1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho ocupar-se-á de conceituar, apresentar um breve histórico, os principais requisitos do crime bagatelar e como ele tem sido aplicado nas Cortes Brasileiras.
O Princípio da Insignificância relaciona-se com outros que também limitam a tipicidade no tocante ao Direito Penal, ao tornar atípico o fato antes que a punição recaia, por comprometer a materialidade do delito. Porém, o princípio não está expresso no Direito Pátrio, o que causa dissensões entre os aplicadores e intérpretes do Direito.
O presente artigo terá por tema: “O Princípio da Insignificância no Direito Penal Brasileiro”, assunto este pertencente ao campo de conhecimento: Direito Penal.
O problema que se vislumbra é a forma como o ordenamento jurídico brasileiro abarca o Princípio da Insignificância e se ele realmente é um corolário da justiça e liberdade.
Ao se iniciar o estudo, teve-se como hipótese a utilização incipiente do Princípio da Insignificância no Ordenamento Jurídico Pátrio, tendo em vista que muitos doutrinadores não o recepcionam por considerarem uma afronta ao Princípio da Legalidade.
O objetivo geral a que se propôs é examinar a aplicação do princípio da Insignificância no ordenamento pátrio e sua relevância no direito penal.
Como objetivos específicos têm-se: estudar o Princípio da Insignificância, seu histórico e conceitos necessários para sua compreensão, verificar o uso dos conceitos de Insignificância e Bagatela no Direito Brasileiro e verificar na jurisprudência brasileira como as Cortes têm tratado do assunto em epígrafe.
Como acadêmicos e apreciadores do Direito Penal, a questão da proporcionalidade na aplicação da pena sempre nos intrigou e por isso tornou-se a indicada como escolhida para encetarmos este artigo.
Justifica-se o estudo em questão porque com ele, contribuir-se-á para a compreensão se o Princípio da Insignificância encontra-se instaurado no ordenamento penal brasileiro e se esta contribuição vem sendo eficaz. A partir daí, poderá ser formulada uma maior inserção da Justiça social, visando a auxiliar o Direito Brasileiro, caso ele se mostre eficaz para tanto; além de beneficiar a sociedade por tornar as penas mais justas e aplicáveis.
Utilizou-se para a consecução do presente trabalho o método dedutivo com a análise empírica de casos concretos jurisprudenciais.
Por isso, o presente trabalho se dedica ao estudo do Princípio da Insignificação e suas reverberações no Direito Penal Pátrio, consideradas essenciais para o Direito Penal e para a sua execução.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA
No Direito Romano, já havia rudimentos do Princípio da Insignificância, posto que o pretor não se ocupava dos litígios de bagatela, em conformidade com o brocardo: mínima non curat pretor[1].
Apesar de ser um posicionamento bastante pacífico - o de que o surgimento do Princípio da insignificância se deu na Roma Antiga - Maurício Antônio Ribeiro Lopes nega que o brocardo mínima non curat praetor é o predecessor básico do moderno Princípio da Insignificância, alegando que o brocardo supramencionado aplicava-se tão somente ao Direito Civil[2].
Ainda que não expressamente, são encontradas referências implícitas na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 como a presente no art. 5º: "A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene"[3]. Tal artigo evidencia que somente as ações realmente graves devem ser proibidas pelo Estado, o que denota o sentido fragmentário da Declaração em epígrafe[4].
A origem e evolução história do Princípio da Insignificância sempre estiveram ligadas ao Principio da Legalidade, garantindo a liberdade individual no Estado Democrático de Direito[5].
Com o Iluminismo e a consequente propagação do individualismo político e desenvolvimento do princípio da legalidade, houve um estudo mais sistematizado do Princípio da Insignificância, originando-se na preconização da limitação do poder do Estado, onde somente haveria ilicitude naquilo que a lei proibia, devendo os juízes serem submissos à lei penal[6].
Após as I e II Grandes Guerras, houve um aumento considerável de furtos de objetos e valores irrelevantes, em decorrência da crescente miséria, desemprego e falta de gêneros alimentícios, tais ilícitos foram chamados de Criminalidade de Bagatela (Bagatelledelikte), em virtude dos valores baixos envolvidos[7].
