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Estudo das teorias da posse e suas influências sobre os códigos civis brasileiros de 1916 e de 2002

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Agenda 06/12/2019 às 14:26

6 TEORIA DA POSSE NO DIREITO BRASILEIRO

6.1 CÓDIGO CIVIL DE 1916

O cearense Clóvis Beviláqua, autor do projeto do Código Civil Brasileiro em 1901, e que veio a ser promulgado apenas em 1916, adotou a teoria de Ihering quanto tratou do instituto posse.

O CC de 1916 foi um dos pioneiros no mundo a filiar-se às ideias da teoria objetiva, visto que, até então, Savigny revestia-se de grande prestígio, sendo a teoria subjetiva dominante nos códigos civis.

Portanto, desde 1917, quando o Código Civil de Beviláqua passou a gerar efeitos, não há no nosso ordenamento jurídico a necessidade de animus domini para que se caracterize a posse, nem exige-se o poder físico direto sobre a coisa. Por outro lado, a posse surge com a utilização econômica da coisa, e a proteção jurídica sobre a posse advém, em última análise, da proteção jurídica sobre a propriedade, uma vez que a posse é vista, na teoria de Ihering, como uma externalização da propriedade.

Tal entendimento pode ser verificado na definição de possuidor no art. 485.

Artigo 485: Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade.

Assim, o possuidor, e em consequência a posse, tinha o seu conceito decorrente do da propriedade, visto que só seria possuidor quem exercia algum dos poderes típicos da propriedade. Tal entendimento retira a autonomia da posse, enquanto instituto.

Com a adoção da teoria objetiva, a gama de possíveis possuidores aumentou. De modo que, aqueles que antes não eram abarcados no campo de incidência da posse, conforme a teoria subjetiva, passaram a ser considerados possuidores; especificamente possuidores diretos, como visualizado no art. 486.

Artigo 486: Quando, por força de obrigação, ou direito, em casos como o do usufrutuário, do credor pignoratício, do locatário, se exerce temporariamente a posse direta, não anula esta às pessoas, de quem eles a houve, a posse indireta.

No entanto, no CC de 1916 há resquícios da teoria subjetiva, o que podemos observar nos artigos:

Artigo 550: Aquele que, por vinte anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente de título e boa-fé que, em tal caso, se presume, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual lhe servirá de título para a transcrição no Registro de Imóveis.

Artigo 551: adquire também o domínio do imóvel aquele que, por dez anos entre presentes, ou quinze entre os ausentes, o possuir como seu, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé.

Parágrafo único - Reputam-se presentes os moradores do mesmo município, e ausentes os que habitam municípios diversos.

Antes da análise dos artigos, convém destacar que os mesmos, tais como descritos, têm redação dada pela Lei Nº 2.437, de 7 de Março de 1955; no entanto, diferencia-se do texto original do CC de 1916 apenas no que diz respeito ao tempo estipulado para a garantia do domínio por usucapião. O restante da redação continuou intacta em relação ao original, e, portanto, não haverá prejuízo para nossa análise ao pontuarmos como referência o ano de 1916.

Note que em ambos os artigos, do CC de 1916, ao tratar de usucapião, o legislador incluiu explicitamente o termo "possuir como seu", o que denotava a necessidade do animus domini para que o direito à coisa fosse assegurado. Trata-se de uma exceção existente no CC de 1916, cuja regra era a desnecessidade da intenção de ter a coisa como se dono fosse. Exceção que contempla a teoria subjetiva de Savigny.

Acrescente-se que a diferença entre os dois artigos reside na existência ou não de justo título, derivando disso a usucapião ordinária e a usucapião extraordinária; representadas pelos art. 551 e art. 550 respectivamente.

