Em 16 de outubro de 2017, foi publicada com vigência imediata a Lei 13.491, que modificou o Código Penal Militar e ampliou a competência da Justiça Militar.
Nesse artigo abordaremos detalhadamente a mudança e as consequências práticas e jurídicas.
1. DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR
À Justiça Militar compete julgar os crimes militares definidos em lei (artigos 124 e 125, § 4º, ambos da Constituição Federal).
Os crimes militares encontram definição no art. 9º do Código Penal Militar.
A Justiça Militar da União analisa somente a natureza do crime cometido para definir a sua competência, seja o acusado civil ou militar. Portanto, tem-se que a competência da Justiça Militar da União, por decorrer somente da matéria (crime militar), é ratione materiae.
A Justiça Militar estadual analisa a natureza do crime e a condição pessoal do acusado, na medida em que julga somente os militares (art. 125, § 4º, da CF). Portanto, a competência da Justiça Militar estadual é definida em razão da matéria e em razão da pessoa (ratione materiae e ratione personae).
Vamos abordar neste artigo as alterações promovidas pela Lei 13.491, de 13 de outubro de 2017.
Antes da alteração, o art. 9, II, do Código Penal Militar previa o seguinte:
II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:
Após a mencionada lei, passou a prever que:
II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)
Nota-se, portanto, que houve uma ampliação dos crimes de natureza militar, uma vez que qualquer crime existente no ordenamento jurídico brasileiro poderá se tornar crime militar, a depender do preenchimento de uma das condições previstas no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar.
Antes, o inciso II era claro ao dizer que somente os crimes previstos “neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum” eram crimes militares.
Isto é, somente os crimes previstos no Código Penal Militar eram crimes militares.
Com a alteração legislativa, a previsão é de que “os crimes previstos neste Código” (Código Penal Militar) e os “previstos na legislação penal” (todas as leis penais do país) também são crimes militares, quando preenchida uma das hipóteses do inciso II do Código Penal Militar.
As hipóteses previstas no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar são, em síntese, os crimes cometidos entre militares; envolvendo militar em lugar sujeito à administração militar contra civil; militar em serviço ou atuando em razão da função, hipótese de maior incidência dos crimes militares; militar em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra civil; militar durante o período de manobras ou exercício contra civil; militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar.
Como exemplo, podemos citar: a) crime de disparo de arma de fogo praticado por militar em serviço; b) crime de tortura praticado por policial militar em serviço ou em razão da função: c) crime de abuso de autoridade praticado por militar em serviço; d) assédio sexual; e) crime de possuir imagens de crianças e adolescentes em situações pornográficas, quando os militares a obtiverem em razão do serviço e tenham essas imagens não com a finalidade de comunicarem a autoridade competente.
Os crimes dolosos contra a vida de civil continuam sendo de competência do tribunal do júri, consoante art. 125, § 4º, da Constituição Federal. Isto é, os crimes de homicídio doloso, induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, infanticídio e de aborto são de competência do tribunal do júri, quando a vítima for civil.
Todos os outros crimes existentes no ordenamento jurídico brasileiro, quando cometidos em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, são de competência da Justiça Militar.
Por se tratar de norma que alterou a competência, é de natureza processual e deve ser aplicada imediatamente, na forma do art. 5º do Código de Processo Penal Militar e art. 2º do Código de Processo Penal.
Em que pese a alteração ter ocorrido no Código Penal Militar (lei material), tem conteúdo essencialmente processual, o que é denominado de norma heterotópica.
Cuida-se de conteúdo processual por tratar da competência da justiça militar, não havendo maiores repercussões quanto à norma penal no tempo, análise de retroatividade para beneficiar o réu ou outras repercussões para o acusado, a não ser o deslocamento da competência para a Justiça Militar.
Em se tratando de competência, quando há alteração da competência absoluta, como é o caso, por se tratar da matéria (crime militar), os autos devem ser remetidos imediatamente ao juízo competente (art. 43 do CPC c/c art. 3º do CPP), salvo se já houver sentença.
Assim, todos os processos no país que estejam tramitando na Justiça Comum, quando tiverem sido cometidos por militares em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º, do Código Penal Militar devem ser remetidos, imediatamente, à Justiça Militar.
A lei penal mais benéfica deve ser aplicada na Justiça Militar.
Com efeito, a Constituição Federal assegura que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu" (art. 5, XL). O art. 125, § 4º, da Constituição Federal, por sua vez, diz que compete à Justiça Militar julgar os crimes militares.
Isto é, no tocante à aplicação da lei penal no tempo, não há limitação de competência. Em relação à natureza do crime militar, a Constituição Federal é taxativa e não abre exceção. Logo, é possível aplicar a lei penal mais benéfica na Justiça Militar, mas não é possível julgar crime militar pela Justiça Comum.
