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Entre a supremacia judicial e a soberania popular: uma luz na discussão

Agenda 09/09/2019 às 18:58

O artigo discorre sobre as possibilidades e os limites para o exercício do controle judicial de constitucionalidade, defendendo opções que promovam diálogos institucionais e sociais permanentes e retirem do STF o monopólio da interpretação constitucional.

Até a primeira metade do século XX, boa parte dos Estados nacionais rechaçava o controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário. No geral, a jurisdição constitucional era considerada extremamente antidemocrática e, especialmente na Europa, contrária à noção predominante de supremacia do parlamento. Mesmo países como o Brasil, que previu o modelo difuso desde a primeira Constituição republicana em 1891, não concediam especial destaque a essa técnica no ordenamento jurídico. Após as atrocidades cometidas na Segunda Grande Guerra sob a égide de governos totalitários que contaram com amplo apoio popular, é que se consolidou a necessidade da criação de sistemas jurídicos aptos a garantir a proteção de minorias contra as maiorias de ocasião. Tais construções político-institucionais deveriam privilegiar tanto o ideal democrático como a proteção de direitos fundamentais, o que favoreceu a criação de órgãos judiciais com a competência para declarar a inconstitucionalidade de leis.

O processo relatado também apresentou outras facetas, como a progressiva centralidade que as cartas constitucionais adquiriram nos sistemas jurídicos, passando a contar com força normativa própria e com princípios que irradiam sua influência por todo o ordenamento. De todo modo, esse desencadeamento histórico disseminou, na maioria das estruturas jurídicas atuais, um modelo que conjuga duas formulações em constante colisão: o constitucionalismo, movimento de limitação do poder estatal e determinação de direitos individuais, nascido com as revoluções liberais francesa e americana no século XVIII; e a democracia, regime de tomada de decisões pelas maiorias numéricas, desenvolvido na Grécia Antiga e fortalecido no início do século XX, com a extensão do direito de participação política às mulheres e às classes sociais menos favorecidas.

Tal modelo, conhecido como constitucionalismo democrático, possui tensões intrínsecas ao seu funcionamento. Se cabe ao parlamento, por maioria, deliberar sobre as questões essenciais da nação, lhe é defeso legislar em dissonância com a Constituição e com os direitos das minorias. Assim, em algumas situações, abre-se a possibilidade de uma corte não submetida ao escrutínio das urnas invalidar leis editadas e sancionadas pelos poderes políticos por excelência, nesta ordem, o Legislativo e o Executivo.

Essa conjuntura acarreta a denominada “dificuldade contramajoritária”, fundamento principal das posições doutrinárias que ainda rejeitam1 o controle judicial de constitucionalidade, especialmente no cenário americano, onde inexiste permissão constitucional expressa para a prática. Todavia, não se pode ignorar que esse mecanismo é hoje adotado na maioria absoluta dos países democráticos. Mesmo o Canadá e o Reino Unido, historicamente avessos ao instituto, admitem atualmente variações do chamado “controle fraco de constitucionalidade”.

No Canadá, as decisões da Suprema Corte sobre a inconstitucionalidade de leis geram efeitos imediatos, mas são superáveis por eventual maioria legislativa ordinária, dessa vez vinculando o Poder Judiciário. Já no Reino Unido, as decisões de incompatibilidade com o Human Rights Act dependem da aprovação do Parlamento para tornarem-se efetivas, mas, devido à respeitabilidade da incipiente Suprema Corte perante a opinião pública, essas confirmações têm ocorrido.

Por todo o exposto, defendo que o cerne sobre a discussão acerca do judicial review, especialmente no contexto brasileiro, não é mais a sua viabilidade – prevista pelo constituinte originário de 1988 – mas como essa prerrogativa deve ser exercida e quais são os seus limites. É o que passo a perquirir.

Esse artigo contém dois objetivos principais: primeiro, tenciono demonstrar que a ideia de supremacia do Poder Judiciário não se coaduna com a ordem constitucional vigente, apesar da imprescindibilidade do judicial review para a sua efetiva proteção; segundo, apresento alguns “standards” para o exercício da jurisdição constitucional pela Corte Suprema, defendendo opções que propiciem diálogos institucionais e sociais permanentes. De antemão, adianto que a premissa básica para a discussão aqui colocada é o respeito absoluto à Constituição da República. Logo, como se verá mais adiante, práticas judiciais contrárias a essa concepção inicial devem ser veementemente combatidas.