Claus Roxin, em 1964, apresentou considerações sobre o brocardo latino: mínima non curat praetor, o que tornou relevante o Princípio da Insignificância para a atualidade, ao formular com base de validez geral para se determinar o que é injusto penal, através da introdução do princípio da insignificância como regra auxiliar de interpretação, excluindo, da maioria dos tipos, danos de somenos importância[8].
O Princípio da Insignificância não tem um caráter meramente econômico, simplesmente de cunho patrimonial, porém, trata-se de um princípio de direito penal que objetiva direcionar e determinar o conteúdo de todas as normas penais, devendo ser projetado em todas as condutas definidas como crime, garantindo que somente às ações com um caráter substantivamente penal recaia a incidência das normas penais[9].
Em terras pátrias, a primeira vez que foi mencionado o princípio em epígrafe foi em um julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus nº 66.869-1/PR em 06.12.1988, em um caso de lesão corporal relativo a acidente de trânsito, onde se verificou que a lesão era irrelevante e, por isso, entendeu-se que não havia sido configurado o crime, impedindo-se a instauração da ação penal[10].
3. CONCEITO
A criminalidade de bagatela é caracterizada por possuir escassa reprovabilidade, ofensa a bem jurídico irrelevante, habitualidade, maior incidência em crimes contra o patrimônio, em crimes de trânsito e por conveniência político-criminal[11].
O sistema penitenciário moderno opta por um tratamento ressocializador e, destarte, o sofrimento e castigo não fazem parte desta nova ótica que visa à recuperação do delinquente. O encarceramento do indivíduo não produz efeitos duradouros, posto que muitos dos indivíduos que cometem o crime, principalmente contra a propriedade, o fazem por questões de crise na economia, desemprego e reprodução da violência através da mídia, que acabam influenciando mais delitos[12].
Em alguns países centrais, a tendência é a despenalização e a descriminalização, optando-se por abandonar as posições que enfatizam a repressão existente no sistema e tornando patente a possibilidade de se diminuir a pena de um delito sem descriminalizá-lo, sem eximir o fato de seu caráter de ilícito penal[13].
O grau de lesão do bem jurídico protegido é o principal ponto de preocupação no que se refere ao Princípio da Insignificância, posto que não se deve ocupar o Direito Penal com assuntos de somenos importância que em nada prejudicam o bem jurídico tutelado. Portanto, deve existir a análise específica sobre até que ponto a lesão ou perigo de lesão configura o injusto penal dentro da tipicidade[14]. Segundo Luís Regis Prado: “o princípio da insignificância é o instrumento para a exclusão da imputação objetiva de resultados”[15].
Luiz Flávio Gomes esclarece sobre a conceituação de infração bagatelar:
Conceito de infração bagatelar: infração bagatelar ou delito de bagatela ou crime insignificante expressa o fato de ninharia, de pouca relevância (ou seja: insignificante). Em outras palavras, é uma conduta ou um ataque ao bem jurídico tão irrelevante que não requer a (ou não necessita da) intervenção penal. Resulta desproporcional a intervenção penal nesse caso. O fato insignificante, destarte, deve ficar reservado para outras áreas do Direito (civil, administrativo, trabalhista etc.). Não se justifica a incidência do Direito Penal (com todas as suas pesadas armas sancionatórias) sobre o fato verdadeiramente insignificante[16].
Os críticos do Princípio da Insignificância sustentam que ele padece de uma imprecisão terminológica e indeterminação conceitual, porém, o princípio da insignificância se baseia em fundamentos do Direito Penal, através de seu caráter subsidiário e fragmentário[17].