Ademais, na hipótese de se entender que cada caso deve ser analisado antes de se remeter à Justiça Militar, aplicando-se a lei penal mais benéfica na Justiça Comum, haverá enorme insegurança jurídica, na medida em que poderá haver inúmeras decisões judiciais antagônicas, sobre o mesmo tema, pois a análise da lei penal mais benéfica demanda a análise de uma série de institutos penais, podendo a lei ser mais benéfica em um ponto e prejudicial em outro. Ex.: a lei penal comum é mais benéfica por ser possível transação penal; a lei penal comum é mais benéfica por ser possível suspensão condicional do processo; a lei penal comum é mais benéfica por ser possível pena restritiva de direito; a lei penal militar é mais benéfica no tocante à prescrição para os crimes de abuso de autoridade, dentre outros.
Caso o processo já esteja sentenciado, o recurso a ser interposto deverá seguir a competência já disposta. Isto é, se houver sentença proferida pela Justiça Comum, o recurso deverá ser interposto para o Tribunal de Justiça comum[1]. Essa observação se faz necessária somente para os Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, pois possuem Tribunal de Justiça Militar. Nos demais estados o recurso a ser interposto já será para o Tribunal de Justiça comum.
Na hipótese em que houver previsão do mesmo fato como crime no Código Penal Militar e na legislação penal comum, deverá ser aplicado, a princípio, o Código Penal Militar, em razão do princípio da especialidade, como a hipótese do crime de lesão corporal e de estupro.
A Súmula 90 do STJ que prevê que “Compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele.” perdeu a validade, uma vez que não haverá mais crime comum simultâneo ao crime militar, tendo em vista que quando o militar estadual cometer crime previsto na legislação penal comum, em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º, do Código Penal Militar, o que ocorre geralmente, quando o militar está em serviço ou atuando em razão da função, o crime será militar.
Portanto, a Súmula 90 do STJ perdeu a razão de ser e a alteração legislativa põe fim à duplicidade de processos que os militares enfrentam na justiça militar e justiça comum, pelo mesmo fato. Os fatos devem ser julgados, exclusivamente, pela justiça militar.
A Súmula 172 do STJ que dispõe que “Compete à Justiça Comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço.”, igualmente, perdeu a validade, uma vez que os crimes de abuso de autoridade passam a ser julgados pela Justiça Militar.
A Súmula 75 do STJ que diz que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o policial militar por crime de promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal.” perdeu a validade, uma vez que o militar ao promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal comum estará em serviço ou atuando em razão da função, o que, obrigatoriamente, remete a competência para a Justiça Militar.
A Súmula 06 do STJ que assevera que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura de Polícia Militar, salvo se autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade.”, deve ser lida com cautela, na medida em que mesmo que o crime cometido seja previsto no Código de Trânsito Brasileiro, se cometido por militar em serviço, deverá ser julgado pela Justiça Militar.
Por fim, a alteração legislativa não abrangeu as contravenções penais, uma vez que o art. 9º, II, do Código Penal Militar considera militar somente os crimes previstos no Código Penal Militar e os previstos na legislação penal, quando praticados em uma das hipóteses previstas no inciso II.
Nota-se que não houve menção às contravenções penais, mas somente aos “crimes”. Portanto, não é possível falar em contravenção penal militar.
2. DA APLICAÇÃO DOS INSTITUTOS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS PREVISTOS NA LEGISLAÇÃO PENAL COMUM
Diante das alterações promovidas, conforme exposto, tem-se que a Justiça Militar poderá processar e julgar os crimes previstos na legislação penal comum, bem como aplicar os institutos típicos do direito penal e processual penal comum com os requisitos que lhe são próprios.
Dessa forma, a Justiça Militar deverá aplicar as penas restritivas de direito previstas no art. 43 do Código Penal; a suspensão condicional da pena prevista no art. 77 do Código Penal; o livramento condicional previsto no art. 83 do Código Penal, dentre outros institutos.
A aplicação da lei penal comum deve ocorrer na íntegra quando o crime a ser julgado tiver previsão fora do Código Penal Militar. Do contrário haverá verdadeira lex tertia. Isto é, a mistura e combinação de leis pelo juiz, como se estivesse criando uma terceira lei, inexistente, o que já foi rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal.[2]
É possível haver o cometimento de crime hediondo militar, consoante a Lei 8.072/90, como na hipótese do crime de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável, cometido pelo militar em razão da função.
Importante destacar que para que o crime militar seja considerado hediondo, é necessário que esteja previsto no rol do art. 1º da Lei 8.072/90.
Para que o militar cometa um dos crimes previstos no art. 1º da Lei 8.072/90 deve incidir uma das hipóteses previstas no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, sendo mais comum a hipótese do crime ser cometido em serviço ou em razão da função.