Como é cediço, difundiu-se no direito pátrio a compreensão de que haveria uma supremacia judicial na interpretação da Carta Política, em virtude de o art. 102, caput, da Lei Fundamental atribuir ao STF o status de guardião das suas normas. Contudo, embora o Supremo – por razões de segurança jurídica – detenha a prerrogativa de decidir por último nos casos específicos sob sua jurisdição, suas deliberações não necessariamente encerram a discussão constitucional e tampouco dispõem de legitimidade per se. Com efeito, a única supremacia admitida no Estado Democrático de Direito é a da Constituição, que obriga igualmente a todos os Poderes da República e aos cidadãos.

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A respeito do caráter não definitivo das manifestações do STF na interpretação constitucional, vale relembrar que os julgamentos proferidos nas ações de controle abstrato – ADI, ADC, ADO e ADPF – jamais vinculam o Poder Legislativo, contra o qual a autoridade dessas manifestações perde seu caráter erga omnes (art. 102, § 2°). Assim, afigura-se juridicamente possível ao Congresso Nacional editar leis com conteúdo idêntico ou semelhante a outros diplomas já reconhecidos inconstitucionais pelo Supremo. Tais normas gozam de presunção de constitucionalidade como quaisquer outras, devendo eventual apreciação judicial de sua validade considerar as possíveis mudanças fáticas e jurídicas ocorridas desde o julgamento anterior.

Ademais, a resposta legislativa pode vir igualmente através de mudanças no texto constitucional, situação em que o próprio parâmetro de controle é alterado pela maioria qualificada exigida à sua modificação (3/5 dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em dois turnos de votação). Embora o Supremo reconheça-se competente para extirpar do ordenamento jurídico emendas à Constituição tendentes a abolir as cláusulas pétreas dispostas na Carta Magna, a análise judicial de quais normas estariam contidas no rol do art. 60, § 4, da CF reclama uma interpretação restritiva – ou pelo menos literal – de modo a evitar um engessamento constitucional capaz de subtrair das gerações posteriores ao Constituinte Originário a mínima capacidade de autodeterminação. A valer, as duas hipóteses referidas inserem-se na ampla liberdade de conformação conferida ao Poder Legislativo, cuja função típica de legislar engloba a eventual superação das decisões proferidas no judicial review.

Por outro lado, as deliberações do STF não possuem legitimidade per se. É dizer: conquanto haja permissão formal expressa para a Corte Máxima pronunciar-se sobre qualquer embate constitucional que lhe seja processualmente submetido, as suas decisões apenas revelam-se legítimas quando comprovam, com argumentação devidamente fundamentada, a(s) incompatibilidade(s) existente(s) entre a norma questionada e a Constituição. Deveras, em estados democráticos há discussões controversas que geram desacordos morais razoáveis: duas pessoas de boa-fé podem divergir razoavelmente acerca de assuntos como a permissão da eutanásia, a legalização da maconha ou a liberação dos jogos de azar. Tais temas têm em comum a ausência de disciplina própria na nossa Constituição. Nesses casos, permitir que seis ministros desafiem a política majoritária consubstanciada em lei, utilizando-se de princípios com pouca densidade normativa como o da proporcionalidade, ou cuja abrangência prima facie seja demasiadamente ampla como o da dignidade da pessoa humana, soa profundamente ilegítimo. Tamanha liberdade esvaziaria a esfera de atuação do Parlamento, desestimulando o papel cívico de reivindicação perante os mandatários da República. E aqui não cabe invocar a função contramajoritária do STF, que jamais pode ser desempenhada para substituir o espaço da política diante de duas opções constitucionalmente permitidas.

