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O abuso da imunidade tributária

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Agenda 01/12/2017 às 09:53

III – DO ABUSO DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA

III.I – A DEFINIÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NA DOUTRINA CIVILISTA

Preceitua o Código Civil de 2002 no Título III que dispõe sobre os atos ilícitos, especificamente que:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Infere-se do texto legal que o abuso de direito é um ato voluntário, comissivo ou omissivo, negligente ou imprudente, que viola direitos e causa prejuízo a terceiros, equiparado a um verdadeiro ato ilícito.

O excesso é caracterizado por um exercício aparentemente regular, mas que desrespeita a finalidade do direito (pacificação social e cumprimento da função social do Estado). No abuso não há limites definidos e fixados aprioristicamente, pois estes serão dados pelos princípios que regem o ordenamento os quais contêm seus valores fundamentais.

O fundamento encontra-se em preceitos éticos e morais que o direito não pode desconhecer, nesse sentido Venosa conceitua:

Juridicamente, abuso de direito pode ser entendido como fato de usar de um poder, de uma faculdade, de um direito ou mesmo de uma coisa, além do razoavelmente o direito e a Sociedade permite. O titular de prerrogativa jurídica, de direito subjetivo, que atua de modo tal que sua conduta contraria a boa-fé, a moral, os bons costumes, os fins econômicos e sociais da norma, incorre no ato abusivo. Nessa situação, o ato é contrário ao direito e ocasiona responsabilidade.[11]

A abuso de direito não foi incorporado expressamente no âmbito tributário, podendo a lei tributária alterar, inclusive, sua definição, nos termos do art. 110 do CTN.

Mesmo na ausência de legislação dando suporte, forte é a doutrina que se forma no sentido favorável a tal aplicação, sendo encabeçada pela Receita Federal do Brasil, no sentido de que o magistrado deve julgar a causa com base na analogia, nos princípios gerais do direito tributário, nos princípios gerais do direito público, na equidade, sendo o abuso de direito um princípio basilar no ordenamento jurídico.

Assim, mesmo sem disposição expressa, essa pesquisa segue a corrente de possibilidade de aplicação no âmbito das imunidades tributárias caso o contribuinte se utilize de determinado instituto do direito de maneira que, no âmbito do próprio direito, seja desproporcional, excessiva em relação às características daquele mesmo instituto, fazendo com que a imunidade funcione unicamente como um mecanismo para fugir da tributação e visando o enriquecimento.

III. II – ANALOGIA COM A INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DA ISENÇÃO DE VEÍCULOS PARA DEFICIENTES

O legislador ordinário estabeleceu isenções no tocante a impostos para pessoas portadoras de necessidades especiais na compra de veículos para facilitar sua locomoção.

Os consumidores portadores de necessidades estarão isentos de IPI, ICMS, IPVA, desde que sua deficiência esteja entre as estabelecidas no rol taxativo e cumprido os requisitos da Instrução Normativa 988 da Receita Federal, Convênio 38 ICMS e Lei nº 8.989/95.

A aquisição do veículo facilita a vida e a locomoção nas atividades diárias para o médico, exames, clínicas de tratamento, evitando o deslocamento manual pelas ruas e calçadas com péssimas qualidades.

Para a utilização da isenção, é necessário o preenchimento de certos requisitos, como por exemplo: i) confirmação da deficiência por laudo técnico especializado do Detran; ii) cadastro como contribuinte especial no site da Receita Federal; iii) concessão da isenção pela Secretaria da Fazenda; iv) escolher o carro, desde que seja 0 km e abaixo do valor de R$70.000,00 (setenta mil reais).

Como se pode inferir, a intenção do legislador é conferir um tratamento isonômico para as pessoas que se encontram em situações distintas, na medida de suas desigualdades.

Tendo em vista que uma pessoa com necessidades especiais, precisa em muitos casos arcar com tratamentos e exames, diminuindo sua capacidade contributiva em relação a outro indivíduo sem tais necessidades, percebe-se que o tratamento de isenção é uma configuração da justiça tributária, capacidade contributiva e isonomia tributária.

Dado interessante que merece uma atenção especial nesse trabalho reside no fato que mesmo portador da isenção, o legislador ordinário teve o cuidado que delimitar um certo patamar de valores para os veículos que serão isentos de impostos.

