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O crime nosso de cada dia

Agenda 21/03/2018 às 13:15

Atualmente temos assistido a uma bestial disputa nas redes sociais entre os que procuram justificar assassinatos, como se o valor da vida pudesse ser relativizado por critérios estranhos à mente sã.

Ao longo da vida, nos acostumamos a coexistir com uma infinidade de crendices, jargões e ditados populares. Havendo sempre alguém para reproduzi-los em todos os cantos, muitas vezes acabamos sucumbindo a algumas dessas ideias sem qualquer avaliação lógica e racional. Exemplo disso é o que se revela pela “frase feita” de que não devemos misturar nossas paixões políticas e ideológicas com religião. No âmbito do Direito, nada mais comum do que essa advertência, embora desprovida de conteúdo histórico, sociológico e, como não podia faltar, religioso.

Gandhi chamava de tolo todo aquele que achava ser possível desassociar política com religião. Em certa ocasião expôs o que viria a se tornar um dos seus mais famosos pensamentos: “quem acredita que religião e política não se misturam, não conhece nem uma coisa nem outra.”. No contexto da política estão inseridas as questões jurídicas, logo, tudo se entrelaça às doutrinas religiosas, que afetam nossa análise valorativa sobre todas as coisas, ou seja, nossa visão de mundo. Nada, absolutamente nada, fica imune.

As bases científicas da ciência do Direito edificadas no mundo ocidental guardam total correspondência com as relações sociais desenvolvidas durante a dominação romana. No seio do império, os profetas anunciavam a vinda do messias, como acreditava o povo da Palestina, mas somente parte dele reconheceu Jesus como sendo o Cristo, de acordo com o que previam as escrituras. Os poucos anos de pregação que afrontaram a ordem jurídica estabelecida foram o bastante para o julgamento e condenação de Jesus às penas cruéis. Aos fiéis, o milagre da ressurreição não deixaria dúvidas quanto à sua divindade: o homem de Nazaré era Jesus Cristo. A partir de então, Paulo, que havia pertencido ao exército romano, em paralelo aos apóstolos, procurou difundir a filosofia cristã por todos os cantos do império, e fora dele, com suas cartas que antecederam aos Evangelhos. Não obstante as incessantes perseguições e assassinatos, o cristianismo foi arrastando multidões. Houve tempo, inclusive, de não haver mais árvores para atender à demanda de crucificações, na tentativa de exterminar o que estava destinado a perdurar por mais de dois mil anos.

A escravidão entre outras práticas milenares contempladas pelo Direito Romano ficaram seriamente prejudicadas diante da concepção de que todos seriam filhos de um único Deus e iguais perante o Seu julgo. E assim, enquanto a cultura romana declinava progressivamente, o cristianismo consolidava-se de forma a resistir às invasões bárbaras e a se adaptar aos novos tempos de trevas, até que as grandes navegações fizessem alcançar as civilizações ultramarinas, como no caso brasileiro.

Nesse longo período de dominação cristã, o estudo da filosofia aristotélica, realizada especialmente pelos jesuítas, aperfeiçoaram as concepções de dolo e culpa, que, nos dias atuais, classificamos como elementos subjetivos do tipo incriminador, entre outros ideais que servem de fundamento para diversos institutos do nosso ordenamento jurídico. Por essa razão, quando solicitado a não misturar direito com religião, digo que sinto muito, pois esse fenômeno precede a minha existência.

No cotidiano forense vejo muitos operadores do Direito se declarando cristãos, englobando desde os mais humildes funcionários da justiça até os mais notáveis juristas. Independente da interpretação que possam fazer do Evangelho presume-se que devam convergir em uma profunda reflexão inspiradora de um amor universal e misericordioso. Entretanto, não raramente, da boca de muitos desses cristãos saem discursos de vingança, sadismo, indiferença, repulsa, preconceito, entre outras manifestações de ódio. E quando escondidos por detrás de um computador, no vazio das páginas de relacionamento, são tomados de cólera e se igualam aos homens que tanto ojerizam, percorrendo no mundo do crime, embora por meio de outras espécies delituosas. Alguns vídeos de agressões físicas, e até linchamento, são frequentemente postados na internet e causam um verdadeiro delírio. Os signatários dessas postagens muitas vezes são da área jurídica, muitas vezes religiosos, muitas vezes cristãos. Realmente, “não é o que entra, mas o que sai da boca do homem que o torna imundo.”.