No art. 551, falava-se ainda em possuidores ausentes e presentes. Eram ausentes os possuidores que residiam em municípios diversos de onde estava localizado o imóvel; por outro lado, eram presentes os possuidores que residiam no mesmo município onde estava localizado o imóvel. Na condição de possuidor ausente, o animus domini era garantido pela existência do justo título, que o artigo firmava como pré-requisito para a aquisição do domínio. Enquanto que no art. 550, nada falava-se em possuidor ausente, exatamente porque tal artigo não tinha no justo título um apoio para assegurar o desejo de possuir a coisa como se fosse sua; logo, caso ausente e sem justo título, não se poderia verificar o animus domini, elemento essencial para configurar a posse na teoria subjetiva, e garantir o direito ao usucapião.

No CC de 1916, só havia essas duas modalidades de usucapião, cuja configuração era orbitada por elementos como: posse sem interrupção, posse sem oposição, possuir como seu, boa-fé e justo título. Portanto, tanto na usucapião ordinária como na usucapião extraordinária, em nenhuma parte do texto mencionou-se moradia ou trabalho; termos que ao longo do século XX especializaram a posse em posse-moradia e posse-trabalho. O que se pretende é afirmar que o cc de 1916 passou ao largo de qualquer menção a uma função social da posse, mesmo porque as teorias sociológicas da posse eram ainda incipientes, o que pode-se constatar pela data de publicação do livro de Perozzi: Istituzioni di Diritto Romano, em 1906.

Apesar de não contemplar a função social da posse, o CC de 1916 foi inovador, quando o pensamos como um código que superou a corrente teórica possessória estabelecida e majoritária, leia-se a teoria subjetiva de Savingy, em favor da corrente objetiva, mais moderna e mais adequada às novas demandas da sociedade de então.

O CC de 1916, ainda, é também influenciado por Savigny no que diz respeito à aquisição ou a perda da posse, conforme lemos nos artigos 493 e 520:

Artigo 493: Adquire-se a posse:

I - pela apreensão da coisa, ou pelo exercício do direito;

II - pelo fato de se dispor da coisa, ou do direito;

III - por qualquer dos modos de aquisição em geral.

Este artigo, referente à aquisição da posse, tem uma certa influência de Savigny, visto que explicita, em seu inciso I, a apreensão de coisa como uma modalidade de aquisição, carregando a ideia de um corpus caraterizado pelo contato físico; ao passo que se cala quanto ao uso econômico da coisa, típico de Ihering.

Artigo 520: Perde-se a posse das coisas:

I - pelo abandono;

II - pela tradição;

III - pela perda, ou destruição delas, ou por serem postas fora do comércio;

IV - pela posse de outrem, ainda contra a vontade do possuidor, se este não foi manutenido, ou reintegrado em tempo competente;

V - pelo constituto possessório.

Este artigo, referente à perda da posse, teve forte influência da teoria subjetiva. Os dois primeiros incisos do art. 520 falavam da perda da posse por abandono ou tradição, ou seja, caso o possuidor não quisesse mais a coisa, portanto o animus domini fazia-se presente; acrescente-se que por abandono ou tradição, o possuidor também abdica o contato físico com a coisa, ou seja, perdia-se a posse da coisa, nesses incisos, quando não havia mais nem o animus domini, nem o corpus da teoria de Savigny. O inciso IV, por sua vez, tínhamos a perda da posse meramente por sumir o contato físico com a coisa em benefício de outrem, ou seja, cessaria a posse na falta do elemento corpus, mesmo subsistindo o animus domini. O constituto possessório, disposto no inciso V, trata-se de uma operação jurídica que altera a titularidade da posse, de modo que, quem possuía em nome próprio passa a possuir em nome de outrem; em vista disso, apesar de o sujeito continuar com o contato físico direto, falta-lhe o animus domini, sendo este o motivo para a perda da posse. Este último inciso parece mal colocado dentro do conjunto do Código Civil, pois sabemos que através constituto possessório, por exemplo, aquele que era proprietário passa à condição de locatário; portanto não deveria tratar-se de perda da posse, pois o locatário, segundo o CC de 1916, também é elencado como possuidor, em acordo com a teoria objetiva. Todos os incisos observados coadunam-se com a teoria de Savigny, portanto representam também uma fuga à teoria de Ihering, adotada no CC de 1916.

