1. Introdução
1.1. O espaço laboral e a aplicação de direitos fundamentais.
Os antecedentes históricos e filosóficos do Direito do Trabalho, cujo surgimento visou à correção de desigualdade entre as partes da relação de emprego e, por tal razão, apresenta como princípio fundante o da proteção ao hipossuficiente, justificam a primazia da figura do empregado na sua dogmática.
Por isso, os estudos relacionados com os direitos fundamentais no âmbito da relação de emprego normalmente têm como foco central a pessoa do empregado. Tal circunstância poderia passar a falsa impressão de que no âmbito do contrato de trabalho somente devem merecer a atenção dos estudiosos os direitos fundamentais titularizados pelos empregados.
De fato, a pessoa do empregado, ainda na seara dos direitos fundamentais, deve ter uma atenção maior, pois sua condição de subordinação mostra-se mais propícia para a restrição no exercício desses direitos.
José João Abrantes é preciso ao afirmar:
a alienação da disponibilidade da força do trabalho e a dependência em que o trabalhador se coloca, ao prometer uma atividade laboral, são por si potencialmente lesivas daqueles direitos[1].
Desta forma, não pode desconhecer que o empregado não é a exclusiva pessoa titular de direitos fundamentais que aparece no espaço laboral e não se pode diminuir o significado que esses mesmos direitos têm para o empregador e àqueles terceiros que fazem parte da empresa.
No tocante ao empregado, o aspecto a ser sempre considerado quando se cogita sobre a afirmação de seus direitos fundamentais no ambiente laborativo é que ele aliena a sua força de trabalho e não a sua pessoa[2].
O funcionário, pelo fato de acatar o poder da direção da empresa com a qual tem vínculo empregatício, não é desamparado pela sua qualidade de cidadão protegido pelas normas dos direitos fundamentais. O espaço laboral, destarte, não poderá ser avaliado como um espaço no qual o trabalhador, para adentrar, tenha que se desnudar dos seus direitos fundamentais.
De forma contrária, afirma Queiroz[3]: (2012:727)
... o trabalhador deve ser considerado sempre em primeiro lugar um ser humano detentor de direitos fundamentais.
Por isso é que hodiernamente tem sido utilizada, notadamente nos países europeus, a expressão “cidadania na empresa” para referir-se ao exercício na empresa, pelo trabalhador, de direitos fundamentais não especificamente trabalhistas[4].
A ideia que se procura enfatizar é a de que o simples fato de ajustar um contrato de trabalho não poderá jamais resultar na privação de direitos reconhecidos ao trabalhador enquanto cidadão[5].
No entanto, a consolidação da forma de cidadania do assalariado na empresa que presta serviço não se refere no afastamento da força de trabalho que não resulte na falta de atividade pelo empregado de direitos fundamentais. Ao contrário, como afirma Abrantes,
... é o próprio objeto do contrato, a disponibilidade da força de trabalho, com a integração do trabalhador numa organização produtiva alheia e a inerente subordinação jurídica, que torna inevitável todo um conjunto de importantes limitações à liberdade pessoal desse trabalhador[6].
Porém, esses percalços são necessários e constituídos na autodeterminação da pretensão do trabalhador, e apenas são legítimas quando conservam na íntegra sua dignidade como ser humano, até porque mesmo que o obreiro faça tanta questão, não poderá se desapossar. A qualidade moral que infunde respeito do laborioso, que segue dentro e fora da empresa que presta serviços, é de forma inalienável.
Vale lembrar que, deixar de exercer um direito fundamental que assiste ao trabalhador no recinto de labor não quer dizer que o mesmo está renunciando à sua condição de ser titular de uma qualidade jurídica e nos casos de obrigação contratual; o obreiro ceder e deixar de exercer seu direito fundamental deve ser algo aceito e respeitado à sua dignidade como pessoa humana.
Todavia, não se deve apenas atender à dignidade pessoal do trabalhador, no entanto, também, a dignidade do um grupo como um todo, por exemplo, o étnico, o profissional, o religioso ou de qualquer um outro que tenha sido identificado. Desta forma, vai haver situações que, enquanto as ações do empregado sejam espontâneas e evidentes, nem por isso vai lhe dar o direito de afastar-se do papel de exercer o seu direito fundamental.
