Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Da presunção de violência e da necessidade de análise casuística nos casos de estupro do vulnerável menor de 14 anos

Exibindo página 2 de 7

3 DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL

O objetivo deste capítulo é analisar, sobre a óptica doutrinária, as particularidades do delito de estupro de vulnerável, após a revogação do artigo 224 do Código Penal, com o advento da lei 12.015/09, visto que seu foco de pesquisa se dá no que diz respeito ao fator etário como vulnerabilidade.

Até meados do ano de 2009, o crime, hoje tido como estupro de vulnerável, era regido por dois tipos penais distintos, os artigos 213 e 214 do Código Penal, que previam, respectivamente, os delitos de estupro e atentado violento ao pudor.

Para que se pudesse falar em estupro ou atentado violento ao pudor contra vulneráveis, tornava-se necessária a cumulação de um dos referidos tipos com as disposições do artigo 224 do mesmo código, que apresentava o seguinte texto:           

Presunção de violência   

Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima:

a) não é maior de catorze anos;

b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;

c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.[32]

Assim, a título de exemplo, para se punir um crime de estupro praticado contra uma vítima menor de 14 catorze anos, havia a necessidade da conciliação do dispositivo penal do artigo 213 com o contido no artigo 224, alínea “a”, ambos do Código Penal.

No tocante a isso, ao comentar o artigo 224 do Código Penal, o jurista Rogério Greco afirma que:

O código penal, tratando-se de vítima menor de 14 anos, ou que seja alienada ou débil mental, ou que não possa oferecer resistência, despreza o seu consentimento para o ato sexual, uma vez que entende que, em virtude de sua particular condição, não possui a necessária capacidade para consentir, seja por não ter maturidade suficiente para entender as coisas do sexo, ou mesmo por não compreender o ato que pratica.[33]

Todavia, ainda existindo a presunção de violência nos casos de estupro contra vulneráveis, a fim de preservar sua dignidade quanto às limitações decorrentes de sua imaturidade sexual, doutrinadores e Tribunais Superiores entendiam como relativa essa presunção, analisando os pretextos causais diante de cada fato concreto, como dirigir uma proteção legal e integral a uma menina, com menos de 14 anos, que tivesse uma vida sexual ativa e discernimento para tais atos.[34]

Porém, com o advento da Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009, a tipificação relativa ao estupro de vulneráveis ganhou nova roupagem. Assim, encontramos positivado, no artigo 217-A do Código Penal, o delito tipificado como estupro de vulnerável:

Estupro de vulnerável:

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:           

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.              

§ 2o (VETADO)               

§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:         

Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.             

§ 4o Se da conduta resulta morte:           

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.[35]   

Conforme indica o artigo apresentado, trata-se de vulnerável aquele que tem idade inferior a 14 anos, o enfermo ou doente mental que não tenha o necessário entendimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não seja capaz de oferecer resistência,[36] não mais admitindo, nesses casos, a presunção de violência, passando esta, a ser absoluta e configurando crime o ato de ter relações sexuais com pessoas que se enquadrem no disposto no artigo supracitado. Ou seja, o legislador, ao alterar o texto do Código Penal de 1940, com a promulgação da Lei 12.015 de 2009, passa a proibir, sem exceções, a prática sexual com menores de 14 anos.[37]

Contudo, ainda há discussões e entendimentos contrários quanto ao novo tipo penal, conforme veremos adiante.

3.1 Estrutura típica normativa do crime de estupro de vulnerável

O legislador, com o objetivo e preocupação de tutelar de forma mais efetiva e integral a proteção à vida de crianças e adolescentes, acabou por proibir, de modo geral, a relação sexual com menores de 14 anos.

3.1.1 Objeto jurídico

Para Guilherme de Souza Nucci, em sentido amplo, “o objeto jurídico é a liberdade sexual.”[38] Desse mesmo modo entende Luiz Regis Prado, acrescentando a intangibilidade sexual das pessoas vulneráreis, ou seja, os menores de 14 anos, aquelas que não têm capacidade de discernimento para consentir de forma válida o ato sexual, ou, ainda, aquelas que de algum modo não sejam capazes de oferecer resistência, o que inclui os enfermos e doentes mentais.[39]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Já para Rogério Greco, o objeto juridicamente tutelado, além da liberdade sexual, é também o desenvolvimento e a dignidade sexual.[40]

O mesmo autor afirma, ainda, que o artigo 217-A do Código Penal é contraditório a um direito fundamental inerente a todas as pessoas:

A lei, portanto, tutela o direito de liberdade que qualquer pessoa tem de dispor sobre o próprio corpo no que diz respeito aos atos sexuais. O estupro de vulnerável, atingindo a liberdade sexual, agride, simultaneamente, a dignidade do ser humano, presumivelmente incapaz de consentir para o ato, como também seu desenvolvimento sexual.[41]

Fernando Capez e Stela Prado, por sua vez, entendem que o objeto jurídico tutelado é tão somente a dignidade sexual do indivíduo vulnerável.[42]

Portanto, ainda que não se tenha um termo comum e específico que designe o bem jurídico do artigo 217-A, todos os autores se fundamentam de forma que o princípio da dignidade da pessoa humana seja preservado, no que tange à sua sexualidade.