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Os artigos 493 e 520 chocam-se claramente com o disposto no art. 485, exatamente por significarem pontos de vistas diferentes sobre um mesmo instituto. Bastaria ao legislador ter mantido o art. 485 na redação do código, com a eliminação dos dois primeiros citados, que as situações de aquisição ou perda da posse seriam naturalmente deduzidas de seu texto; pois surgindo ou desaparecendo o exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade julgar-se-ia que haveria aquisição ou perda da posse.

Segundo Santiago (2004), tal conflito teórico não deve ser creditado a Clóvis Beviláqua, pois em seu texto do projeto do Código Civil brasileiro não havia quaisquer enumerações de modos de aquisição ou perda da posse, muito menos a ponto de gerar uma confusão como se verificou. Certamente um jurista da envergadura de Beviláqua não criaria um embaraço deste nível para o código; ocorreu que o Congresso, influenciado pelo código de Seabra (Código Civil português de 1867), alterou o texto original, indicando os casos de perda e de aquisição da posse.

Mesmo com a penetração da teoria subjetiva no cc de 1916, este é fundamentado pela teoria objetiva, aproximando-se bastante do ponto de vista de Ihering, sobremodo por considerar a posse como uma exteriorização do direito à propriedade.

6.2 CÓDIGO CIVIL DE 2002

O Código Civil de 2002, nasceu de um projeto que envolveu vários juristas, tendo em Miguel Reale o principal expoente. O projeto do novo código foi elaborado durante o período dos governos militares, passou vários anos sem a análise do legislativo, sofreu algumas mudanças, e diante do processo de redemocratização e preparo para a elaboração de uma nova constituição, o projeto acabou caindo no esquecimento. Porém a discussão sobre a necessidade de um código civil mais moderno e coerente com as demandas atuais do país voltou a tona, e em 2002 foi aprovado o projeto do novo Código Civil, que se tornou a Lei Nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002.

Conforme Cielo (2013), o projeto que deu origem ao novo Código Civil buscou manter, na medida do possível, as disposições do CC de 1916, de modo a evitar uma mudança drástica na concepção jurídica civilista da sociedade brasileira; no entanto, também buscou contemplar as necessidades contemporâneas de uma sociedade essencialmente diversa daquela onde o CC de 1916 foi gerado. Como diferença fundamental entre os dois códigos, está o caráter individualista do velho, ao passo que o novo possui uma vocação social.

Inicialmente, convém destacar que o CC de 2002 adotou a teoria objetiva como fundamentação para a posse. Aproximou-se ainda mais do pensamento de Ihering em relação ao CC de 1916, abandonando alguns pontos influenciados pelo pensamento de Savigny e presentes na codificação anterior. Desta forma, para uma melhor análise sobre a evolução ou transição de um código para o outro faz-se mister realizarmos uma comparação entre alguns artigos contrastantes. Comecemos então o estudo a partir dos artigos relacionados à aquisição e à perda da posse.

Art. 1.204. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.

Vemos no art. 1.204, do CC de 2002, uma nítida diferença entre ele e o art. 493, do CC de 1916, ambos referentes à aquisição da posse. O primeiro está totalmente harmônico com a teoria objetiva, ao passo que o segundo, como já foi dito na seção anterior, segue a corrente subjetiva.

Uma vantagem do atual código em relação ao anterior é o fato de o modo de aquisição estar totalmente de acordo com o conceito de possuidor, visto que havia uma distorção, no CC de 1916, entre o conceito de possuidor e o modo de aquisição da posse, como já foi demonstrado. O conceito de possuidor no CC de 2002 é dado pelo artigo.

