Professor orientador: Plínio Pacheco Clementino de Oliveira. Lettes: http://lattes.cnpq.br/6071732911385616 Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (Universidade Federal de Pernambuco), bacharel em Direito pela mesma instituição. Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito (Abrafi) e da Internationale Vereinigung für Rechts und Sozialphilosophie (IVR). Professor da graduação e da pós-graduação em Direito do Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau) e da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco (Facesf). Foi professor da Faculdade de Direito do Recife (Universidade Federal de Pernambuco). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Hermenêutica Jurídica, História do Direito, Direito Constitucional e Retórica Jurídica
Resumo: As mídias sociais, símbolo das comunicações sem fronteiras, vêm reafirmando a intolerância aos que supostamente cometem crimes ou subvertem costumes sociais, eclodindo, muitas vezes, no fenômeno social do “linchamento”, cuja principal característica é fazer justiça com as próprias mãos. O linchador encontra respaldo, em muitos casos, na inércia do Estado e na falta da sua atuação jurisdicional, ignorando o devido processo legal e agindo segundo as suas próprias convicções. Modernamente, os usuários das mídias sociais podem colaborar com a prática desses atos, com o compartilhamento de informação, de forma frequentemente imprecisa ou infundada, e com a propagação de ideias e opiniões por meio de perfis, páginas ou de grupos de redes sociais. O objetivo desse trabalho é analisar o conceito de justiça social e questionar a compatibilidade entre a justiça social e a prática do linchamento, assim como a contribuição das mídias sociais no ato de punir com as próprias mãos. Este trabalho foi embasado na metodologia de revisão bibliográfica. Foram lidos livros, artigos científicos e sites especializados com casos verídicos. Também foi utilizada a metodologia dialética (contraposição de ideias) a partir das leituras para compor o conceito e os reais motivos do linchamento. Como conclusão da revisão literária, consideramos que o linchamento pode sofrer influências das mídias sociais. A conduta constitui expressão dramática do processo de degradação social e, também, da busca de um padrão de sociabilidade aceita pelos que lincham.
Palavras chaves: Mídias sociais, linchamento, compartilhamento de informações falsas ou imprecisas, justiça com as próprias mãos.
1 Introdução
O presente trabalho tem como escopo analisar a contribuição das mídias sociais para a prática do linchamento, e questionar a relação entre a justiça social e o linchamento.
Mídias sociais são estruturas compostas por pessoas conectadas por intermédio de tecnologias que são capazes de criar, propagar ou difundir ideias em diversos formatos, nas quais partilham valores e objetivos comuns. O mundo das tecnologias modernas permite uma comunicação mais rápida, contumaz e, sobretudo, pautada no compartilhamento de informações.
Os usuários de redes sociais são os maiores exemplos: propagam ideias, compartilham opiniões, conhecimentos, interesses e esforços na busca de objetivos comuns. Muitas vezes, as informações não condizem com a realidade factual (carecem de fundamento e de segurança quanto à veracidade da informação). As mídias sociais intensificam a ideia de redes, por meio da divulgação de informações. “Fortalecem, dessa forma, o conceito de estruturação da sociedade civil, com maior participação democrática e mobilidade social” (BERNARDO, 2011, p. 3).
Surge, para usuários das mídias sociais, o papel de fiscalizadores e de “juízes das redes sociais”. Diante do problema da ineficácia da prestação jurisdicional, são, muitas vezes, acometidos por sentimentos de impunidade e intolerância, e pelo desejo de fazer justiça. Desse modo, constroem uma ideia de justiça social. Vejamos o que diz Joel Eliseu Galli (2012, n.p):
Portanto, ao que tudo indica, a opinião da massa de acossamento forçando os limites do julgamento técnico/estatal em situações de vultosa animosidade social enfraquece, de maneira comprometedora, os critérios do próprio julgamento, transformando-o, por conseguinte, na renovação simbolizada do matar de outrora.