3.1.2 Sujeito ativo e sujeito passivo

O sujeito ativo do delito pode ser tanto homem quanto mulher, desde que tenha completado a maioridade (18 anos).[43] Fernando Capez e Stela Prado complementam essa assertiva, considerando a mulher como possível sujeito ativo, pois, com as alterações apresentadas pela lei 12015/2009, o tipo penal, ou conduta típica do delito, não é somente a conjunção carnal (introdução do pênis na cavidade vaginal da mulher), mas também qualquer tipo de ato libidinoso[44], como o sexo oral, anal e a masturbação.

Rogério Greco esclarece que, para configurar conjunção carnal, é obrigatório que a relação seja heterossexual (homem e mulher), já, nos demais atos libidinosos, qualquer pessoa poderá figurar como sujeito ativo[45].

No que se refere ao sujeito passivo, este necessariamente deve ser o indivíduo menor de 14 anos (foco principal do presente trabalho), o enfermo ou doente mental, que não tenha o necessário discernimento para o consentimento do ato, ou aquele que, por qualquer outro motivo, não possa oferecer resistência, configurando situações em que se verifica legalmente a vulnerabilidade da vítima[46], o que está expressamente descrito no artigo 217-A, caput e seu parágrafo primeiro.

Luiz Regis Prado caracteriza, ainda, o sujeito passivo “como vulnerável quando é ou está mais suscetível à ação de quem pretende intervir em sua liberdade sexual, de modo a lesioná-la”.[47]

Desse modo, no que diz respeito à faixa etária, trata-se como sujeito passivo o menor de quatorze anos, qualquer que seja o sexo, feminino ou masculino.

3.1.3 Elemento objetivo e subjetivo

Configura-se elemento objetivo a conduta vedada de manter relação sexual com qualquer indivíduo citado no tipo penal.[48]

Luiz Regis Prado complementa tal afirmação quando afirma que o elemento objetivo se dá em “ter conjunção carnal (penetração do pênis na vagina) ou praticar outro ato libidinoso (sexo oral, anal, introduzir dedo, ou qualquer ato de cunho sexual por parte do sujeito ativo) com menor de 14 (catorze) anos”.[49]

Após o advento da lei 12.015/2009, quando foi afastada a presunção de violência, conforme Victor Eduardo Rios Gonçalves, independentemente de o menor ter uma vida sexual ativa ou ter consentido o ato, a pessoa que, ciente da idade do menor, manter relação sexual com este irá responder pelo crime.[50] O mesmo autor afirma, ainda, que o crime independe de emprego de violência ou grave ameaça, por isso, mesmo que o menor tenha consentido o ato, há o crime, pois o consentimento não é válido.[51]

O elemento subjetivo do crime de estupro de vulnerável é o dolo, desde que o agente tenha conhecimento da idade ou de alguma das características descritas no tipo penal que tornem o indivíduo vulnerável. Contudo, se o agente desconhecia a condição de vulnerabilidade do sujeito passivo, é afastado o dolo e também a tipicidade do fato, alegando erro de tipo. Não sendo admitida a modalidade culposa.[52]

Para Fernando Capez e Stela Prado, o elemento subjetivo “é o dolo, consubstanciado na vontade de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com o indivíduo [...] sendo suficiente a vontade de submeter a vítima à pratica de relações sexuais”.[53]

Posta assim a questão, observa-se a não possibilidade de modalidade culposa do crime, descrita no artigo 217-A do Código Penal, no qual somente é admitida a modalidade dolosa, seguida da objetividade de ter qualquer prática de cunho sexual com o ofendido e excluída apenas quando houver comprovado o não conhecimento da idade da vítima e, assim, afastada a sua tipicidade.

3.1.4 Consumação e tentativa

A consumação do crime de estupro de vulnerável ocorre com a conjunção carnal (introdução do pênis na cavidade vaginal), total ou parcial, ou se concretizado o ato libidinoso diverso de conjunção carnal planejado pelo agente,[54] ainda que não haja ejaculação por parte do sujeito ativo.[55]

Por se tratar de um crime plurissubsistente (em que, em uma mesma conduta, são possíveis vários atos), é possível tanto a forma tentada[56] quanto a consumada.

A tentativa é admissível, uma vez que, por situações alheias à vontade do agente, não seja possível consumar o ato.[57] Luiz Regis Prado classifica como tentativa “quando o agente, apesar de desenvolver atos inequívocos tendentes ao estupro, não consegue atingir a meta optata, por circunstâncias alheias à sua vontade”.[58]

Para Guilherme de Souza Nucci, a tentativa, embora admissível, tem difícil comprovação.[59]

Em suma, por se tratar de um crime decorrente de diversos tipos de conduta, que ocorrem juntas ou separadas, admite-se sua consumação total ou parcial e, embora seja de difícil comprovação, é admitido também na sua forma tentada.