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Nota-se que o conceito de possuidor continua o mesmo do CC de 1916, que é dado pelo art. 485, com a redação praticamente inalterada. Claramente há a influência de Ihering, pois a posse, através da definição de possuidor, continua sendo vista como a externalização da propriedade.

Quanto à forma de perda da posse, no atual Código Civil temos a redação.

Art. 1.223. Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196.

Mais uma vez observamos a coerência teórica existente no atual Código Civil, pois o artigo que trata da perda da posse está em total consonância com a teoria objetiva de Ihering. Os três artigos redigidos nesta seção encontram-se em harmonia; assim, a ideia de posse, suas formas de aquisição e suas formas de perda foram originadas dentro de uma mesma fonte teórica; o que não ocorreu com o código anterior, conforme visto. A lista de modos de perda da posse foi abandonada no CC de 2002; primeiro, porque a lista presente no art. 520, do CC de 1916, possuía uma clara adesão à teoria subjetiva; segundo, porque o art. 1.196, do CC de 2002, é suficiente para que entendamos em quais situações haverá perda da posse, a saber: quando o possuidor já não possa exercer algum dos poderes inerentes à propriedade.

Ressalte-se ainda que o art. 1.223 menciona "embora contra a vontade do possuidor", o que significa que o animus domini é irrelevante para a perda da posse.

Superada esta análise, com a conclusão de que o CC de 2002 eliminou alguns resquícios da teoria de Savigny, presentes no CC de 1916, partamos para uma seguinte comparação entre os dois códigos. A usucapião é uma importante matéria de divergência.

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

Primeiramente, destaca-se o termo "possuir como seu" presente no art. 1.238 do CC de 2002, o que significa a adoção do ponto de vista de Savigny no que concerne ao usucapião. Assim, o CC de 2002, basicamente, mantém-se adepto à teoria subjetiva no que diz respeito ao usucapião, sem representar uma alteração em relação ao CC de 1916.

O artigo, em estudo, trata da usucapião extraordinária, cuja diferença de seu caput para o art. 550 do CC de 1916 está apenas no que confere ao prazo de aquisição do direito à propriedade. Portanto, sem nenhuma diferença fundamental sob o ponto de vista teórico. Porém, ao analisarmos o parágrafo único do art. 1.238, encontraremos uma diferença substancial entre as bases teóricas que serviram de fundamento para os dois códigos. Primeiramente, o art. 550 do CC de 1916 não nos oferece nada além do seu caput, limitando-se à concepção de Savigny. Por outro lado, o art. 1.238 do CC de 2002 traz um parágrafo único, que trata de uma posse com o fim de moradia, ou de uma posse que apresente um caráter produtivo; e diz mais: caso a posse em questão seja de um desses dois tipos, o prazo estabelecido para a garantia da usucapião reduzir-se-á de quinze anos para dez anos. Conclui-se que existe uma posse qualificada que garante a redução do prazo previsto, e essa qualificação decorre de como essa posse é utilizada: para moradia ou para a produção; fica evidente que estamos diante de uma posse que responde a uma função social, e como tal é valorizada.

O parágrafo único do art. 1.238 é responsável pelo CC de 2002 ir além da mera teoria subjetiva. O artigo, em estudo, adequa-se a Savigny, mas o supera a partir do momento em que se filia aos teóricos contemporâneos, enquanto desenvolvedores do conceito de função social da posse. E, por consequência, também supera a usucapião do CC de 1916.

Continuando o estudo dos outros artigos referentes ao usucapião teremos novas quebras de paradigmas.

