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A incapacidade do Estado Brasileiro em conferir aplicabilidade às disposições da Lei de Execução Penal

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A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, A REINTEGRAÇÃO DO PRESO E A NORMA JURÍDICA BRASILEIRA

Sarlet (2004, p. 33), quando ilustra o pensamento de Immanuel Kant, afirma que a dignidade é definida como a qualidade peculiar e insubstituível da pessoa humana, pois as coisas, por terem seu preço, poderiam ser substituídas por outra de valor equivalente, o que não pode acontecer com o homem. O valor deste, formulado por um valor íntimo, individual e interno, não é passível de substituição ou equivalente valor, pois tal valor é superior a qualquer preço, impossível de ser mensurado nessa perspectiva de preço.

No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra coisa equivalente: mas quando uma coisa está acima de todo preço, e, portanto não permite equivalente, então ela tem uma dignidade... esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade. (SARLET, 2004, p. 33).

A Constituição Federal de 1988 enxerga o princípio da dignidade da pessoa humana como norma jurídica fundamental, reconhecendo que é o Estado quem existe em função da pessoa humana, e não o contrário, coforme o mesmo Sarlet (2004, p. 65), mostra, sustentando que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal. É o Estado que deve existir em função do ser humano.

O princípio da dignidade da pessoa humana é considerado como supraprincípio constitucional (NUNES, 2009, p. 49), mandamento objetivo de todo o ordenamento jurídico, seja de ordem constitucional ou inferior, não podendo o intérprete da lei ignorar tal condição e não dar alcance às normas que lhe restabeleçam a condição de viver dignamente como ser humano.

Nessa linha, vemos que o princípio da dignidade atua como elemento fundador de outras garantias na constituição, tal como ocorre com as regras do direito do penal quando pressupõe que não haverá pena de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento ou cruéis (art. 5º, XLVII, CF/88).

Isto posto, a busca pela humanização do instituto das prisões encontra respaldo não só na Constituição brasileira, mas atua como finalidade precípua do próprio ordenamento jurídico e da atividade estatal, não podendo servir de instrumento para aplicação de penas cruéis, desumanas ou degradantes, nem servir de depósito de pessoas, amontoadas em péssimas condições de sobrevivência.

Elencado na Lei de Execução Penal, o art. 1° aborda o principal objetivo da execução da sentença penal condenatória: a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

Ao lado desse objetivo maior, somam-se os escopos específicos de proporcionar condições para a harmônica reintegração social do condenado e do internado. Vale dizer, a reintegração do apenado ou do submetido à medida de segurança.

A natureza retributiva da pena privativa de liberdade cumprida nos estabelecimentos prisionais não deve objetivar apenas a punição, mas também a humanização, no sentido de tornar o indivíduo apto a, além de não mais delinquir, retornar e ser aceito pela sociedade como indivíduo regenerado. Na senda da teoria eclética ou mista, a execução penal também visa punir e humanizar.

De acordo com Nery Júnior (2006, p.164):

Tanto quanto possível, incumbe ao Estado adotar medidas preparatórias ao retorno do condenado ao convívio social. Os valores humanos fulminam os enfoques segregacionistas. A ordem jurídica em vigor consagra o direito de o preso ser transferido para local em que possua raízes, visando a indispensável assistência pelos familiares.

O preso, assim como qualquer outra pessoa, é um sujeito de direito e deveres, uma pessoa humana que deve ser punida pelo crime que cometeu, mas ao qual se de oportunizar a recuperação, já que a reintegração social, como estabelece a Lei de Execução Penal, é uma obrigação do Estado. Além disso, é uma obrigação da própria sociedade, que passou a ser ponto fundamental na realização da Execução Penal, principalmente após o ano de 1984, ano em que entrou em vigor aquela lei.

