O princípio da fundamentação das decisões judiciais
A Constituição Federal de 1988, bem como o Código de Processo Civil Brasileiro, prevê a fundamentação das decisões como uma garantia a qual relaciona-se diretamente com outras garantias constitucionais, como o princípio do contraditório e da ampla defesa; do devido processo legal e da publicidade, dentre outras.
Com redação incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, assim expressa o artigo 93, IX da Constituição Federal:
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
Grifo nosso
O referido dispositivo impõe que toda decisão judicial deve ser explicada, fundamentada e justificada pelo Magistrado que a proferiu. Temos assim que o dever de fundamentação visa assegurar a transparência da atividade judiciária, possibilitando que, por meio da decisão judicial, seja possível o exercício do controle da qualidade da prestação jurisdicional.
Nesse sentido, no entendimento de Bueno[16], a fundamentação é uma forma do Magistrado prestar contas do exercício de sua função aos jurisdicionados e a toda sociedade.
Pedro Lenza[17] destaca que o dever de motivar as decisões não representa somente uma garantia às partes, mas qualquer do povo, com a finalidade de aferir a imparcialidade do juiz e a legalidade de justiça das decisões.
Por seu turno, Tereza Arruda Alvim Wambier, aponta que o dever de motivação está ligado à uma manifestação do princípio do contraditório, uma garantia de constatação de que as partes foram ouvidas.[18]
Por fim, assevera Nelson Nery Junior que as decisões sem motivações não servem como fundamentação. O julgador tem que “ingressar no exame da situação concreta posta à sua decisão, e não limitar-se a repetir os termos da lei, sem dar as razões do seu convencimento”.[19]
Neste contexto, vale destacar o conteúdo trazido pelo artigo 489 do CPC/2015, o qual estabelece que:
Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.
Grifo nosso.
Insta destacar que a Constituição Federal deve prevalecer sobre as demais legislações, devendo seus mandamentos serem criteriosamente observados. Além disso, a fundamentação da decisão é quem dará corpo para determinada ratio decidendi e, portanto, poderá operar efeitos em processos outros, e até mesmo orientar a conduta do indivíduo em sociedade.
Nesse sentido, aponta Didier que a fundamentação:
[...] não serve apenas à justificação, para as partes envolvidas naquele processo específico, da solução alcançada pelo órgão jurisdicional. Num sistema em que se valorizam os precedentes judiciais, a fundamentação serve também como modelo de conduta para aqueles indivíduos que não participam, nem nunca participaram, daquele processo específico, haja vista que poderá ser por eles invocado para justificar e legitimar sua conduta presente[20].
Discorrendo sobre a importância, Misael Montenegro Filho[21] afirma que toda a decisão judicial deve ser fundamentada, visto que deste modo, dá-se às partes envolvidas a oportunidade de compreender os motivos da decisão e, se for o caso, impugná-la por meio de recurso. Desta feita, temos que a obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais tem por objetivo a imposição ao juiz de demonstrar de maneira clara e objetiva os motivos que o convenceram para a adoção de determinada conclusão.
Para Luiz Guilherme Marinoni[22], a motivação é a explicação da origem, das razões e da convicção da decisão do Juiz, de modo a esclarecer se ela é suficiente ou não para a procedência do pedido.
Seguindo este trilho, importante contribuição nos traz Nelson Nery Júnior ao apontar que:
Fundamentar significa o magistrado dar as razões, de fato e de direito, que o convenceram a decidir a questão daquela maneira. A fundamentação tem implicação substancial e não meramente formal, donde é lícito concluir que o juiz deve analisar as questões postas a seu julgamento, exteriorizando a base fundamental de sua decisão. Não se consideram “substancialmente” fundamentadas as decisões que afirmam “segundo os documentos e testemunhas ouvidas no processo, o autor tem razão, motivo por que julgou procedente o pedido”. Essa decisão é nula porque lhe faltou fundamentação.[23]
Existem diversas razões para a existência da obrigatoriedade da fundamentação das decisões, dentre as quais destaca-se a proteção contra decisão arbitrária. Defendem esse entendimento Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina.[24]
Isso posto, podemos inferir que a falta de clareza ou a ausência da fundamentação da decisão negativa proferida pelo juiz ofende o princípio do contraditório, visto que dificulta à parte derrotada a elaboração de recurso para instância superior.
Como bem argumentam os juristas Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira:
A exigência da motivação das decisões judiciais tem dupla função.
Primeiramente, fala-se numa função endoprocessual, segundo a qual a fundamentação permite, que as partes, conhecendo as razões que formaram o convencimento do magistrado, possam saber se foi feita uma análise apurada da causa, a fim de controlar a decisão por meio dos recursos cabíveis, bem como para que os juízes de hierarquia superior tenham subsídios para reformar ou manter essa decisão.
