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Trabalho infantil: notas sobre a realidade de crianças e adolescentes negligenciada pelo Estado à luz das diretrizes dos tratados e convenções internacionais

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6 CONSEQUÊNCIAS DA NEGLIGÊNCIA ESTATAL

Como já foi visto, apesar de existir um grande aparato legal que visa coibir o trabalho infantil, a falta de fiscalização do Estado acaba tornando-se mais um fator legitimante da exploração laboral de crianças e adolescentes. Diante da negligência do Estado, e até mesmo das próprias famílias, como também foi visto nos tópicos anteriores, podem ser apontadas inúmeras consequências, em um caráter primário e de forma direta, para a criança, e também, em caráter secundário, de forma indireta, para o Estado e a Sociedade.

Segundo o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador[17], quanto mais precoce é a entrada no mercado de trabalho menor é a renda média obtida ao longo da vida adulta, pois a partir do momento que se abre mão de frequentar a escola e mesmo ingressar em ensino superior, o indivíduo se condiciona a trabalhos menos remunerados, tendo em vista que as melhores remunerações exigem maior qualificação.

Além disso, menciona o referido Plano, a ocorrência de acidentes de trabalho e problemas de saúde são inerentes às crianças e adolescentes. Algumas atividades laborais realizadas por essas crianças acarretam consequências duradouras à saúde e bem estar.

O trabalho infantil ainda legitima a manutenção de altos graus de desigualdade social. Tendo em vista que o trabalho infantil está concentrado entre famílias de baixa condição financeira, o ingresso de crianças no trabalho, as fará permanecer na mesma condição de suas famílias, salvo raras exceções. Como já salientado, a dedicação das crianças ao trabalho retira o interesse do processo de ensino aprendizagem e de ingresso em ensino superior. Com isso, essas crianças tendem a permanecer nas mesmas condições, aumentando assim a desigualdade social.

No documentário Vidas no Lixo[18] é retratada a situação de milhões de pessoas que vivem no lixo, inclusive crianças. Crianças sem nem um amparo do Estado são expostas ao perigo todos os dias, procurando alimento e materiais que possam ser vendidos. Além disso, as meninas são expostas aos abusos sexuais de homens sem escrúpulos que se valem da condição de inferioridade dessas crianças para fazerem com elas o que bem entendem em troca de um prato de comida, de trocados ou doces. Dizer ser errado por parte dessas meninas submeterem-se a tal, parece incongruente, medíocre e hipócrita. Não há escolhas.

O Estado não possibilita escolher. Ou a criança se torna submissa, ou passa fome, além de inúmeras outras necessidades. Ninguém sobrevive sem alimentação. A criança está condicionada. O fato de essas crianças estarem inseridas nessa realidade, sem nenhum respaldo efetivo do Estado, ocasiona o aumento da taxa de natalidade, de forma precoce, entre as meninas que vivem nessa condição. Além disso, estão expostas à um ambiente vicioso, de drogas, prostituição e criminalização, pois não têm nenhuma perspectiva de um futuro fora desde ciclo.

Nascidos em bordéis: crianças da Luz Vermelha de Calcutá[19] é um documentário indiano que esboça uma crítica ferrenha à desatuação do Estado em promover proteção à criança e ao adolescente. O documentário foi dirigido por Zana Briski e Ross Kauffman, no ano de 2004. Retrata o cotidiano vivenciado no distrito da Luz Vermelha, Calcutá.

O documentário dedica-se às mulheres e crianças que sobrevivem neste distrito (favela ou bordel). Zana Briski é uma fotógrafa, e utiliza sua arte para a denúncia social. As mulheres que vivem nesse distrito têm por herança, após gerações a "profissão" de prostitutas. Este cenário de prostituição promove o tráfico de drogas e bebidas ilícitas, violência, sujeira e pobreza. Como consequência disso, as crianças, filhas e filhos dessas mulheres têm sua infância roubada pela realidade que se encontram.

Apesar do documentário não se passar no Brasil, a realidade social brasileira em muito se assemelha. O que se denuncia no documentário é a realidade de crianças que convivem com a rotina de suas mães em casas de prostituição. Essas crianças – na maioria meninas –, nascem e são criadas em um ambiente social desmoralizado. Essa realidade, com raríssimas exceções, condiciona a criança a fazer parte deste seio social em um futuro não muito longe.

A forte influência da mãe e do ambiente faz com que a criança se sinta pressionada a seguir o mesmo destino de suas mães, a prostituição. Logo, em torno de doze anos, a criança (menina) começa a seguir o mesmo caminho da mãe, e a partir daí começa a “ganhar a sua vida”, que apesar de acreditar ser algo normal, porque aprendeu com a mãe e não há escolhas, está diante de uma exploração, consequência da não atuação do Estado.

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Como consequência secundária da legitimação da desigualdade social, o trabalho infantil – diante da inércia estatal –, acaba por legitimar, além dos problemas sociais já referidos, como a natalidade precoce de classes menos favorecidas economicamente, legitima também a prostituição de crianças, ingresso no mundo das drogas e da criminalização – e deste último, depreende-se o aumento carcerário. Ou seja, o trabalho infantil, enquanto perdurar no seio social, sendo considerado algo comum por algumas famílias e o Estado negligenciando situações extremamente graves, só legitimará problemas socioculturais ainda maiores e mais graves.


CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Ficou demonstrado com a presente pesquisa que a realidade do trabalho infantil no Brasil é negligenciada permanentemente pelo Estado. Apesar de existirem inúmeras políticas públicas para promoção da manutenção da sadia infância das crianças e adolescentes por meio dos direitos e garantias fundamentais seria ingenuidade não reconhecer que não são políticas efetivas.

