3. A RESPONSABILIDADE PELA NÃO OBSERVÂNCIA DA ORDEM CRONOLÓGICA
Como dito alhures, as normas dos arts. 12 e 153 do nCPC veiculam deveres do Estado-juiz e de sua serventia para com o jurisdicionado, o qual, por sua vez, tem um direito subjetivo público de ver a norma – in casu, a observância da ordem cronológica – ser aplicada adequadamente em seu caso individual. Assim, é mister que haja mecanismos disponíveis ao jurisdicionado para que esse faça valer a norma disposta em seu favor.
Antes de mais nada, vale fazer registro de um enunciado, além dos já mencionados supra, aprovado no Seminário “O Poder Judiciário e o novo Código de Processo Civil”, organizado pela Enfam. Conforme o enunciado 34:
“A violação das regras dos arts. 12 e 153 do CPC/2015 não é causa de nulidade dos atos praticados no processo decidido/cumprido fora da ordem cronológica, tampouco caracteriza, por si só, parcialidade do julgador ou do serventuário”[9].
Quanto à inexistência de nulidade em razão da violação da ordem, o próprio nCPC sustenta a tese firmada pelos membros da Enfam (vide arts. 277 e 282, § 1º). Já no que toca à parcialidade do julgador ou do serventuário, há de se lembrar que o enunciado supratranscrito foi publicado por ocasião de seminário realizado antes da edição da Lei 13.256/2016, de maneira que, admitindo-se a flexibilização da regra, a constatação de eventual transgressão a ela demandará prova minimamente substanciosa, não havendo culpa presumida pelo descumprimento da ordem cronológica.
Pode-se dizer, tanto quanto os atos do serventuário, que o ato do magistrado que implique descumprimento da ordem cronológica em debate é tipicamente administrativo, pois que contraria, em tese, a justa e adequada administração da ordem dos julgamentos e a igualdade de tratamento entre os jurisdicionados. Assim sendo, o remédio cabível para correção de eventuais distorções seria o mandado de segurança, à semelhança do que já admitido pela jurisprudência para situações de preterição da ordem de pagamento de precatórios[10]. Outra medida que se mostra adequada, conforme abalizada doutrina, e talvez até mais apropriada que o mandado de segurança, é a correição parcial, prevista no regimento interno de cada tribunal ou no de suas corregedorias[11].
Quanto à responsabilidade civil do juiz, como se sabe, a jurisprudência da Corte Suprema a rechaça, em regra, veementemente[12]. Contudo, quando se trata de ato tipicamente administrativo do magistrado, temos que a responsabilidade civil não é afastada, ainda que só se possa atingir a esfera particular do agente político de forma regressiva, conforme dispõe o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, cabendo ao particular ajuizar, sendo do seu interesse, ação indenizatória apenas em face do Estado.
Seja em relação à ordem cronológica de conclusão, seja quanto à ordem de recebimento em cartório, as partes possuirão – e isso não foi modificado pela Lei 13.256/2016 – um importante instrumento de controle, que são as listas de processos conclusos ao juiz ou recebidos em cartório, disponíveis para consulta pública. Com base nessa lista e no andamento processual poderá a parte reclamar ao tribunal ou corregedoria o retardo da prolação da sentença ou acórdão, assim como poderá reclamar ao juiz em face de eventual preterição no cumprimento dos seus pronunciamentos, de modo que nem o magistrado nem o escrivão possuem, a despeito da mudança do texto do caput, um “cheque em branco” para movimentar os processos segundo suas próprias prioridades.
No caso do escrivão ou chefe de secretaria, esse poderá ser responsabilizado mediante a apuração dos fatos em processo administrativo disciplinar (§ 5º), sem prejuízo da determinação de imediato cumprimento do ato procrastinado. Essa responsabilização, além de administrativa, pode se dar ainda no âmbito cível (art. 155 do nCPC), caso demonstrado o nexo entre o ato doloso ou culposo e o prejuízo experimentado, e até no âmbito criminal, já que a omissão se enquadra, em tese, no crime de prevaricação (art. 319 do Código Penal).
Não é demais salientar que o escrivão, chefe ou diretor de secretaria, em regra, é servidor de confiança do juízo, exercendo cargo ou função comissionada. Assim, é natural imaginar-se a existência de uma relação estreita entre o magistrado e o escrivão, ainda que não alcance o ponto de uma relação de amizade. Tal observação é necessária pelo fato de que, sendo o juiz responsável pela instauração do processo disciplinar contra o serventuário, que é de sua confiança, essa instauração só ocorrerá, de fato, em situações extremamente graves, considerando a tendência natural do ser humano de proteger familiares e as pessoas de seu círculo de relacionamentos. Tal característica do ser humano redunda numa das principais críticas que podem ser feitas à nomeação de pessoas para cargos públicos sem sujeição a concurso público – uma aversão clara à impessoalidade, situação que o “homem cordial” domina em absoluto, mas, em caso de severa adversidade, será obrigado a contrariar seu instinto, pois que acobertar a transgressão de outrem significaria a responsabilização de si mesmo.