No que tange ao empregador, ainda que aparentemente, por sua superioridade socioeconômica, esteja no relacionamento com os empregados menos suscetível a sofrer violação na sua dignidade, é importante destacar que o princípio da proteção não pode ser esgrimido como um pretexto para presumir como atentatória à dignidade do trabalhador toda e qualquer conduta pela qual o credor dos serviços manifeste o exercício de alguma prerrogativa que de algum modo afete um direito fundamental do empregado.
O empregador, atuando no ambiente de trabalho, não é apenas detentor do direito fundamental de propriedade e da livre iniciativa. Também titula outros direitos fundamentais, como os de personalidade e o de liberdade religiosa, a priori em igualdade de condições com o empregado[7]. Demais disso, como advertem Dimoulis e Martins:
o critério decisivo para a aplicação da teoria do efeito horizontal não é uma desigualdade geral e de cunho material (ricos vs. pobres, empregados vs. empregadores, empresas vs. consumidores etc), mas uma ‘desigualdade de posições no interior da relação jurídica’ que deve ser avaliada e comprovada concretamente em cada caso[8].
Nota-se que é muito comum uma violação cometida pelo funcionário da liberdade religiosa do consumidor (o cliente da empresa). O mesmo pode vir a ser vítima de uma discriminação religiosa, como, por exemplo, quando o empregado não aceita atender um determinado cliente ou o recepciona de forma atípica, pois o consumidor tem determinada identidade religiosa que para o trabalhador não seja a mais correta e ele não aceite ou o desagrade.
Entretanto, pode acontecer o inverso, no exercício da função laborativa do trabalhador, ele pode ser discriminado por intolerância religiosa por um comprador, o qual não aceite ser atendido pelo funcionário ou expressamente ofenda a moral do mesmo no seu ambiente de labor, somente por causa da vertente religiosa que o trabalhador acredita e segue.
Observa-se que, no primeiro momento, a forma de abordagem do empregado para com o cliente contribuí para a empresa aplicar, com o poder que ela tem, uma sanção disciplinar no trabalhador, porque os danos que foram causados pelo obreiro poderão responsabilizar objetivamente o empregador, com fundamento nos artigos 932, III, e 933 do Código Civil Brasileiro.
Na situação seguinte, é cabível ao empregador, o poder diretivo da sua empresa, adotando medidas protetivas da comodidade do seu obreiro, para que se tenha um ambiente de trabalho saudável e digno para realização das tarefas dia após dia, sem nenhum constrangimento moral.
1.2.Função social da empresa à luz dos direitos fundamentais
Em momento anterior nos referimos à função social como um perímetro do direito fundamental de propriedade.
Não é dado à empresa ignorar sua função social, que muitas vezes excede a obtenção de lucro, pois deve atuar não apenas para atender aos interesses dos sócios, mas de toda à coletividade e, principalmente, dos empregados.
Essa “função social da empresa”, positivada infraconstitucionalmente no art. 116, parágrafo único, art. 154, caput, da Lei nº. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, é explicitada por Carvalhosa e Latorraca nos seguintes termos:
Tem a uma óbvia função social, nela sendo interessados os empregados, os fornecedores, a comunidade em que atua, o próprio Estado, que dela retira contribuições fiscais e parafiscais. A função social da empresa deve ser levada em conta pelos administradores, ao procurar a consecução dos fins da companhia. Aqui se repete o entendimento de que cabe ao administrador perseguir os fins privados da companhia, desde que atendia a função social da empresa[9].
Em um primeiro momento a função social da empresa se compreendia como circunscrita ao ganho econômico que os trabalhadores, o poder público ou a comunidade obtinham com a atividade empresarial. Esta visão hoje está superada: contempla as preocupações relacionadas com as condições de trabalho dos empregados, o interesse dos consumidores e dos concorrentes e a sustentabilidade ambiental[10].
Considerando-se que a atuação do trabalhador não apenas é o seu meio de sobrevivência, mas também o meio pelo qual busca a realização pessoal e a afirmação de sua dignidade[11], é possível sustentar que se compreende na função social da empresa a garantia e promoção desses valores humanos ou, por outras palavras, que a preservação e promoção dos direitos fundamentais dos trabalhadores constitui uma pauta que compõe a função social da empresa.