Dito de outro modo, o forte apelo popular formado nos bastidores dos julgamentos célebres (Nardoni, Lindemberg Alves, entre outros tantos) obscurece a verdade cuja captura é indispensável à manifestação de um julgamento racionalizado e objetivo, privilegiando-se a paixão nascida do acossamento que culmina por identificar os acusados no grupo dos maus e os emissores de opinião no grupo dos bons. A partir de então, o fato perde a importância, corrompendo-se em meio a um emaranhado de opiniões com o potencial de sobrepor-se à realidade.
No que toca à função da mídia enquanto elemento veiculador e catalisador desse fenômeno de opinião substitutivo do antigo resultado oriundo da formação da massa de acossamento (a morte da vítima), possível notar a inclinação a um sacrifício da verdade em benefício do potencial lucrativo derivado da audiência ou da demanda por novas opiniões aptas a reforçar os objetivos da massa de acossamento virtual, situação que faz recordar a expressão de Hobbes reproduzida por Hannah Arendt, sustentando que somente a verdade que não se apõe ao lucro e ao prazer humano é desejada.
Dentro desse contexto, as mídias virtuais podem se tornar ferramentas para o cometimento de crimes no mundo real – como será visto mais adiante com o estudo do caso de Fabiane Maria de Jesus, moradora do bairro de Morrinhos IV, na periferia do município de Guarujá, no litoral do estado brasileiro de São Paulo. Acusada de crimes e posteriormente linchada pela população local, teve sua imagem divulgada e associada a informações falsas e imprecisas.
Informações imprecisas ou duvidosas podem suscitar o ódio e a violência desbaratada a grupos minoritários, etiquetar criminosos e certos crimes, influenciar outras pessoas e valorizar os estereótipos. Como afirma Zaffaroni (1997, p. 320):
Criminoso é simplesmente aquele que se tem definido como tal, sendo esta definição produto de uma interação entre o que tem o poder de etiquetar (‘teoria do etiquetamento ou labellingtheory) e o que sofre o etiquetamento, o que acontece através de um processo de interação, de etiquetamento ou de criminalização.
Os linchamentos começaram a ocorrer aqui no Brasil por volta do século XIX, voltados para uma conotação racial. Entretanto, sua motivação foi modificada ao longo dos séculos (MARTINS, 1996 p. 295-304). Nos tempos atuais, em nosso país, essas ações violentas aparecem como atitudes marcadas pela ideia de combate ao crime e à criminalidade. Vejamos, agora, como o professor e pesquisador José de Souza Martins (1995, p. 299) trata do tema que, segundo ele, é uma exteriorização da necessidade da população de manter a ordem e os bons costumes:
O linchamento não é uma manifestação de desordem, mas de questionamento da desordem. Ao mesmo tempo, é questionamento do poder e das instituições que, justamente em nome da impessoalidade da lei, deveriam assegurar a manutenção dos valores e dos códigos.
Nesse sentido, como tentativa de conceituação desse fenômeno social, afirmou, ainda, José de Souza Martins (1995, p. 299) que o linchamento tanto pode ter um sentido punitivo (nesse caso, fazer justiça com as próprias mãos) quanto pode expressar a necessidade que a população tem em manter a ordem, no meio em que vivem, por meio de um ato de participação democrática:
(...) A hipótese mais provável é a de que a população lincha para punir, mas, sobretudo para indicar seu desacordo com alternativas de mudança social que violam concepções, valores e normas de conduta tradicionais, relativas a uma certa concepção do humano. Uma hipótese decorrente é a de que o linchamento é uma forma incipiente de participação democrática na construção (ou reconstrução) da sociedade, de proclamação e afirmação de valores sociais (...). (MARTINS, 1995, p. 299).