A tipicidade penal somente vai ocorrer e trazer efeitos para o mundo jurídico quando houver uma ofensa que traga uma gravidade considerável aos bens jurídicos tutelados, nem toda ofensa aos bens ou interesses tutelados pelo Estado são suficientes para caracterizar o injusto penal. Portanto, o Princípio da Insignificância (ou Princípio da Bagatela) exige uma proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a necessidade da intervenção estatal, portanto, condutas que equivalem a um determinado tipo penal, porém, formalmente não possuem relevância material requererem o afastamento da tipicidade penal, posto que o bem jurídico não foi relevantemente lesado[18]
A Jurisprudência traça a conceituação do princípio em epígrafe:
O princípio da insignificância pode ser conceituado como aquele que permite desconsiderar-se a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade, constituem ações de bagatela, afastadas do campo de reprovabilidade, a ponto de não merecerem maior significado aos termos da norma penal, emergindo, pois a completa falta de juízo de reprovação penal (TACrim-SP, Apelação n 1.044.8895, Rel. Breno Guimarães, 21-09-97)[19].
Não é qualquer mau trato que caracteriza lesão à integridade corporal, entretanto somente aquela lesão relevante; ou seja, somente a lesão grave. Deve ser considerada a força empregada por um agente que tenha um obstáculo de certa importância e que a ameaça seja sensível o bastante para ultrapassar o âmbito da criminalidade[20].
À luz da função geral – que dá relevância à ordem jurídica – que pode ser confirmada a insignificância de uma ação que se amolda ao tipo penal, não devendo se considerar apenas a reflexão legalista da norma.[21]
O douto Maurício Antonio Ribeiro Lopes esclarece:
A patrimonialidade é um dado relativo ao pólo inicial de desenvolvimento do princípio da insignificância, jamais um momento de chegada. Tem-se pretendido revestir o princípio com um caráter exclusivamente econômico, como que se confundindo os conceitos de propriedade e de patrimônio, tendência contra a qual se insurge a mais moderna doutrina. O Bagatelledelikte não é uma regra apêndice das normas de cunho patrimonial, mas um princípio de Direito Penal e como tal sujeito a influir, direcionar e determinar o conteúdo de todas as normas penais[22].
O legislador, ao criar o Estatuto Penal, ocupou-se em considerar a tipicidade apenas em prejuízos relevantes que o comportamento tido como criminoso pudesse causar à vítima e à sociedade, porém, não esclareceu que os casos leves não deveriam ser amoldados como fatos típicos. O Princípio da Insignificância tem por objetivo adequar a realidade ao princípio nullum crimen sine lege ao demonstrar a natureza subsidiária e fragmentária do Direito Penal[23].
Entretanto, aos intérpretes e aplicadores do Direito não cabe a seleção dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Estado e muito menos os critérios que são utilizados ao selecionar tais bens jurídicos, posto que tal função cabe ao Legislador. Uma infração ser de menor potencial ofensivo não basta para caracterizá-la como insignificante, pois em alguns casos, como os delitos de lesão corporal leve, ameaça e injúria, apesar de possuírem menor potencial ofensivo, foram valorados pelo Legislador que determinaram as consequências jurídico-penais para os infratores, assim como as sanções correspondentes. Apesar de serem de somenos importância ao se compararem com outras infrações, ainda possuem sua relevância social e penal, devendo ser julgadas não apenas pela consideração do bem juridicamente atingido, mas pela extensão da lesão produzida[24].
O bem jurídico de menor relevância é o que não possui importância sufiente para merecer em grau mínimo a intervenção concreta do Estado no tocante à esfera penal. Não se pode confundi-las com as infrações de menor potencial ofensivos previstas pela Carta Magna, posto que não há relação direta entre a ofensividade e a irrelevância do bem jurídico. A potencialidade ofensiva relaciona-se à faculdade de ação lesiva a bem jurídico que não possua juízo de valor, relevante ou não[25].
Quando a ordem jurídica se ocupa de punir crimes de afetação mínima observa-se que o poder punitivo torna-se irracional, desnecessário, conflitando com o princípio da mínima intervenção[26].
Conforme o entendimento de Carlos Vico Mañas:
O princípio da insignificância, portanto, pode ser definido como instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal[27].
O Princípio da Insignificância interpreta de forma restritiva o tipo penal, classificando-o de forma qualitativa e quantitativa em conformidade com o grau de lesividade da conduta, excluindo da incidência penal apenas os fatos que, apesar de atingirem bens tutelados, são insignificantes[28]. Trata-se de um ato tão insignificante que não requer a intervenção penal[29].