3.1.5 Formas qualificadas

Os parágrafos 3º e 4º, do artigo 217-A do Código Penal, apresentam as formas qualificadas do delito, tendo como penas imputadas: a reclusão, de dez a vinte anos, no caso de lesão corporal grave, e, de doze a trinta anos, se levar à vítima a óbito.[60]

Os resultados qualificadores do crime só podem ser imputados ao agente na forma culposa.[61] Isso porque são unicamente preterdolosos, ou seja, só se configuram se, em relação ao estupro, houver dolo e culpa no caso de lesão grave ou morte.[62] Sendo assim “há dolo na conduta antecedente e culpa na consequente”.[63] No caso de o agente ter a intenção (dolo) de praticar o estupro (conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso), mas não a intenção (culpa) de causar grave lesão ou morte.[64]

Contudo, se o sujeito ativo atuou com consciência e vontade (dolo direto) ou assumiu o risco (dolo eventual) de atingir o resultado qualificador, ele responderá pelo crime de estupro de vulnerável em sua modalidade simples, em concurso material com a forma qualificada alcançada.[65]

Desse modo, como o estupro de vulneráveis se dá somente na modalidade dolosa, o resultado que venha a ter, lesão grave ou morte, dar-se-á na modalidade culposa, quando não alcançado intencionalmente. Todavia, quando premeditado, o acusado responderá pelo crime dolosamente, em sua forma simples, em concurso com a qualificadora resultante da conduta.

3.1.6 Pena e ação penal

A pena de reclusão, prevista no caput do artigo 217-A do Código Penal, é de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Se resultar dessa conduta lesão grave, a reclusão é de 10 (dez) a 20 (vinte) anos e, caso resulte em morte, a reclusão é de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.[66]

O Código Penal apresenta causas de aumento de pena, já apreciadas no caso de estupro simples, a serem aplicadas no estupro de vulnerável[67], que estão descritas nos artigos 226 e 234-A:

Aumento de pena:

Art. 226. A pena é aumentada: (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005) 

I - de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)

II - de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela; (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)

Aumento de pena: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Art. 234-A.  Nos crimes previstos neste Título a pena é aumentada:            

I – (VETADO); (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

II – (VETADO); (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

III - de metade, se do crime resultar gravidez; e (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

IV - de um sexto até a metade, se o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)[68]                                        

Há também casos em que o crime inclui mais de uma modalidade de aumento ou diminuição da pena, nessas circunstâncias o juiz valer-se-á da regra aplicada no parágrafo único, artigo 68, do Código Penal[69]:

                             Cálculo da pena

Parágrafo único - No concurso de causas de aumento ou de diminuição previstas na parte especial, pode o juiz limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, a causa que mais aumente ou diminua. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).[70]

No que tange à ação penal, ela está descrita no parágrafo único, artigo 225, do Código Penal:

Art. 225.  Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.  (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

Parágrafo único.  Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.  (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)[71]

A ação penal sempre será pública incondicionada[72], devido à condição de vulnerabilidade da vítima.[73]Ou seja, ainda que existam entendimentos em doutrinas e julgados que questionem a vulnerabilidade da vítima, esta é de ação penal incondicionada à representação.

3.1.7 Considerações finais sobre a tipicidade de crime

O estupro de vulnerável, tanto em sua forma simples quanto na qualificada, é considerado crime hediondo e não é passível de fiança, anistia, graça e indulto,[74] conforme dispõe o artigo 1º, inciso VI, da lei 8.072/90[75]:

Art. 1o São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: (Redação dada pela Lei nº 8.930, de 1994) (Vide Lei nº 7.210, de 1984)

VI - estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1o, 2o, 3o e 4o); (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009).[76]

Ademais, os processos que versem sobre esse tipo de infração penal (crimes contra a dignidade sexual) deverão correr em segredo de justiça, de acordo com o disposto no artigo 234-B, do Código Penal[77], qual seja: “Art. 234-B.  Os processos em que se apuram crimes definidos nesse Título correrão em segredo de justiça. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)”.[78] 

Sendo assim, toda conduta que se enquadre no disposto do artigo 217-A, caput e parágrafos do Código Penal, é considerada crime hediondo, correrá em segredo de justiça e não terá o benefício da fiança ou outros tipos de benefícios.

Sobre os autores
Carlos Eduardo Pires Gonçalves

Graduado em Direito pela Universidade Paranaense (2004). Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Penal pela Unp - Universidade Potiguar. Professor das disciplinas de Processo Penal II, Direito Penal III e IV, e Prática Processual Penal I e II no curso de Graduação em Direito da Unifamma. Leciona em diversos cursos de pós-graduação na área criminal.

Anielle Sabino da Costa

Graduada em Direito pela FAMMA - Faculdade Metropolitana de Maringá

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!