Há ainda determinados assuntos sobre os quais o Judiciário, pela sua própria natureza, carece de conhecimentos específicos para enfrentar. Presume-se que ministros da Suprema Corte possuam notável saber jurídico, mas não lhe são exigidas, por exemplo, compreensões aprofundadas sobre a regulação da economia ou do setor de aviação civil. Para disciplinar esses temas, há instituições com maior expertise, como o Banco Central do Brasil e as agências reguladoras. Por isso é que, ao exercer a jurisdição constitucional nos casos que demandem conhecimento técnico, o STF deve considerar a questão das capacidades institucionais, aqui entendida como as “distintas habilidades e limitações”2 conferidas a cada ente na sua atuação prática, inclusive ao próprio Tribunal. Deste modo, longe de centralizar a discussão, ao Supremo incumbe trazer as instituições especializas para o debate e, salvo ameaças cabais à ordem constitucional, priorizar posturas de autocontenção judicial.

Por fim, destaco um argumento de ordem prática contra o mencionado conceito de supremacia judicial: enquanto o Parlamento realiza reformas completas nas diversas legislações, procedendo ao exame global dos diferentes âmbitos discutidos, as decisões das cortes constitucionais possuem maior propensão a gerar incongruências normativas, porquanto esses órgãos dispõem de faculdades limitadas de ação, tais como a pontualidade das suas intervenções e a vinculação objetiva ao pedido. Essa tendência se potencializa na Suprema Corte brasileira, cujo modelo de julgamento “seriatim”, composto pela sobreposição dos votos individuais de cada membro do colegiado, não raro produz resultados ambíguos. Todos esses fatores elencados contribuem para a propagação de efeitos sistêmicos indesejados resultantes das deliberações do Supremo. Veja-se o julgamento das ADIs 1351 e 1354, onde ao declarar a inconstitucionalidade de artigos da Lei dos Partidos Políticos (9096/95) sob o pretexto de garantir a isonomia partidária, o Tribunal provocou consequências nocivas ao sistema eleitoral.

A controvérsia, julgada em 2007, cingiu-se sobre dispositivos que instituíram uma cláusula de barreira, restringindo o acesso ao fundo partidário e ao direito de antena (rádio e TV) àqueles partidos políticos que conquistassem determinado percentual de voto nas eleições proporcionais. Essa decisão, entretanto, conjugada com outras duas do próprio Tribunal (inexigência de fidelidade partidária para migração a legendas recém-criadas e “portabilidade de votos”), estimulou a proliferação de partidos sem representatividade, favorecendo sua utilização por grandes agremiações como “legendas de aluguel”. Assim, em vez de promover a participação partidária, incitou-se o seu desvirtuamento em prol de interesses ilegítimos, prejudicando o regular funcionamento da democracia. Registra-se, a propósito, que no final de 2017 o Congresso Nacional promulgou a EC/97, superando a decisão proferida pelo Supremo e instituindo novamente uma cláusula de desempenho, agora com previsão constitucional (embora com regras menos rigorosas que a anterior).

Aqui impõe-se um esclarecimento: todas as razões expostas não objetivam desqualificar a atuação da Corte Máxima, mas demonstrar que o exercício da jurisdição constitucional de maneira monopolizada suscita diversas disfunções. Assim, deve-se preferir soluções conjuntas que abarquem as diversas instituições e o povo, destinatário final dos comandos impostos pela Constituição. No que se refere a este último, importa democratizar as vias de acesso ao processo objetivo de controle. Nesse quesito, a não admissão de amicus curiae, pelo ministro Relator, apenas por vislumbrar uma divergência de posição sobre a questão de fundo é digna de censura, por impedir a pluralização do debate. Há de se revisar, também, as limitações jurisprudenciais quanto aos legitimados ativos para a propositura das ações constitucionais, como a exigência de que as entidades de classe pertençam a categorias econômicas ou profissionais, excluindo do debate setores importantes da sociedade civil organizada. Já em relação às legislações aprovadas com a participação do povo, como as que decorrem de referendo e plebiscito, ou ainda as oriundas de iniciativa popular e das comissões de participação legislativas, entendo que o Supremo dispõe de um ônus argumentativo maior na análise de possíveis inconstitucionalidades, em virtude de sua redobrada legitimidade democrática.