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

O art. 1.242 do CC de 2002 deve ser comparado com o art. 551 do CC de 1916, possui em ambos temos a usucapião ordinária. O caput de um em pouco diferencia-se do caput do outro, apenas no aspecto de não haver mais a posse de ausentes no texto do primeiro; de modo que ambos filiam-se à teoria subjetiva. A diferença entre ambos se apresenta quando observamos o parágrafo único do art. 1.242 do CC de 2002, que da mesma forma como ocorreu com a usucapião extraordinária, há uma posse qualificada pelo exercício de uma função social na usucapião ordinária. No texto em questão lemos os termos: moradia e investimentos de interesse social e econômico. E tal posse vestida da função social é premiada com a diminuição em cinco anos do prazo para a aquisição da propriedade.

Ainda com respeito ao usucapião, outra diferença entre os dois códigos é que o CC de 1916 resume-se a esses dois tipos: ordinária e extraordinária; porém o CC de 2002 inovou, ainda mais, e trouxe modalidades especiais de usucapião, todos em consonância com a função social da posse, melhor ainda, todos tendo a função social como pré-requisito para a configuração do direito à propriedade por usucapião. O que pode ser lido nos art. 1.239, art. 1.240 e art. 1.240-A.

Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1o O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2o O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

Sendo este último artigo incluído pela Lei nº 12.424, de 2011.

Note-se que em todas essas modalidades de usucapião é necessária uma posse que cumpra uma função social, seja através da moradia, seja através do trabalho. Além disso, os prazos para a aquisição da propriedade ficam bem reduzidos: em cinco anos ou em dois anos, conforme o caso; o que, com certeza, é uma influência das teorias sociológicas da posse que se desenvolveram ao longo do século XX.

Superada essa análise da usucapião, concluímos que o CC de 2002, apesar de fundamentado na teoria objetiva, possui características importantes das teorias sociológicas, e aqui podemos marcar as influências de Saleilles, Perozzi e Hernandez Gil. Particularmente, a usucapião, em si, afasta-se da teoria objetiva e bebe da teoria subjetiva, permeada por ideias sociológicas.

Pode parecer contraditório ter tantas teorias diferentes em uma mesma codificação, porém não é o que pensa Maria Helena Diniz .

A coerência lógica não é requisito essencial do direito, mas do sistema jurídico, logo a incompatibilidade entre normas é um fato. (DINIZ, 1996, p.111)

Por não ser a codificação uma estrutura científica, portanto fundamentada na lógica, não há necessidade prática de o legislador apoiar-se restritivamente em uma das teorias da posse, devendo apenas ficar atento para não gerar uma contradição dentro da codificação. Sendo assim, não há incoerência em adotar-se, por exemplo, a teoria subjetiva para a caracterização da usucapião com alguns elementos das teorias sociológicas.

Quanto às teorias sociológicas, estas também exerceram sua influência em outro artigo do CC de 2002.

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.

§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.

O art. 1.228 define propriedade a partir do proprietário. Já que o atual código construiu-se sobre a teoria objetiva, os princípios referentes à propriedade também servem para a posse. Os parágrafos, do artigo em questão, trazem a ideia de uma utilidade da propriedade, ou posse, que corresponde a uma responsabilidade social, o que o diferencia também da codificação anterior, de cunho mais individualista. Terminologicamente há uma diferença sutil entre os códigos a esse respeito, pois o CC de 1916 falava em direito de usar, ius utendi; direito de gozar, ius fruendi; e direito de dispor, ius disponendi; enquanto que o CC de 2002 retirou o termo direito e passou a chamar de faculdade, o que deve significar uma limitação ao uso, gozo e disposição da coisa no que diz respeito à liberdade de agir do sujeito. Agora há limitações e estas são dadas pelos parágrafos do presente artigo. O parágrafo primeiro cita a preservação ecológica; o segundo, proíbe a utilização em prejuízo a outrem; o terceiro, menciona a desapropriação por necessidade pública ou interesse social; o quarto e o quinto, fazem menção a uma nova forma de desapropriação: a desapropriação judicial privada por posse-trabalho.

Dito isso, resumidamente, podemos afirmar que o princípio da função social da posse está implícita nos arts. 1.228, 1.238, 1.239, 1.240, 1.240-A, 1.242. E por meio deles temos o favorecimento da posse-moradia e da posse-trabalho.