Fala-se ainda numa função exoprocessual ou extraprocessual, pela qual a fundamentação viabiliza o controle da decisão do magistrado pela via difusa da democracia participativa, exercida pelo povo em cujo o nome a sentença é pronunciada. Não se pode esquecer que o magistrado exerce parcela de poder que lhe é atribuído (o poder jurisdicional), mas que pertence, por força do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, ao povo.[25]
Como visto, é imprescindível a fundamentação das decisões, visto que sua confere especial importância para as decisões. Assim, temos que a fundamentação das decisões possui caráter multifuncional e sua ausência em uma sentença acarreta em nulidade da decisão.
Há, contudo, entendimentos no sentido de que a falta de motivação atuaria, meramente, como elemento autorizador do ajuizamento de ação rescisória. Nesse sentido, Sérgio Nojiri defende que a falta de fundamentação implica em decisão anulável por recurso ou rescindível no prazo de dois anos por meio do ajuizamento da ação rescisória, fundamentando sua conclusão no princípio da segurança jurídica[26].
Conforme aponta Rogério Lauria Tucci[27], em uma perspectiva mais radical, à falta da fundamentação, relatório ou do dispositivo de uma sentença, acarretaria em sua inexistência.
A respeito da imprescindibilidade da fundamentação das decisões judiciais, importa destacar o apontamento de Nelson Nery Júnior sobre os efeitos da violação do princípio:
Caso não sejam obedecidas as normas do art. 93, n. IX e X, da CF, a falta de motivação das decisões jurisdicionais e administrativas do Poder Judiciário acarreta a pena de nulidade a essas decisões, cominação que vem expressamente designada no texto constitucional. Interessante observar que normalmente a Constituição Federal não contém norma sancionadora, sendo simplesmente descritiva e principiológica, afirmando direitos e impondo deveres. Mas a falta de motivação é vício de tamanha gravidade, que o legislador constituinte, abandonando a técnica de elaboração da Constituição, cominou no próprio texto constitucional a pena de nulidade.[28]
A previsão constitucional de pena de nulidade para fundamentação decisória defeituosa decorre do abuso de fundamentações superficiais e desprendidas do caso em julgamento, bem como ao desprezo dos argumentos suscitados pelas partes. Esse comportamento não cooperativo dos julgadores revela flagrante violação do princípio da motivação ou fundamentação, disposto no artigo 93, IX, da Carta Magna, de maneira que, em busca de corrigir esse desvio, o Constituinte decidiu por inserir no próprio texto constitucional a pena de nulidade das decisões não fundamentadas.
Inovações trazidas pelo art. 489 do Código de Processo Civil de 2015.
No mesmo caminho da previsão contido no artigo 93, IX, da CF/88, o Código de Processo Civil de 2015 trouxe mudanças substanciais no mundo jurídico, sendo uma das mais relevantes a ratificação do dever de fundamentação das decisões pelo Magistrado.
O artigo 489, do Código de Processo Civil, em seu parágrafo primeiro e incisos seguintes, estabelece uma criteriologia decisional. O dispositivo enumera algumas hipóteses de decisões não fundamentadas, consolidando situações de flagrante violação ao dever constitucional de fundamentar, vejamos:
Art. 489. [...]
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Embora não seja novidade para a doutrina e para jurisprudência, o dispositivo em comento demonstra a intenção do legislador em despertar no julgador a necessidade de aprimoramento da fundamentação das decisões judiciais, especialmente quando se deparar com enunciados normativos abertos e princípios jurídicos[29], bem como possibilitar o exercício do controle sobre a correta aplicação da jurisprudência.
De outra sorte, o enunciado do art. 489, CPC, obriga o julgador a, sempre que invocar ou afastar algum precedente ou enunciado de súmula na decisão, extrair previamente a ratio decidendi deles, ou seja, os motivos necessários e imprescindíveis que deram amparo ao precedente ou enunciado de súmula utilizado. Deverá também, o juiz, demonstrar em sua fundamentação a aplicabilidade, no caso concreto, da ratio decidendi analisada.
Embora muito criticado pelos magistrados, sob a argumentação de que os requisitos exigidos pelo dispositivo em comento impactariam negativamente a gestão e decisão dos processos. No entanto, acertadamente procedeu o Legislativo ao impedir a emissão de fundamentações vazias, insuficientes, defensivas e, portanto, incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.
Por fim, o Código de Processo Civil de 2015 estabelece que fundamentações padronizadas e sem o enfrentamento dos argumentos das partes, não serão válidas. Da mesma forma, não se deve admitir meras reproduções de textos da lei ou enunciados de súmulas da jurisprudência dos Tribunais. O que o dispositivo exige é a completa e suficiente discussão da tese jurídica a incidir sobre as especificidades do caso.[30]