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O ordenamento jurídico brasileiro afasta o preso da sociedade com a intenção de puni-lo, ao passo que o devolve à sociedade com a intenção de resocializá-lo, sendo que este último objetivo se inicia na prisão, quando a Lei de Execuções Penais assegura ao preso, de forma taxativa, no art. 32: Na atribuição do trabalho deverão ser levadas em conta a habilitação, a condição pessoal e as necessidades futuras do preso, bem como as oportunidades oferecidas pelo mercado.

Todavia, o que encontramos é uma situação diferente, como afirma Mirabete (2002, p.24):

A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias, tendem a converter-se num microcosmo no qual se reproduzem e se agravam as grandes contradições que existem no sistema social exterior (...). A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre a sua função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação.

É fundamental que o egresso do sistema penitenciário seja reconhecido como indivíduo, como ser humano apto de ser corrigido e ressocializado por meio da capacitação e de desenvolvimento pessoal, educacional e profissional. Isto, claro, por si só não será eficiente e nem eficaz. Alguns presos serão analfabetos, e outros poderão ter sido até alfabetizados, já que 82% dos presos brasileiros não possuem o primeiro grau completo e 81% deles não possuem qualquer tipo de qualificação profissional (XAVIER, 2002, p.198).

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos preconiza a “regeneração e a reabilitação” daqueles submetidos à prisão. Por este Pacto, os Estados devem oferecer condições e atividades dentro dos estabelecimentos profissionais para que os presos desenvolvam suas habilidades pessoais e que, fora do presídio, possam exercer alguma atividade lícita como profissão, vinculando a atividade desempenhada na penitenciária como uma especialização, tendo ampliado o seu nível educacional e profissional para que, de volta à sociedade, seja reconhecido e aceito novamente.

Dentro de uma perspectiva de dentro da prisão, Nelson Mandela já dizia:

Costuma-se dizer que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões. Uma nação não deve ser julgada pelo modo como trata seus cidadãos mais elevados, mas sim pelo modo como trata seus cidadãos mais baixos.

Não basta que as autoridades penitenciárias meramente tratem os presos com humanidade e dignidade. Elas também devem oferecer oportunidades de mudanças e desenvolvimento aos presos sob sua custódia. Isso exige habilidades consideráveis e muito empenho. A maioria das penitenciárias está repleta de pessoas marginalizadas da sociedade. Muitas delas têm origens na pobreza e vêm de famílias desestruturadas; uma alta porcentagem será de pessoas desempregadas; os níveis de escolaridade serão, em sua grande maioria, baixos e algumas dessas pessoas terão vivido nas ruas. Mudar as perspectivas de vida de pessoas com tantas desvantagens não é tarefa fácil.


A REINTEGRAÇÃO SOCIAL NA LEI DE EXECUÇÃO PENAL

Como já se foi anotado, além de punir o delinquente pelo crime que cometeu o ordenamento jurídico deverá se preocupar conjuntamente com a reintegração social destes indivíduos. Entende-se a prática da ressocialização como uma medida que culmina com o fornecimento ao apenado condições e de capacitação para a sua reestruturação para que quando ele volte ao convívio social, não caia nas garras do crime novamente.

As ações de reintegração social podem ser definidas como um conjunto de intervenções técnicas, políticas e gerenciais levadas a efeito durante e após o cumprimento de penas ou medidas de segurança, com o objetivo de gerar interfaces de aproximação entre Estado, Comunidade e as Pessoas Beneficiárias, como forma de lhes ampliar a reintegração e reduzir a reincidência criminal.

No sistema atual das práticas gerenciais do DEPEN, considera-se que os projetos na área de reintegração social devem estar posicionados entre alguns eixos básicos:

Formação Educacional e Profissional dos apenados, do Sistema Penitenciário Nacional fala sobre o processo pelo qual se procura associar a elevação da escolaridade e a educação profissional, com o acesso ao trabalho e à geração de renda, de maneira a preparar o beneficiário para ingressar no mundo do trabalho após o cumprimento da pena privativa de liberdade, principalmente no que toca à capacitação das mulheres (art. 19, parágrafo único, da LEP) em privação de liberdade.