O Princípio da Insignificância atua no sentido de impedir que se processem condutas socialmente irrelevantes, visando que a Justiça não fique tão abarrotada de processo e permitindo que fatos mínimos, irrelevantes, não estigmatizem seus autores. Tal princípio revaloriza o Direito Constitucional, contribuindo para que apenas fatos possuidores de alto conteúdo criminal sejam apenados, reduzindo-se, por conseguinte, os níveis de impunidade[30].
Trata-se de uma construção dogmática que objetiva solucionar questões de injustiça que provém da falta de relação entre a conduta reprovada e a pena cabível, de acordo com conclusões de ordem político criminal[31].
Conforme o entendimento de Silva:
O Princípio da Insignificância faz as vezes de mecanismo de controle quantitativo-qualitativo das lesões aos bens jurídicos protegidos penalmente, objetivando, assim, estabelecer um padrão denominado "mínimo ético" do Direito Penal. Atua, portanto, como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal para evitar injustiças na aplicação do direito repressivo, uma vez que o Direito Penal não se deve ocupar com ninharias[32].
Somente quando se ultrapassam os limites estabelecidos pelos princípios da intervenção mínima, da lesividade e da adequação social é que o Poder Legislativo poderá tipificar as ações humanos, posto que o Direito Penal deve se pautar por uma visão minimalista, equilibrada, protegendo apenas os bens jurídicos mais importantes quando estes sofrem ataques lesivos e inadequados conforme a ótica social[33].
A intervenção mínima liga-se aos critérios de elaboração de leis penais criados pelo Poder Legislativo, sua utilização judicial deve ser mediata, como recurso necessário para sistematizar o Direito Penal. A insignificância é a utilização jurídica imediata, visando a determinar a existência do crime em frente à tipicidade material e à ilicitude concreta[34].
O entendimento de Günther Jakobs entende que a tutela penal visa a estabilidade social em si e, portanto, há de se prestigiar a segurança social:
As pessoas, nas questões jurídicas, não se caracterizam primordialmente pela segurança ideal dos seus bens, mas por serem reconhecidas de maneira geral como possuidoras de obrigações e direitos, ou seja, por ostentar o correspondente status. Um ato penalmente relevante – de forma paralela ao que já se disse – não se pode definir como lesão de bens, mas somente como lesão da juridicidade. A lesão da norma é o elemento decisivo do ato penalmente relevante, como nos ensina a punibilidade da tentativa e não a lesão de um bem. (...) A pena deve ser entendida como marginalização do ato em seu significado lesivo para a norma e, com isso, como constatação de que a estabilidade normativa da sociedade permanece inalterada; a pena é a confirmação da identidade da sociedade, isto é, na estabilidade normativa que com a pena se alcança – desde que se pretenda -, pois esta é sempre a finalidade da pena[35].
Em relação a esta questão, Alexandre Araripe Marinho traz um exemplo cotidiano, simples e, ao mesmo tempo, elucidativo:
Transmudando o argumento para o real, convém indagar: se um dos nossos filhos subtraísse o lápis de um coleguinha de classe, deixaríamos de admoestá-lo somente porque o lápis não possui valor econômico “juridicamente relevante”? Encararíamos como “natural” esse fato? Invocaríamos o princípio da insignificância e nossa consciência estaria “salva”? Se não formos inteiramente irresponsáveis e negligentes é óbvio que recriminaríamos a criança, pois ensinar que não se deve subtrair o que é alheio faz parte do processo de socialização. E certamente recriminaríamos com o castigo proporcional (quer pode ser até uma mera advertência), não em função do valor do lápis, mas em função de ser o ato em si de subtrair o que é alheio, lesivo para a norma de convivência social[36].
Ao Princípio da Insignificância falta uma conceituação expressa nos códices jurídicos, posto que a ausência de previsão legal causa a sua falta de reconhecimento, tendo em vista que a indeterminação dos termos causa instabilidade à segurança jurídica, tendo em vista que ficam ao critério pessoal do aplicador do Direito os critérios de fixação e a determinação das condutas que são consideradas insignificantes para a incidência do princípio, condicionando-se ao critério subjetivo e empírico do magistrado e demais operadores do Direito[37].