Impende ainda alertar para decisões judiciais expressamente contrárias à Carta Magna. É preocupante a narrativa – já adotada na ADI 3.4703 (que trata da comercialização do amianto) – de que o artigo 52, X, da CF sofreu mutação constitucional e o Senado Federal passa a ser responsável apenas por tornar públicas as decisões do Supremo no controle difuso. O problema, esclareço, não reside no mérito da questão debatida, mas na possibilidade de uma instituição concebida pela própria Constituição decidir em desacordo com seu conteúdo expresso. Também injustificada é a superveniência, em sede de controle abstrato, de decisões manipulativas que adicionam palavras ou modificam expressamente dispositivos legais. Agindo assim, o STF atua como legislador positivo fora da única via constitucionalmente adequada para tanto: a edição de súmulas vinculantes por decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional (art. 103-A).

Além de todo o exposto, apresento um “standard” geral para o exercício do judicial review pelo STF. John Hart Ely, na sua obra “Democracy and Distrust”4, atribui à Suprema Corte a tarefa de desobstruir os canais de participação política, agindo para aperfeiçoar o processo de tomada de decisões democráticas pelos órgãos competentes. Considerando que a nossa Lei Fundamental é analítica e apresenta diversos enunciados com textura aberta e sem delimitação semântica, advogo que na falta de violação categórica ao texto constitucional, a atuação geral do STF deve, como sustenta o citado doutrinador, respaldar as escolhas dos órgãos politicamente responsáveis quando realizadas através dos procedimentos apropriados. Na minha concepção, portanto, essa função desobstrutiva envolveria o combate às inconstitucionalidades formais na elaboração das leis e também a promoção da regularidade do jogo político no seu aspecto qualitativo. Como exemplo de uma atuação nesse sentido, temos o estabelecimento dos ritos do processo de impeachment contra o Presidente da República (ADPF 378), sem o Supremo adentrar no mérito da acusação posta.

Oportuno, aqui, fazer uma advertência final. Os standards propostos não devem ser confundidos com a defesa de um comportamento do STF limitado a visões procedimentais. Com efeito, nos casos que envolvam direitos fundamentais, proteção de minorias e o resguardo das normas elementares de organização política, estaria o Tribunal legitimado a agir substancialmente com um maior grau de autonomia interpretativa. Essas três hipóteses sintetizam os valores estruturantes do contexto histórico que inaugura a ordem constitucional e, portanto, ensejam uma atuação mais proativa da Corte. Com efeito, o desempenho do Supremo nessas áreas vem gerando bons resultados, tais como o reconhecimento da união estável homoafetiva, a permissão de biografias não autorizadas e a legitimação das ações afirmativas.

É preciso, assim, separar o joio do trigo em matéria constitucional, conciliando uma eficaz proteção de direitos com a necessária abertura à construção coletiva do melhor sentido das normas constitucionais. Assim, na ausência de inconstitucionalidades flagrantes ou de alguma das três hipóteses supracitadas, o Supremo deve priorizar uma postura mais deferente aos poderes eleitos, que também interpretam autenticamente o texto constitucional e, ademais, gozam da soberania popular conferida aos seus representantes. É natural que, em contextos institucionais marcados pela corrupção generalizada e pelo alto índice de rejeição dos parlamentares, a jurisdição constitucional surja como alternativa moralizadora para a alteração dos locus tradicionais de decisão. Não se pode olvidar, todavia, que a cúpula do Judiciário é fruto desse mesmo sistema político e, em maior ou menor grau, também está sujeita às suas ingerências. Ainda há muito a ser conquistado e o Poder Judiciário não pode ser o único farol a “iluminar” nosso trajeto civilizatório.


Notas

1 https://www.humanities.mcmaster.ca/~walucho/3Q3/Waldron.Core%20Case%20Judicial%20Review%20Yale%20LJ.pdf

2 https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com.br/&httpsredir=1&article=12319&context=journal_articles

3 http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoInformativoTema/anexo/Informativomensalnovembro2017.pdf

4 ELY, John Hart. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Cambridge and London: Harvard University Press, 1980.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GEORGE, Matheus. Entre a supremacia judicial e a soberania popular: uma luz na discussão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5913, 9 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65353. Acesso em: 22 dez. 2024.

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