Com o intento de proporcionar ao apenado um desenvolvimento pessoal e intelectual, no que diz respeito à aquisição de conhecimento técnico para a execução de atividades que favoreçam a reintegração social, o legislador elencou no texto original da Lei de Execução Penal as possibilidades de exercício educacional e de trabalho. Do texto legal, exemplificamos os arts. 17 a 21 e 28 a 37, onde constatamos clara e fielmente que a Execução da Pena traz, de forma evidente, o ensejo necessário para o desenvolvimento supracitado.

A Lei de Execução Penal, de certa forma, influencia o apenado a procurar uma oportunidade de reencontro com os ditames de uma vida digna e alinhada aos preceitos sociais. É notório, fazendo-se a leitura da do art. 126, que o trabalho e o estudo são vistos como os principais viabilizadores do regresso à vida social. O referido artigo remete à remição de pena, instituto que possibilita uma diminuição da pena restante em virtude do estudo e do trabalho. O artigo é bastante taxativo, como pode ser perceber em sua transcrição, in verbis:

Art. 126.  O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena.

§ 1o A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de:    

I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias;

II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho.

Já no que diz respeito ao Capítulo II do mesmo ordenamento penal, a assistência ao preso, ao internado, ao egresso e aos seus dependentes faz referência a um movimento de promoção dos direitos dos apenados, internados, egressos, dependentes e familiares, criando condições para que estes possam exercer a sua autonomia. Esse processo deve ser mediado pela inclusão dos beneficiários na agenda das políticas públicas de governo e pelo apoio a ações de instituições públicas e privadas, de caráter permanente, que tenham como objetivo prestar atendimento aos beneficiários, de acordo com a lei: material, jurídica, educacional, social, religiosa e principalmente à saúde ao egresso, após a edição do plano nacional de saúde no sistema penitenciário.

Zacarias (2006, p. 61) ressalta que “o trabalho é importante na conquista de valores morais e materiais, a instalação de cursos profissionalizantes possibilita a resolução de dois problemas, um cultural e outro profissional. Muda o cenário de que a grande maioria dos presos não possui formação e acabam por enveredar, por falta de opção, na criminalidade e facilitam a sua inserção no mercado de trabalho, uma vez cumprida a pena”. O trabalho em suas várias faces vem como um processo natural de resgate da sua dignidade humana.

Portanto, o detento visualiza no trabalho uma oportunidade de sair do mundo da criminalidade. No entanto, quando são abertas as portas da penitenciária, as portas das oportunidades e dos empregos são fechadas pela sociedade, ou seja, eles saem de uma prisão onde cumpriram ou vêm cumprindo sua pena, mas carregarão sempre o “fardo” de ser um ex-presidiário. Assim sendo, sempre que forem procurar emprego, será solicitado a ele que apresente uma Certidão de Antecedentes Criminais, onde constará sua passagem pela penitenciária, por conta do cumprimento de pena. Há de se entender, então, que é uma relação tríplice, que envolve a disposição do Estado, a vontade do presidiário e a consciência por parte da sociedade em geral.

Infelizmente, os grandes índices de criminalidade e as condições dos presídios deixam à mostra a incapacidade do Estado brasileiro na ressocialização do preso, o que causa certo temor à sociedade em contar com o trabalho profissional do egresso do sistema penitenciário. Dizermos que a sociedade ainda se mostra muito preconceituosa, é um pouco injusto, a medida em que qualquer cidadão sabe, tem conhecimento de que o preso não dispõe de condições de se ressocializar por si mesmo, já que o Estado não lhe apoia da forma como deveria ser feita.

A sociedade passa a enxergar o egresso de forma separatista, não mais sendo tratado pelo nome, mas sim visto e tratado por expressões taxativas e discriminadoras, como “o detento, o preso, o vagabundo”. Sendo assim, essa “rotulação” dificulta a mudança, inclusive em caráter psicológico do apenado, e não por culpa só da sociedade.