Tal atenção é digna de aplausos, uma vez que a benesse fiscal não deve ser utilizada como um instrumento para fugir da tributação de forma absoluta. O patamar de até R$70.000,00 (setenta mil reais) é considerado um veículo de porte médio de luxo, sendo suficiente no quesito conforto e espaço em comparação com os veículos mais simples do mercado, atendendo de forma essencial as necessidades dos portadores especiais.

O legislador teve o cuidado de evitar certos excessos e abusos do direito da isenção na compra de veículos considerados de luxo, uma vez que a real intenção não é conceder uma absoluta inexigência de impostos sobre veículos, mas um desconto que atenda aos anseios na medida de suas necessidades locomotoras e conforto básico, fator que um veículo de tal patamar atende perfeitamente.

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III.III – O ABUSO E SEUS DESDOBRAMENTOS NA ESFERA TRIBUTÁRIA

O presente artigo se baseia na crítica de um sistema falho e impreciso terminologicamente que acaba por gerar certo excesso na utilização da imunidade, configurando-se num verdadeiro abuso que faz parcela da população gerar sentimentos negativos sobre o instituto constitucional, requerendo o seu fim imediato.

A razão que alimenta esse sentimento de revolta se baseia nas cotidianas notícias de partidos políticos que apresentam “invejosos” conjuntos patrimoniais de bens; entidades religiosas que apresentam artigos do mais soberbo luxo e conforto (veículos de última geração, helicópteros, jatinhos e até mesmo iates) que o dinheiro pode comprar, registrados em seu nome sob a justificativa que é para o cumprimento de suas funções essenciais; entidades assistenciais que possui registrado em seu domínio verdadeiras “mansões”; sindicatos dos trabalhadores esbanjando vultosas receitas e diretores recebendo altos salários, dentre outros absurdos que não condizem cos preceitos visados pelo legislador constitucional decorrentes da norma imunizante.

Tais abusos são mais facilmente identificáveis nesse momento de crise política, econômica e social que o País vive, onde tal sistema tende a favorecer a desigualdade social, tornando o Brasil um país ainda mais injusto, desigual e marginalizado.

Preceitos esses que a República estipulou como Princípios Fundamentais e Objetivos Fundamentais que os entes federados lutariam para reduzir ou acabar, visando uma sociedade mais digna, livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional e estimulando a livre iniciativa, ideais que estimulam a reflexão e demonstram a ineficácia do direito no plano social e jurídico.

Sem adentrar no mérito da (i)licitude na obtenção desses bens ou no ingressos de tais receitas financeiras, o que se discute no presente trabalho é o conjunto formado pelo patrimônio, renda e serviços que representam signos presuntivos de capacidade de riqueza diferenciada em relação às demais da mesma espécie, não mais devendo comportar a interpretação absoluta da imunidade, uma vez que na aquisição de certos bens materiais se põe a prova a questão da necessariedade da obtenção dos mesmos para o cumprimento de suas funções essenciais, necessitando da regulação de um patamar de valores para certas aquisições não se tornarem abusivas, restando a partir daí a incidência de tributação.

Um exemplo para fins didáticos da proposta desse artigo seria o seguinte caso, uma entidade religiosa necessita de um veículo para transportar os seus membros durante eventos, compra de mantimentos para mesma, transporte para outros anexos de sua propriedade etc.

Percebe-se que no caso apresentado, a mesma necessita de um veículo que atenda tais fins para que continue exercendo sua atividade com louvor. No mercado de veículos, existe várias marcas, com diversos modelos e motores, diversas capacidades de carga.

No modelo atual, pela interpretação do STF quanto a extensão da imunidade, a entidade poderia adquirir tanto modelo(s) básico(s) ou intermediário(s) que atenda os fins de transporte e/ou cargas, quanto poderia adquirir um Rolls Royce Ghost Serie II motor V.12 Biturbo 6.6, veículo importado inglês, com valor a partir de R$ 2,9 milhões (valor com tributos inclusos) no mercado brasileiro sem nenhuma tributação, sob a justificativa de cumprir suas finalidade essenciais.

A presente discussão almeja refletir o conceito de necessidade de certas aquisições sob a justificativa de cumprimento de suas funções essenciais. Não se discute se o bem será ou não revertido essencialmente para sua função essencial, uma vez que tal fator é um requisito objetivo para permanência do gozo.

O que se discute é a o patamar de certos bens adquiridos para cumprir sua finalidade essencial sob o escudo da imunidade, configurando-se um nítido excesso pela conduta abusiva no manejo da consequência da incompetência.