Ficam apenas no papel, no mundo do “dever ser”. Foi possível perceber que a proteção à criança e ao adolescente é uma questão social tratada também na esfera internacional. As convenções mencionadas neste trabalho nas quais o Brasil é signatário possuem valia normativa com status supralegal, ou seja, estão acima da legislação ordinária, equiparando-se às normas Magnas.

A história do trabalho infantil no Brasil está se repetindo. Assim como no início do povoamento das terras brasileiras, a atual sociedade legitima por diversos institutos o trabalho infantil, fazendo com que tal trabalho subsista de maneira escancarada tanto em famílias menos favorecidas economicamente – o que é a regra –, quanto por extremas exigências de crianças em famílias mais ricas.

Depreende-se que essa legitimação somente tende a desestruturar a organização sociocultural do Estado brasileiro, pois acarreta consequências graves como a desigualdade social, estímulo a prostituição, uso de drogas, criminalização e aumento de natalidade nas famílias pobres.

Diante de todas essas garantias e direitos, existentes na Constituição Federal, Leis Complementares, Tratados e Convenções Internacionais, há de se concluir levianamente que o Estado está cumprindo o seu papel, promovendo uma efetiva erradicação do trabalho infantil. Como dito, é uma conclusão leviana, precipitada. Não há dúvidas que o Estado positivou políticas públicas a fim de promover as garantias e os direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes. Todavia, dois questionamentos hão de ser feitos: será que essas políticas são efetivas? E eficazes?

Todos os fatores que legitimam e condicionam o trabalho de crianças e adolescentes contrapõem qualquer política pública que o Estado promova. Se a própria sociedade, sejam famílias pobres ou ricas, legitimam o trabalho infantil diante das normas que impedem tal atividade laboral, qual é a saída para mudar essa realidade?

Sem dúvida, não basta a criação de leis e de políticas asseguradoras da dignidade da criança, é necessária intensa fiscalização. Somente com efetiva fiscalização o estado promoverá a erradicação do trabalho infantil no Brasil. Quando a fiscalização for feita, as políticas públicas estatuídas serão cumpridas, tornar-se-ão eficazes, e a criança e o adolescente poderão usufruir de sua infância em plenitude. 


REFERÊNCIAS UTILIZADAS

CARVALHO, Márcia Haydée Porto de. Hermenêutica Constitucional: Métodos e princípios específicos de interpretação. Florianópolis: Livraria e editora Obra Jurídica, 1997.

FRANÇA, Rubens Limongi. Hermenêutica Jurídica. 7. ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1999.

CONAETI. Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil. Disponível em < http://www.mtps.gov.br/fiscalizacao-combate-trabalho-infantil/comissao-nacional-de-erradicacao-do-trabalho-infantil-conaetiDisponível >. Acesso em 19 abr 2016.

Documentário: Nascidos em bordéis: crianças da Luz Vermelha de Calcutá. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=nxJ2G1SWWd0>. Acesso em 24 abr 2016.

Ministério do Trabalho e Emprego. Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador. Disponível em < http://acesso.mte.gov.br/data/files/8A7C816A398D4C9A013996C7E6B01D8A/Plano%20Nacional%20de%20Preven%C3%A7%C3%A3o%20e%20Erradica%C3%A7%C3%A3o%20do%20Trabalho%20Infantil%20e%20Prote%C3%A7%C3%A3o%20ao%20Adolescente%20Trabalhador.pdf >, Acesso em 19 abr 2016.

OLIVEIRA, Isa. Trabalho Infantil: conceito e desafios. Promenino. Disponível em < http://www.promenino.org.br/trabalhoinfantil/trabalho-infantil-conceito-e-desafios>. Acesso em 18 abr 2016.

PAGANINI, Juliana. O trabalho infantil no Brasil: uma história de exploração e sofrimento. Disponível em <http://periodicos.unesc.net/amicus/article/viewFile/520/514 >. Acesso em 18 abr 2016.

Planalto. Constituição Federal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 19 abr 2016.

Planalto. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. Acesso em 19 abr 2016.

Planalto. Convenção Sobre os Direitos das Crianças. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em 20 abr 2016.

Planalto. Convenção Americana de Direitos Humanos. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em 20 abr 2016.

Planalto. Convenção 182 e a Recomendação 190 da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3597.htm>. Acesso em 20 abr 2016.

Portacurtas. Documentário produzido pelo Ministério da Cultura em parceria com M. Schmiedt Produções. A Invenção da Infância. Disponível em < http://portacurtas.org.br/busca/?termo=a%20inven%C3%A7%C3%A3o%20da%20infancia>. Acesso em 20 abr 2016.

Portacurtas. Documentário: Vidas no lixo. Produzido por Alexandre Stockler. Disponível em < http://portacurtas.org.br/filme/?name=vidas_no_lixo>. Acesso em 24 abr 2016.

PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto,1999.

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 4. ed. de acordo com a emenda constitucional 53. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.

 

Sobre os autores
Adilson Pires Ribeiro

Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Faculdade Batista de Minas Gerais (2020).

Silvio José Franco

Mestre em Ciência Jurídica pela UNIVALI (2003). Doutorando em Ciência Jurídica pela UNIVALI, em dupla titulação com a Universidade de Alicante (ES). Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, Juiz de Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Adilson Pires; FRANCO, Silvio José. Trabalho infantil: notas sobre a realidade de crianças e adolescentes negligenciada pelo Estado à luz das diretrizes dos tratados e convenções internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5609, 9 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60827. Acesso em: 22 nov. 2024.

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