“Os linchamentos, geralmente, são mais frequentes em tempos de tensão social e econômica. Essa modalidade de extermínio também esteve relacionada a preconceitos e práticas discriminatórias” (CABRAL; PEDROSA; 2015, n.p), e pode figurar como uma forma de punição de um suposto autor de um delito ou de um fato social inaceitável. Com o advento das mídias digitais, esse tipo de violência parece ter se tornado mais frequente. Visto que há uma interação não isenta de contradições e preconceitos nas redes, e uma intolerância pela falta de justiça (MARTINS, 1995, p. 298), há a possibilidade de aceitação desse tipo de violência como prática de “justiça popular”. Como bem conceituou Maria Victoria Benevides (1982, p. 96) sobre o linchamento:
Ação violenta coletiva para a punição sumária de indivíduos suposta ou efetivamente acusados de um crime – do simples furto ao assassinato – ou, em certas regiões, identificados com movimentos ou estigmas de ordem política e racial. Caracteriza o linchamento a natureza de vingança, além da “justiça” punitiva (geralmente acompanhada de métodos de tortura), à margem de julgamentos ou normas legais.
Com efeito, os linchadores expressam um fenômeno social de difícil conceituação, em função dos diversos aspectos que podem nortear tal conduta: subversão de normas por grupos marginalizados; desconfiança na jurisdição do Estado; preconceitos de longas datas; ineficiência ou a falta de presença do governo e a baixa qualidade dos serviços públicos. São aspectos que podem levar à existência de justiceiros sociais, conforme afirmou MARTINS (1996).
Tomemos ainda como parâmetro, para embasamento deste trabalho, o caso de Fabiane Maria de Jesus. A mesma era caracterizada como uma dona de casa que sequestrava e assassinava crianças, para utilizá-las em rituais de magia negra. Teve a sua imagem divulgada equivocadamente na internet e, posteriormente, linchada pela população local.
Mediante essa perspectiva, este trabalho analisará o conceito de justiça popular por meio da ideia de linchamento, e a contribuição que as mídias sociais oferecem para o mesmo. O texto relatará algumas visões do linchamento sob o olhar da mídia, e abordará controvérsias da prática de tal ato como meio de justiça.
Este trabalho é embasado na metodologia de revisão bibliográfica. Foram lidos livros, artigos científicos e sites com publicações especializadas. Também foi utilizada a metodologia da dialética (contraposição de ideias) a partir das leituras para compor o conceito e os motivos do linchamento.
2. As Mídias sociais
Vivenciamos, na história, a era da informação, na qual as mudanças tecnológicas e comportamentais são veiculadas de forma veloz, gerando, assim, mudanças repentinas na forma de consumir e, sobretudo, no modo de nos comportarmos em certas situações.
Os cientistas e professores KAPLAN e HAENLEIN (2010) conceituaram mídias sociais como "um grupo de aplicações para Internet, construídas com base nos fundamentos ideológicos e tecnológicos da Web 2.0, e que permitem a criação e troca de Conteúdo Gerado pelo Usuário (UCG)". Assim, as Mídias sociais podem ter diversas formas como blogs, compartilhamento de fotos, videologs, scrapbooks, e-mail, mensagens instantâneas, compartilhamento de músicas, crowdsourcing, VoIP, entre outros.
O conceito de mídias sociais (social media) precede a Internet e as ferramentas tecnológicas – ainda que o termo não fosse popular no passado. Trata-se da produção de conteúdo de forma descentralizada e sem o controle editorial de grandes grupos. Ou seja: significa a produção de muitos para muitos.
As "ferramentas de mídias sociais" são sistemas online projetados para permitir a interação social a partir do compartilhamento e da criação colaborativa de informação nos mais diversos formatos. Eles possibilitaram a publicação de conteúdos por qualquer pessoa, baixando a praticamente zero o custo de produção e distribuição ao longtail– antes esta atividade se restringia aos grandes grupos econômicos. (MANUAL DE UTILIZAÇÃO DAS REDES SOCIAIS, 2012, p. 6).