A doutrina, majoritariamente, considera o CC de 2002 como influenciado principalmente pela teoria objetiva de Ihering. Primeiro, porque logo no artigo inaugural do título "da posse", o atual Código Civil define possuidor de acordo com a concepção de Ihering, e fica evidente que o texto entende a posse como uma externalização da propriedade, algo impensado nas teorias sociológicas; visto, que estas, sempre buscam desvincular a posse da propriedade, dando-lhe maior autonomia; além disso, os capítulos "da aquisição da posse" e "da perda da posse", também, como já foi visto, estão e concordância com a teoria objetiva muito claramente. Segundo, porque não há uma defesa explícita, no CC de 2002, da função social da posse; o que há são influências e menções implícitas ao princípio da função social da posse, sendo insuficientes os elementos existentes para considerarmos a codificação, em estudo, como formulada principalmente por meio das ideias sociológicas.

Muitos doutrinadores questionam o CC de 2002 exatamente por faltar-lhe a declaração explícita da posse, enquanto instituto dependente da existência de uma função social. Muitos clamam por uma filiação definitiva do Código Civil brasileiro às teorias influenciadas por Saleilles, Perozzi e Hernandez Gil, a ponto de haver tentativas para a alteração no texto do código.

Conforme Tartuce (2014), nesse movimento houve o Projeto 6.960, de 2002, de autoria do deputado Ricardo Fiúza, e que se converteu no Projeto 699, de 2011, o qual busca alterar o texto do art. 1.196, influenciado claramente pela teoria objetiva.

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem poder fático de ingerência socioeconômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre determinado bem da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade de exercício inerente à propriedade ou outro direito real suscetível de posse

Caso esse projeto seja aprovado, será mais um passo na transição teórica do Código Civil, das teorias clássicas para as teorias sociológicas.

Ainda segundo Tartuce (2014), na V Jornada do Direito Civil, em 2011, os juristas aprovaram um enunciado inovador que contempla a posse, enquanto instituto dotado necessariamente de uma função social, além de dar autonomia à mesma em detrimento da propriedade.

A posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela (Enunciado n. 492, da V Jornada de Direito Civil, em 2011).

O jurista Luiz Edson Fachin, atual indicado pela presidência para ocupar uma cadeira de ministro do STF, dedicou substancialmente a esse tema. Conforme Fachin (1998), no Estatuto da Cidade, dado pela Lei Nº 10.257, de 10 de Julho de 2001, tanto a posse como a propriedade devem cumprir sua função social, pré-requisito indispensável para a vida em sociedade. Assim, ficou estabelecido que o imóvel urbano tem um importante valor social sob o ponto de vista ambiental e de promoção da cidadania, que, quando desrespeitado esse valor pela posse ou pela propriedade, cabe ao operador do direito julgar de modo a contemplar a melhor posse.

A Constituição cidadã de 1988, de conteúdo moderno e garantista de direitos sociais, foi um avanço e serve como fundamento para uma interpretação da lei pelo juiz de modo a reconhecer na posse um status de igualdade em relação à propriedade.

Fica patente, portanto, uma movimentação doutrinária no sentido de aprofundamento, cada vez maior, da ideia de uma função social como principal característica da posse. A doutrina, neste caso, tem sido mais ligeira em alterar a concepção da posse, levando-a para um campo onde as necessidades sociais como moradia e trabalho são valores prioritários para a garantia dos direitos fundamentais e de dignidade do homem.

Sobre o autor
Romulo Rodrigues dos Santos

Estudante de Direito na Universidade Federal do Ceará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Romulo Rodrigues. Estudo das teorias da posse e suas influências sobre os códigos civis brasileiros de 1916 e de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 6001, 6 dez. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64014. Acesso em: 22 dez. 2024.

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