Por conta disso, há de se considerar que a dificuldade passada por um ex-presidiário que tem um nível de escolaridade maior, que se capacita dentro da penitenciária, aproveitando o momento de ociosidade, quando é oferecida capacitação, é muito menor. Isso acaba mostrando a importância do cumprimento do disposto na legislação.

Para que o Estado consiga conclamar a sociedade à causa do ex-detento é necessário, agora, que o primeiro demonstre o investimento na ressocialização, já que como descreve Xavier (2012, p. 198), do orçamento destinado ao sistema penitenciário, apenas 1% foi destinado aos programas de ressocialização, enquanto 99% destinaram-se à construção de novos estabelecimentos prisionais.

Não esperando somente pela atuação estatal, ex-detentos, com o apoio do grupo cultural AfroReggae, criou, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, uma agência de empregos chamada de “Segunda Chance”[1], responsável pelo reabilitação de ex-presidiários no mercado de trabalho. A agência possui parceria com cerca de 50 empresas, já tendo realizado atendimento há mais de três mil egressos, onde apenas 15% deles foram contratados, reflexo da falta de investimentos em programas de ressocialização e capacitação profissional dentro dos estabelecimentos prisionais.

Apesar de todos os percalços, o Conselho Nacional de Justiça, em seu sítio eletrônico[2], possui um programa de ressocialização chamado de “Começar de novo”, que tem por objetivo promover ações para ressocialização de presos e egressos do sistema prisional. São ações educativas, de capacitação profissional e de reinserção no mercado de trabalho que visam, em parceria com o Poder Público, com a iniciativa privada e a sociedade civil organizada, a promoção de ações de cidadania em prol da melhoria do sistema penal. Neste programa, diversas vagas de emprego e de cursos são oferecidas[3].

 Apesar dos esforços, conseguimos enxergar no Programa Começar de Novo, do Conselho Nacional de Justiça, um exemplo de participação efetiva do Estado brasileiro em parceria com a iniciativa privada e entidades do Sistema S (SESI, SENAI, SENAC). Tendo em vista a grande quantidade de presos e egressos, aliada à falta de capacitação profissional dentro dos presídios, o preenchimento dessas vagas fica comprometido.

Os dois programas listados são apenas exemplos de alguns outros existentes que, apesar da excelente iniciativa, não alcançam melhores resultados justamente pelo fato do Estado brasileiro não investir no que dispõe a Lei de Execução Penal. Nesse diapasão, por mais agências de emprego que existam e por mais que a sociedade e iniciativa privada abra o mercado de trabalho aos egressos do sistema penitenciário, sem qualificação e capacitação, não há como esses programas atingirem seu papel.

É necessário que se ocupe o tempo ocioso do detento com a realização de programas educativos e de capacitação profissional, já que, uma vez fora do presídio, o egresso terá de lutar pela sobrevivência contra tudo e contra todos, não tendo condições nem incentivo econômico para cursar programas de capacitação. Já que a prisão é um mal necessário, que seja conferido a este mal o maior número possível de benefícios.

É dever do Estado recorrer à cooperação comunitária nas atividades de execução da pena e da medida de segurança. A Lei de Execução Penal é fundada numa ideologia que tem a pretensão de obter a integração da comunidade através de organismos representativos no acompanhamento das penas, acreditando que, com isso, se torna maior a probabilidade de recuperação do condenado, até porque, quando se extinguir a pena, possivelmente já terá apoio garantido para sua reinserção social, mormente no mercado de trabalho.

Sobre os autores
Diego Pessoa

Graduado em Direito pela Faculdade Luciano Feijão Pós Graduando em Direito Processual Civil pela Universidade Estadual Vale do Acaraú

Rafael Furtado Brito da Ponte

É acadêmico de Direito do 9º semestre da Faculdade Luciano Feijão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMEZ, Diego Pessoa; PONTE, Rafael Furtado Brito. A incapacidade do Estado Brasileiro em conferir aplicabilidade às disposições da Lei de Execução Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5085, 3 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58217. Acesso em: 22 dez. 2024.

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