Que o bem-estar dos trabalhadores se inclui na função social da prosperidade não é novidade no texto constitucional, pois referida no art. 186, in verbis:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
O dispositivo acima, embora se reporte especificamente à propriedade rural, apresenta requisitos que servem para a aferição do cumprimento da função social de qualquer propriedade, incluindo-se, é claro, a da empresa.
A referência específica à propriedade rural tem suas razões na resistência em se mudar a concepção clássica da propriedade como direito absoluto.
A norma programática do art. 3º da Constituição Federal determina a particulares e aos poderes públicos a busca por uma sociedade “justa e solidária” para “promover o bem de todos”. Ela institui um projeto de comunidade política que envolve o Estado e a sociedade. Assim, todas as medidas que no âmbito empresarial visam a assegurar o bem-estar do trabalhador merecem ser consideradas parte da sua função social, como uma exigência do princípio da dignidade da pessoa humana.
2. A Tutela dos Direitos da Personalidade na Relação Laboral
Na atuação do desempenho dos direitos fundamentais na relação de emprego, vamos nos voltar aos direitos de personalidade, que Carlos Alberto Bittar define que são determinados e “reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos no homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos”[12].
Se em um primeiro momento eram abordados apenas sob a ótica civilista, os direitos da personalidade constituem hoje, sem dúvida, assunto pertinente à dogmática dos direitos fundamentais, seja em razão da constitucionalização do direito privado, seja do esfacelamento da dicotomia direito público/direito privado (fenômenos que não se circunscrevem apenas ao sistema jurídico brasileiro), mas porque algumas de suas manifestações mais incisivas foram incluídas no catálogo de direitos fundamentais constante do art. 5º da Constituição da República de 1988.
O ordenamento jurídico brasileiro adota a realidade de algumas prerrogativas que, por fazer parte da pessoa humana pela sua natureza, a doutrina e até mesmo o legislador acharam melhor os denominar de direitos da personalidade.
Não obstante, essas prerrogativas não têm por finalidade a sua personalidade, mas incidem, como bem assevera Orlando Gomes, “manifestações especiais de suas projeções, consideradas dignas de tutela jurídica, principalmente no sentido de que devem ser resguardadas de qualquer ofensa”[13].
Na seiva doutrinária de Limongi França, os direitos de personalidade são classificados em três grandes grupos: a) direto à integridade física (direito à vida, à higidez corpórea, às partes do corpo, ao cadáver etc.); b) direito à integridade intelectual (direito à liberdade de pensamento, autoria artística e cientifica e invenção); c) direito à integridade moral (direito à imagem, ao segredo, à boa fama, à honra, à intimidade, à privacidade, à liberdade religiosa etc.)[14].
Esses direitos têm similitude ligação, no ponto em que trata as características indispensáveis da personalidade, a categoria extrapatrimonial. Assim lograram Gagliano e Pamplona Filho,
A ideia a nortear a disciplina dos direitos da personalidade é a de uma esfera extrapatrimonial do indivíduo, em que o sujeito tem reconhecidamente tutelada pela ordem jurídica uma série indeterminada de valores não redutíveis pecuniariamente, como a vida, a integridade física, a intimidade, a honra, entre outros[15].
Os doutrinadores – e eventualmente o legislador – costumam dizer, além do mais, que os direitos da personalidade são inalienáveis, intransmissíveis, imprescritíveis e irrenunciáveis. No art. 11 do Código Civil, como, por exemplo, prevê, “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.
A importância da afirmação dos direitos da personalidade do ser humano trabalhador como garantia da intangibilidade de sua dignidade não escapa ao olhar perspicaz de Queiroz[16], que afirma:
A dificuldade de construção de uma práxis efetivadora de direitos da personalidade do ser humano trabalhador revela, em seus bastidores, a dificuldade de identificação do ser trabalhador como ser humano. A desconsideração desta identidade torna-se funcional ao sistema na medida em que ao ser humano restou garantido o respeito à dignidade, prevista como fundamento da República Federativa brasileira, pelo art. 1º, inciso III da Constituição Federal. Se ao trabalhador não se reconhece integralmente a condição de ser humano, sua dignidade deixa de ser intocável e garantida sob qualquer condição.