Não faz muito tempo que transcendemos aos limites do macabro diante das sucessivas rebeliões ocorridas na região norte do país. Como efeito, contabilizamos dezenas de pessoas queimadas vivas, decapitadas, além de cadáveres vilipendiados. Houve quem achasse pouco e pedisse mais. Atualmente, temos assistido a uma bestial disputa nas redes sociais entre os que procuram justificar assassinatos, como se o valor da vida pudesse ser relativizado por critérios estranhos à mente sã. Seriam eles crentes em Deus ou em Seu Filho, que foi humilhado, açoitado e crucificado?

É sabido que a loucura não impede que o indivíduo procure refúgio para sua alma em alguma crença. Aliás, o fanatismo religioso configura um dos traços marcantes identificado naqueles acometidos dessa anomalia. Todavia, quando não estamos diante de um psicótico, como explicar os aplausos dirigidos a espetáculos de pura selvageria?

É inerente à postura de um homem letrado o respeito pelo posicionamento alheio, ainda que nenhum consenso possa ser alcançado. Os estudiosos do Direito deveriam se policiar ainda mais quanto a este aspecto, porque se hoje lhes são permitido o debate, tal privilégio se deve muito às lições de Rousseau e Voltaire, sobre discordar inteiramente do que se diz, mas defender até a morte o direito de dizê-lo. Nesse ambiente, sinto-me na obrigação de ouvir e ponderar todo tipo de discurso, compreender as suas origens, implicações e consequências. Porém, quando as propostas são de ódio, como a institucionalização da tortura, pilhagem, banimento, racismo e execução sumária, apenas sugiro, gentilmente, que não procurem adaptá-las ao cristianismo, pois devemos dar “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.

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O verdadeiro cristão não sente orgulho das Cruzadas, da Inquisição, não “malha o Judas”; em vez disso, reza pela remição dos seus pecados, do mesmo modo que perdoa quem lhe provocou alguma ofensa, e para que lhe seja afastado todo o mal, inclusive da tentação da reincidência. Para o crime nosso, há múltiplas interpretações na doutrina e na jurisprudência capazes de justificá-lo, mas para o Pai Nosso só a humildade nos permite compreendê-lo em seu único e irrefutável sentido. Todo cristão conhece a Bem Aventurança, e realmente crê que bem aventurados sejam aqueles que têm sede de justiça. O sentido de justiça não se confunde com vingança, nem privada, muito menos estatal. Justo é procurar reparar o mal que lhe deu causa e permitir que os outros também o façam. Porém, isso só é possível quando o amor assume a posição de sentimento motivador dos nossos atos.

Inesquecível a resposta de Bertrand Russel sobre o que pensava a respeito do nazismo e do comunismo. Explicou que não acreditava na prosperidade de nenhuma dessas doutrinas, pelo fato de terem adotado o ódio como pedra fundamental, e que esse impulso jamais levaria alguém a algo construtivo, pelo contrário. A percepção de Russel se adequa exatamente às perspectivas de ordem jurídica. Combater todas as ações negativas ou que se alimentam dos seus nefastos resultados traduz a essência da vocação cristã, seja no mundo jurídico ou em qualquer outra esfera.

Sobre o autor
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel

SERGIO RICARDO DO AMARAL GURGEL é sócio em COSTA, MELO, GURGEL Advogados; autor da editora Impetus; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GURGEL, Sergio Ricardo Amaral. O crime nosso de cada dia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5376, 21 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64909. Acesso em: 5 nov. 2024.

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