Por isso, e também como forma de conferir mais prestígio à racionalidade e generalidade das regras aplicáveis às ações e relações com o Estado, nos parece salutar a necessidade de os tribunais ou mesmo os magistrados, em cada unidade judiciária, regularem a forma e as hipóteses em que a ordem cronológica de recebimento poderá ser afastada – é dizer, dar contornos mais claros e objetivos ao que se pode considerar excetuado pelo “preferencialmente” previsto em lei, isso no intuito de evitar questionamentos desgastantes e conflitos evitáveis entre as partes e os servidores do Judiciário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema ora retratado, decerto, não poderia se esgotar nas linhas acima escritas, nas quais nos concentramos em destacar aspectos gerais dos arts. 12 e 153 do nCPC, os quais não possuem correspondência na legislação anterior, e constituem uma clara tentativa do legislador de objetivar o procedimento adotado nos cartórios judiciais quanto à ordem de cumprimento de atos determinados pelo juízo, assim como propõe regular a ordem de prolação das próprias decisões do magistrado, mais especificamente sentenças e acórdãos, tudo conforme a data de recebimento ou conclusão dos processos.
Certo é que, com a edição do nCPC, procurou-se a implementação de mecanismos que tornassem o processo mais objetivo, efetivando e consolidando o princípio do devido processo legal em suas duas vertentes: no aspecto formal, ao eliminar certas regras procedimentais nitidamente burocráticas e que vez ou outra ocasionavam a nulidade do processo pela sua não observância, deu-se vazão ao processo vocacionado à realização do direito material, sem que as garantias mínimas, pressupostos e requisitos processuais se sobrepujassem à discussão do mérito nos autos; quanto à dimensão substancial do princípio, restringiu-se o espectro de discricionariedade do julgador na prolação de decisões, reforçando-se os postulados da razoabilidade e proporcionalidade por meio da exigência de uma fundamentação adequada e da manutenção, pelos tribunais, de uma jurisprudência estável, íntegra e coerente.
Também no aspecto formal, o devido processo legal foi reforçado com a criação da ordem cronológica de recebimento ou conclusão de processos para cumprir pronunciamentos judiciais ou proferir sentença ou acórdão, conferindo uma objetividade e impessoalidade antes inexistente em tais situações. É bem verdade que, na legislação da maioria dos países democráticos[13], não se vê disposição à semelhança dos arts. 12 e 153 do nCPC, de modo que esses dispositivos são, a par de tantos outros no Brasil, mais uma “jabuticaba”, é dizer, regras que não encontram semelhante nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, sendo exclusividade brasileira. Ocorre que esse peculiar tem razão na própria particularidade da formação de nosso país, tão bem esclarecido por Sérgio Buarque de Holanda através da conceituação do “homem cordial”.
Com efeito, na democracia tupiniquim, mesmo a regra escrita pode ser ressalvada ou até ignorada pela força do “cordialismo”; o que dizer, então, da regra implícita? Como bem se sabe, o legislador brasileiro é pródigo em tornar escrito regras e princípios que, de tão basilares, sequer deveriam ser mencionadas, pois o respeito a elas deveria ser tácito e rotineiro. Todavia, como se vê pela própria Constituição (na qual foram acrescentados, pelo reformador, os princípios da razoável duração do processo – art. 5º, LXXVIII – e da eficiência – art. 37, caput), no Brasil, nada que não esteja escrito merece a mínima atenção, e qualquer existência de lacuna legislativa já é motivo para sua exploração intensiva, pois a lacuna significa, no mais das vezes, a saída do “homem cordial” para escapar à regra que atende a si ou aos seus semelhantemente aos demais cidadãos, sendo que o tratamento impessoal da lei frustra as expectativas do “homem cordial” em fazer valer suas próprias leis e obter para si melhor posição perante os outros.
Assim, o estabelecimento de uma ordem cronológica, ainda que criticável sob o ponto de vista pragmático e comparativo, atende aos reclamos de um jurisdicionado que se vê preterido por inúmeras circunstâncias, num processo que, geralmente, já se arrasta por anos: seja pelo fato de seu processo tratar de questões complexas, seja pelo fato de não possuir um advogado bem relacionado no fórum ou no tribunal, outros feitos são sistematicamente movimentados com prioridade, ainda que recebidos em cartório ou conclusos ao juiz muito tempo depois.
Não há dúvidas de que os arts. 12 e 153 atendem aos reclamos de uma efetiva isonomia no tratamento dos processos em juízo, diminuindo os espaços para a atuação subjetiva, discricionária e “cordial” de partes, advogados e sujeitos imparciais do processo. Ora, a subjetividade é de todo censurável na jurisdição; a discricionariedade, por sua vez, embora admitida em diversas ocasiões, há de ser uma discricionariedade regrada, sob pena de se converter em pura arbitrariedade; e a cordialidade, pelo menos em seu aspecto intimista, retratado no presente artigo, é um elemento absolutamente dispensável e que, progressivamente, deve ser erradicado no trato da coisa pública e sobretudo dos processos judiciais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC, 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 9ª ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1984.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, 25ª ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1993.
STRECK, Lenio Luiz. A Crítica Hermenêutica do Direito e o novo Código de Processo Civil: apontamentos sobre a coerência e a integridade. Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica – Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, n. 11. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2014.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso – Constituição hermenêutica e teorias discursivas, 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.