Em nossa CLT faltam dispositivos que abordem os direitos da personalidade na perspectiva em que atuam no contrato individual de emprego. Na lição do autor Santos Júnior:
Não que essa omissão signifique, por si só, irremediável prejuízo ao seu reconhecimento ou mesmo ao seu exercício, pois, desde que assegurados no texto constitucional brasileiro com o status de direitos fundamentais, os direitos da personalidade são diretamente aplicáveis ao contrato de trabalho. Com efeito, ninguém em sã consciência nega que os sujeitos do contrato de emprego preservam os seus direitos de personalidade no ambiente de trabalho, até mesmo porque se tratam de direitos irrenunciáveis. Mas sua identificação pela CLT certamente representaria um ganho em efetividade, na medida em que a legislação laboral, mais sensível que a legislação comum às especificidades do contrato de emprego, marcado essencialmente por uma desigualdade socioeconômicas, poderia fixar parâmetros que tornassem mais fácil a missão do intérprete do direito de formular respostas constitucionais mais ajustadas às contingências jurídico-trabalhistas[17].
Há dispositivos da CLT que abarcam de forma subentendida alguns moldes dos direitos da personalidade do obreiro, até mesmo o do empregador.
Desta forma, no que tange a prática de ato lesivo quanto à honra, boa fama, abordados nos artigos 482, alínea “k”, e 483, alínea “e”, da Consolidação das Leis do Trabalho, onde indicam, as justas causas para a rescisão do contrato individual de trabalho, de iniciativa do empregador, como também, de qualquer pessoa, se essa praticar no ambiente laboral, e pode ser pleiteado devida indenização.
Entretanto, outras abordagens dos direitos da personalidade não foram mencionadas na CLT, ficando assim sem referências. Exemplificando, o direito à intimidade.
A autora Alice Monteiro de Bairros, em sua obra “Proteção à intimidade do Empregado”, assinala:
... a mesma Constituição assegura o direito de propriedade; logo, no ambiente de trabalho, o direito à intimidade sofre limitações, as quais não poderão, entretanto, ferir a dignidade da pessoa humana.
Não é o fato de um empregado encontrar-se subordinado ao empregador ou deter este último o poder diretivo que irá justificar a ineficácia da tutela à intimidade no local de trabalho, do contrário, haveria degeneração da subordinação jurídica em um estado de rejeição do empregado. O contrato de trabalho não poderá constituir um título legitimador de recortes no exercício dos direitos fundamentais assegurados ao empregado como cidadão; essa condição não deverá ser afetada quando o empregado se insere no organismo empresarial, admitindo-se, apenas, sejam modulados os direitos fundamentais na medida imprescindível do correto desenvolvimento da atividade produtiva”[18].
Pela falta no ordenamento jurídico de artigos da lei trabalhista que observem de modo peculiar os direitos de personalidade na seara da relação laboral, é de grande valia a utilização neste caso do Código Civil, pois como registra o artigo 8º, no seu parágrafo único, da CLT, é determinação subsidiária do direito do trabalho.
Portanto, demandam atenção as particularidades do direito do trabalho, para que de certa forma proteja o empregado da subordinação jurídica do empregador e os seus meandros do avanço tecnológico que circundam o ambiente de labor, para que não se torne vulneráveis os seus direitos de personalidade.
Ademais, não podemos deixar de mencionar que os titulares de direitos da personalidade são os empregados e os empregadores, especificamente se for pessoa física, pois tem sido muito considerado pessoas jurídicas compatíveis com essa titularidade também, como, por exemplo, o direito a imagem etc. Como aborda o código civil no seu artigo 52, “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”.
Não é dispensável mencionar, diante desse trabalho de monografia, que a falta de respeito para com a liberdade religiosa manifesta uma agressão direta ao direito de personalidade, acentuando ainda, de que forma foi abordada, podendo afetar simultaneamente diversas ramificações de personalidade, como a moralidade, a honra, dentre outras.
Para finalizar, esclarece Steinmetz[19], no confronto entre os direitos de personalidade do trabalhador, que se qualificam como direitos fundamentais de conteúdo pessoal, e o poder diretivo do empregador, decorrente da autonomia privada, há que ser reconhecida uma precedência prima facie dos primeiros, impondo ao empregador o ônus argumentativo em favor da prevalência do seu poder diretivo. Tal proposição, é fácil perceber, harmoniza-se plenamente com o princípio da proteção ao hipossuficiente.