Os mais românticos diriam que tais “problemas” não seriam culpa do direito, mas sim da sociologia do direito, filosofia do direito, uma vez que o direito é uma ciência do Dever-Ser, ficando para outro plano a eficácia do direito.

O direito como um regramento de condutas que visam a pacificação social deve distinguir e estabelecer certos parâmetros de valores para entidades que precisam do auxílio do Estado na consecução de seus objetivos das demais que já conseguem se auto sustentarem.

A imunidade nessa nova perspectiva deve ser vista analogicamente como no modelo do Simples-Nacional, visando um regramento mais favorável e beneficiador para as entidades, assim como para as micro empresas e as de pequeno porte, estimulando as pequenas a se tornarem grandes e atingirem certo patamar diferenciador em relação as demais por questões de capacidade contributiva, isonomia e justiça tributária, sendo totalmente passíveis de tributação.

A norma de imunidade como já definida no tópico sobre a conceituação, não é uma cláusula pétrea, não cria barreiras ou obstáculos no sentido de impedir a atividade legislativa de alinhar ou realinhar a competência tributária, vez que são normas de estrutura que visam o melhoramento do próprio sistema.

Não podendo assim o intérprete confundir a natureza da norma imunizante com os efeitos jurídicos dela decorrentes, trazendo a máxima efetividade de certos valores consagrados pelo texto constitucional como cláusulas pétreas.

A linha tênue que separa o exercício legal do direito do abuso se esvairia, uma vez que seria excluído tal interpretação do alcance da incompetência tributária, tornando o preceito muito mais condizente com os reais interesses do legislador originário constituinte, deixando o ordenamento muito mais harmônico.

Essa pesquisa não almeja excluir as imunidades tributárias, mas sim, aprimorá-las, extraindo a máxima efetividade de seus efeitos jurídicos, a real intenção do legislador adaptada e atualizada para o contexto histórico então vigente.

Com a devida vênia, a doutrina majoritária e a própria jurisprudência do STF interpretam a norma imunitória de forma ampla, geral e irrestrita, não atentando para o plano prático de seus efeitos jurídicos, configurando verdadeiros abusos por parte dos contribuintes que se apoiam no escudo da incompetência visando outros interesses que não os meramente essenciais da entidade.

Sob o viés do legislador, a norma imunizante confere eficácia e efetividade de certos valores constitucionais fundamentais, consagrando pela decorrência de seus efeitos a existência de um conjunto mínimo existencial para permanência das referidas entidades.

Os excessos causados pela “má intepretação” ou absoluta extensão do preceito não condizem com sua natureza, nem foram almejados pelo constituinte, sendo obra interpretativa ardilosa para se evitar unicamente a tributação, escorando-se na personificação da entidade para o gozo de “privilégios fiscais” abusivos.

A intenção do legislador em não prejudicar o culto/liturgia, não significa uma total abstinência do poder de tributar de forma absoluta, ampla e irrestrita em todas as hipóteses, mas sim a de garantir que certos patamares para o cumprimento de suas funções essenciais estejam imunes, garantindo um mínimo de patrimônio, renda e serviços para consecução de seus objetivos, não podendo o mesmo interferir nesse jaez.

Não se pode esquecer que o legislador constituinte ao criar os impostos estabeleceu que o mesmo incidisse sobre manifestações de riqueza, bases econômicas para quantificar, confirmar e infirmar o critério material da RMIT.

Assim, preservar-se-ia o mínimo de conjunto patrimonial para consecução de seus objetivos institucionais. Nas manifestações de riqueza de valores vultosos, é mais que necessário haver tributação, é condição isonômica diferencial entre as demais da mesma espécie, por uma questão de demonstração de capacidade contributiva digna e suficientemente condizente com suas capacidades financeiras.

Esse estudo visa uma discussão embrionária de uma possível proposta de Emenda Constitucional dispondo sobre uma regulamentação, por lei complementar, que limite o poder de tributar nos termos do art. 146, II, da CF, estabelecendo patamares de valores e faixas de imunidades pelo Poder Legislativo, tornando muito mais eficaz e eficiente os preceitos constitucionais consagrados.

Caso uma entidade religiosa, assistencial ou política, que não visam unicamente o lucro, se tornarem além de autossustentáveis e autossuficientes, crescerem ao ponto de virarem verdadeiras “potências” com invejável poder econômico e conjunto patrimonial de bens, seria razoável refletir que possuam capacidade contributiva suficiente para suportar o ônus tributário.

