipo penal definitivamente não se cuida de um crime, pois faltante um dos seus elementos, qual seja a tipicidade. Pode até configurar uma determinada infração, civil ou administrativa, mas não é crime.

O tipo penal é integrado por um núcleo e diversos elementos, que formam o chamado preceito primário do tipo. O núcleo é o verbo, a ação descrita como criminosa. Os elementos são dados agregados ao verbo que servem para “proporcionar a perfeita descrição da conduta criminosa”.[12] Assim, para que a conduta seja considerada criminosa é necessário que estejam presentes tanto a ação quanto os elementos descritos no tipo penal. Por exemplo, o preceito primário do crime de homicídio é descrito como “matar alguém” (art. 121 do Código Penal). “Matar” é o verbo, a ação. “Alguém” é o elemento, que se identifica como uma pessoa. Se um cidadão matar uma pessoa, a sua conduta se adequa perfeitamente ao tipo descrito na norma penal, razão pela qual a sua conduta será “típica”. Agora, se o sujeito matar um animal, pode-se estar diante de um crime ambiental, mas certamente não se trata do crime de homicídio, porque animal, por mais que alguns entendam o contrário(!), não é gente, não é “alguém”.

A súmula, ao prescrever que o crime contra a ordem tributária previsto no art. 1º da Lei n. 8.137 não se tipifica antes do lançamento definitivo do tributo, está afirmando que o lançamento definitivo do tributo é um dos elementos componentes do tipo penal. Ou seja, o lançamento é parte integrante do fato típico. Tanto que a configuração do delito depende do lançamento, como assentou convicto o Ministro Carlos Brito nos debates: “...sem o lançamento o tipo penal não se configura”.[13] Justamente por isso, aliás, a maioria também rechaçou a proposta do Ministro Joaquim Barbosa de incluir na súmula o tema da prescrição por entender absolutamente desnecessária, afinal, como ponderou o Ministro Cezar Peluso, “se não há crime ainda, não começa a prescrição”.[14]

Evidentemente, essa conclusão – o lançamento integra o tipo penal – é equivocada. Para constatar esse retumbante engano basta ler o tipo penal definido no art. 1º da Lei n. 8.137/1990:

“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.”

Por acaso o leitor encontrou nesse dispositivo alguma referência a lançamento tributário? Se encontrou, por favor, diga onde está escrito, pois a leitura mais atenta permite identificar expressões como tributo, contribuição social, ordem tributária, autoridade e fiscalização fazendárias, mas não lançamento. Não existe referência alguma a lançamento no tipo penal acima reproduzido. Nem o maior ginasta jurídico conseguiria extrair essa conclusão lendo a lei. Pois os Ministros do STF conseguiram tal feito. Não todos. Como se destacou antes, o Ministro Marco Aurélio ressaltou que nunca havia votado tal matéria, pois um dos precedentes referidos nos debates tratava de condição de procedibilidade, e não de tipo penal. O Ministro Marco Aurélio também não vislumbra no crime definido no art. 1º nenhuma referência ao lançamento como elementar do tipo penal:

“A Lei n. 8.137/90 – somente para rememorar – não versa apenas o tipo direto da sonegação. Tem-se, no inciso I, por exemplo, ser crime omitir informação.

Indago: exige-se, quanto à persecução criminal, processo administrativo para se definir se está configurado ou não esse tipo?

[...]

Onde está a exigência, como elemento próprio ao tipo, do lançamento? Não há exigência.”[15]

Como se pode perceber, o STF, ao editar a súmula, inovou no ordenamento jurídico, porquanto inseriu no tipo penal um elemento que não o integra na sua descrição legislativa. A referência a lançamento não existe no tipo penal em comento e nem poderia existir. Fosse realmente o lançamento tributário parte integrante do tipo penal, como faz crer o STF com o enunciado da SV 24, alguns absurdos jurídicos poderiam ser cogitados.

Sobre o autor
Leandro G. M. Govinda

Leandro G.M. Govinda formou-se em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e é especialista em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Foi pesquisador do CNPq, escriturário do Banco do Brasil, Técnico da Receita Federal, Auditor-Fiscal da Receita Federal e Procurador da Fazenda Nacional. Atualmente, é Promotor de Justiça do Ministério Público de Santa Catarina, Professor da Escola do Ministério Público e integrante do Conselho Editorial da Revista Jurídica Atuação do Ministério Público Catarinense. Escreveu artigos publicados na Revista Tributária e de Finanças Públicas, na Revista Fórum de Direito Tributário e na Revista dos Tribunais (RTSUL).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOVINDA, Leandro G. M.. Revisitando a Súmula Vinculante n. 24. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5147, 4 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57928. Acesso em: 24 dez. 2024.

Mais informações

Outras publicações do autor: A polêmica sobre a falsidade ideológica das faturas nas importações. RTFP, n. 106, set./out. 2012. Tributos e penalidades no despacho antecipado de mercadorias a granel. RTFP, n. 70, set./out. 2006. Controle sobre as operações por conta e ordem de terceiros nos regimes aduaneiros especiais. RTFP, n. 60, jan./fev. 2005. A falta de interesse de agir dos municípios nas ações demolitórias. RT Sul, v. 6-7-8.

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