Destaca-se que os únicos fatos típicos previstos na Lei de Crimes Hediondos e que não encontram igual previsão no Código Penal Militar é o favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º do Código Penal) e a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (art. 16 da Lei 10.826/03). O segundo com o advento da Lei 13.497, de 26 de outubro de 2017, que alterou o parágrafo único do art. 1º da Lei 8.072/90.
Logo, somente esses crimes podem ser considerados crimes militares hediondos, na medida em que os demais crimes, se cometidos de forma que venham a se configurar crime militar, serão tipificados no Código Penal Militar, face ao princípio da especialidade, o que afastará a natureza hedionda.
Para facilitar o entendimento, necessário se faz ilustrar com exemplos.
Ex. 1: militar em serviço comete o crime de latrocínio. Este crime possui previsão no Código Penal Militar (art. 242, § 3º, do CPM) e no Código Penal Comum (art. 157, § 3º, in fine). Logo, por possuir previsão em ambos os Códigos, face ao principio da especialidade, deverá responder pelo crime previsto no Código Penal Militar. Como os crimes previstos no CPM não se encontram no rol do art. 1º da Lei 8.072/90, não será considerado hediondo.
Ex. 2: militar em serviço tem conjunção carnal com menor de 14 (catorze) anos. Este crime possui previsão no Código Penal Militar (art. 232 c/c art. 236, I) e no Código Penal Comum (art. 217-A). Logo, por possuir previsão em ambos os Códigos, face ao principio da especialidade, deverá responder pelo crime previsto no Código Penal Militar. Como os crimes previstos no CPM não se encontram no rol do art. 1º da Lei 8.072/90, não será considerado hediondo.
Ex. 3: militar em serviço comete o crime de homicídio, por motivo fútil, contra civil. Trata-se de um caso peculiar, na medida em que os crimes dolosos contra a vida de civil são julgados pelo tribunal do júri (art. 125, § 4º, da Constituição Federal). Por ser julgado na justiça comum (tribuna do júri), o crime pelo qual o militar responderá será o previsto no art. 121, § 2º, II, do Código Penal, mesmo havendo igual previsão no Código Penal Militar (art. 205, § 2º, I). Portanto, trata-se de crime comum, de natureza hedionda, praticado por militar em serviço. Caso o militar cometesse o mesmo crime, em serviço, contra outro militar, o crime seria o previsto no art. 205, § 2º, I, do Código Penal Militar, que por não estar no rol do art. 1º da Lei 8.072/90, não seria hediondo.
Ex. 4: militar em serviço comete o crime de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º do Código Penal). Este crime não possui previsão no Código Penal Militar. Logo, por não possuir previsão no CPM, o militar responderá pelo crime previsto no art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º do CP. Este crime, diante da Lei 13.491/17, passa a ser militar, por ter sido cometido em serviço (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º do Código Penal c/c art. 9º, II, “c”, do Código Penal Militar).
Ex. 5: militar em serviço porta ilegalmente arma de fogo de uso restrito (art. 16 da Lei 10.826/03). Este crime não possui previsão no Código Penal Militar. Logo, por não possui previsão no CPM, o militar responderá pelo crime previsto no art. 16 da Lei 10.826/03. Este crime, diante da Lei 13.491/17, passa a ser militar, por ter sido cometido em serviço (art. 16 da Lei 10.826/03 c/c art. 9º, II, “c”, do Código Penal Militar).
Caso haja condenação por crime hediondo, as consequências da hediondez do crime deverão ser aplicadas, como a impossibilidade de anistia, graça e indulto; a inafiançabilidade e a progressão de regime após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.
Com a nova lei, haverá uma melhor análise da aplicação da Lei de Execução Penal, uma vez que esta ocorrerá somente na Justiça Militar, sendo possível que o juiz de direito do juízo militar (juiz auditor) aplique os institutos “com base na unificação das penas impostas”, conforme leciona Fernando Galvão[3].
Cabe observar que a alteração legislativa não promove apenas uma ampliação da competência criminal da Justiça Militar estadual. Com a integração da legislação penal extravagante ao contexto militar, foi possível corrigir problemas graves decorrentes da desatualização do Código Penal Militar. Somente agora, por exemplo, será possível caracterizar um crime militar hediondo. Também importa notar que a modificação contribuiu para a harmonia do sistema normativo que trata da repressão aos crimes cometidos por militares. Nesse sentido, a análise do conjunto probatório nos processos criminais será feita de maneira mais adequada sem o fracionamento anteriormente imposto nos muitos casos em que se verificava concurso entre crimes comuns e militares. A execução da penas impostas por tais crimes também será melhor examinada no contexto do juízo único, que poderá conceder ao condenado os benefícios previstos na Lei de execuções com base na unificação das penas impostas. (destaquei)