As mídias sociais, principais símbolos das comunicações sem fronteiras, possibilitam tal velocidade na divulgação, reprodução e compartilhamento de informações. Podem ser estabelecidas como plataformas, normalmente conectadas à internet, construídas para permitir a criação colaborativa de conteúdo, a interação social e o compartilhamento de ideias, opiniões e arquivos em suas mais diversas formas (TELLES, 2010, n.p). Dessa forma, é possível divulgar opiniões e juízos de valor a respeito de certos temas, e a produção de muitas informações não gera maiores custos para o usuário.
A rapidez com que a informação chega a um número expressivo de pessoas, por meio da conexão às mídias, transformou o modo de nos relacionarmos com a informação.
As condições sociais do mundo contemporâneo, com destaque para a presença da tecnologia digital, têm mudado de maneira significativa nossas formas de interação. Desse modo, nossas possibilidades de interagir socialmente com os outros sofrem mudanças, construções e reconstruções, sendo que, dentro deste contexto, as mídias sociais se destacam como notórios meios de interação e difusores de informação do nosso cotidiano. (COSTA, 2009, p. 1).
A força de alcance das informações divulgadas pode ser difícil de mensurar. Visto que as mídias sociais possibilitam formar uma rede de amigos, seguidores ou mesmo de pessoas dispostas a ouvir, visualizar, compartilhar ou até mesmo difundir certas ideias.
Tomemos como base as redes sociais, nas quais uma pessoa pode se conectar a centenas de milhares de outras, e essas outras a centenas de milhares de outras, que podem ter acesso ao que os seus contatos compartilham. Ao utilizarem esses meios sociais, pessoas podem se valer do anonimato para a exposição de preconceitos. Assim, algumas condutas praticadas pelos usuários das mídias sociais ficam impunes ou são simplesmente relevadas pelas próprias vítimas, pois ainda não foram tipificadas no Código Penal Brasileiro. Como analisaram OLIVEIRA e DANI (2011), no artigo “Os crimes virtuais e a impunidade real”:
O poder judiciário brasileiro utiliza os crimes já tipificados em nosso ordenamento para adequar os crimes virtuais. Os magistrados, em sua maioria, fundamentam seus julgados utilizando o artigo 171 do código penal, in verbis:“Artigo 171: Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.” Conforme se verifica o artigo supra é bem amplo e abrange algumas modalidades de crimes virtuais. Outros crimes, como no caso da pedofilia são enquadrados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Outros crimes não podem ser enquadrados em nenhum outro delito já tipificado, pois em nosso ordenamento penal a analogia propriamente dita só pode ser utilizadas em casos para beneficiar o réu. A suposta “analogia” utilizada pelos magistrados em seus julgados, nada mais é, do que uma interpretação mais extensiva no delito tipificado, ou seja, o local do crime não é propriamente físico, mas por equiparação existe e o resultado buscado pelo criminoso ao cometer tal conduta na internet fora alcançado, portanto, não há que se falar em lacuna na lei para absolver o criminoso, restando pouquíssimos delitos cometidos na internet que de nenhuma forma possuem ligação com os crimes já tipificados.
O Brasil precisa urgentemente criar uma legislação específica para crimes virtuais, uma vez que, a internet hoje se tornou indispensável para a sociedade, não lhe conferindo mais apenas o caráter de lazer como antigamente, mas sim um caráter de informação, trabalho e lazer.
É possível afirmar que as mídias sociais têm sido usadas como forma de punir ou fazer justiça por meio de comentários, divulgação e compartilhamento de informações infundadas ou inverídicas. Como a foto de Fabiane Maria de Jesus, citada acima, que foi divulgada no Facebook pela “fanpage” “Guarujá Alerta”, página que, diariamente, veiculava informações aos moradores do município de Guarujá – SP acerca de crimes e criminosos da localidade.
Mediante tal perspectiva, é possível suscitar um debate sobre se as mídias sociais podem ou não contribuir para prática de condutas ilícitas pelos usuários das mídias sociais.