Como se sabe imposto não é uma punição pela inteligência do art. 3º do CTN, visando custear as atividades essenciais do Estado na consecução do cumprimento do seu dever social.

Sendo estipulado na própria Constituição Federal em seu art. 1º, IV, que a República Federativa do Brasil terá como Fundamento a “livre iniciativa”, a imunidade serve para estimular que as entidades desenvolvam atividades econômicas para se sustentarem sozinhas, devendo toda instituição que vise crescimento se esforçar para conseguir receitas que superem suas despesas para chegarem num patamar de não mais necessitarem, podendo adquirir bens acima dos patamares imunes devido sua esplêndida capacidade contributiva, arcando com a devida tributação.

A discussão sobre uma possível Emenda Constitucional deve ser pautada visando a estipulação dos patamares da imunidade para o patrimônio, as rendas e os serviços considerados essenciais, evitando os excessos e abusos por parte desse direito utilizado de forma indevida, causado pela tamanha extensão da interpretação da norma de imunidade.

Como já se afirmou, os valores consagrados como cláusulas pétreas, esses jamais poderão ser reduzidos, persistindo no texto constitucional, não sendo esse o caso das normas de imunidade, que trazem maior efetividade e eficácia a tais disposições, sendo passíveis de alteração para melhor materializá-las no plano prático.

Apenas para reforçar o pensamento, a interpretação ampla e irrestrita da norma imunizante leva à dolosa conduta do abuso de direito, não fazendo parte da abrangência da interpretação teleológica visada pelo legislador ordinário constitucional.

Mesmo para os que consideram a imunidade uma cláusula pétrea, não se estaria reduzindo, uma vez que tal interpretação nunca fez parte da intenção da norma imunizante, sendo uma alteração para trazer a máxima efetividade do preceito constitucional, interpretando-a conforme os valores fundamentais assegurados pela Constituição.

A imunidade não pode ser utilizada como um artifício ardiloso com intuito de evitar a tributação na forma de um escudo protetor contra qualquer abuso ou excesso por parte do contribuinte, utilizando as instituições e entidades como muralhas para seus interesses escusos.

O contexto histórico, social e político que o País vive com a perda de credibilidade das instituições, a corrupção em massa, os desvios de finalidade, pregam por uma nova evolução do direito para atentar contra tais fatos que corroboram para corrosão dos princípios basilares.

O direito como um ordenamento dinâmico e atento as evoluções sociais, precisa jurisdicizar os novos valores em prol de uma sociedade livre, justa e solidária, evitando verdadeiros abusos por parte das entidades imunes.

Nessa discussão inicial sobre uma possível proposta de Emenda à Constituição, o intuito da norma imunizantes seria o de garantir um mínimo de conjunto patrimonial e de receitas para consecução de seus objetivos essenciais.

A essencialidade do objetivo deve ser analisada sobre o viés da necessidade e ainda assim visando o a instrumentalização do meio adequado para operacionalização de seus objetivos.

Nessa nova visão, as instituições e entidades serão incentivadas a crescer, progredirem com seus próprios passos e conforme esse processo de evolução, chegar a patamares que não precisarão mais do suporte do Estado, virando autossuficientes, sendo capazes de perseguirem seus objetivos de forma independente e disporem sobre a compra de bens acima dos valores imunes como bem entender com a devida tributação ressaltando suas qualidades de elevada capacidade contributiva, isonomia em relação às demais e justiça tributária.

Diante das razões expostas, a imunidade tornaria o ente incompetente para tributar no tocante a impostos:

I) A propriedade, os bens e os serviços utilizados na satisfação dos objetivos institucionais imanentes do ente federado;

II) Desde que não beneficie atividades de exploração econômica, destinadas primordialmente a obtenção de lucros (que se diferencia da atividade econômica desenvolvida em proveito do reinvestimento na própria entidade);

III) Não devendo ter como efeito colateral a quebra dos princípios da livre concorrência e do exercício de atividade profissional ou econômica ilícita;

IV) Desde que atendidos os patamares econômicos para estipulação da faixa de imunidade no atendimento das necessidades de suas finalidades essenciais dispostas em Lei Complementar.

Sobre o autor
Filipe Reis Caldas

Advogado Tributarista. Bacharel em Direito pela Faculdade Marista. Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF. Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALDAS, Filipe Reis. O abuso da imunidade tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5266, 1 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57977. Acesso em: 22 dez. 2024.

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