3. A Ambiência do Trabalho Policial
O estudo do ambiente de trabalho e do próprio policial é importante para fazer ver que a Polícia é formada por pessoas vindas da população. Elas não são alienígenas, não tem poderes anormais e nem tão pouco o dom da infalibilidade. Em razão disso, por trás de um distintivo ou de uma farda estão indivíduos comuns, cujo diferencial reside na pré-disposição de proteger a sociedade, da qual eles próprios provém.
De um modo geral, o policial trabalha em condições precárias de segurança, cumprindo horários irregulares, estando sujeito a plantões noturnos e chamados a qualquer hora. Algumas instituições classificam essas situações sob o nome de “Regime Especial de Trabalho Policial”, onde existe constante risco a vida e contínuo desgaste físico e emocional.
Por si só, essas adversidades influenciam no modo de agir do ser humano, afinal elas atuam negativamente sobre ele. Dessa forma, podemos considerar que o cenário de atuação do profissional de segurança pública é atípico, pois enquanto a grata parcela da sociedade dorme ou se socializa, ele, policial, continua atento para refrear abusos e reprimir condutas ilícitas, sob as piores e mais adversas conjunturas imagináveis.
O trabalho policial é tudo, menos estável. Diz-se que nele “se espera o inesperado”, e isso é verdade, afinal, em instantes, um ambiente aparentemente tranquilo se altera e vira palco de confronto, onde a calma e o foco não devem ser perdidos. Isso é um exemplo claro de ambiente com segurança precária, em que o risco a saúde física e psicológica são a regra.
Não se conhece, não hoje, órgão mais fiscalizado do que o da segurança pública de um Estado. E nem mais transparente, afinal o momento atual preza pelo acesso quase que absoluto ao trabalho que é nele realizado. Mas o que muitos parecem não entender é que a Polícia é um serviço público sui generis, com o escopo de limitar e disciplinar ações, interesses e liberdades, algo que por si só não soa agradável. Assim, pode-se imaginar o quão difícil é a tarefa daquele que, para manter a ordem, toma decisões tidas como “antipáticas” diuturnamente.
Assim, com relação à “pessoa” do policial, temos que:
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A sua atividade é pautada pelo stress e pelo cansaço, o que influencia no seu sistema nervoso;
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Os seus turnos de trabalho são agressivos para a saúde, o que influencia no seu ritmo biológico;
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O seu reconhecimento profissional costuma ser parco, o que influencia na sua autoestima;
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Os seus atos de ofício são encarados com rigor potencializado, o que influencia no seu temor reverencial em agir;
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Os organismos sociais o enxergam com preconceito e desconfiança, o que influencia na sua segurança funcional e jurídica;
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O seu papel disciplinador o faz alvo de acintes e provocações, o que influencia no seu controle emocional;
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E a sua natureza é humana, o que influencia na sua falibilidade.
Isso parece não ter importância, mas deve pesar na avaliação de conduta de um policial, principalmente para compreendermos os motivos que o tornam falível. A partir do instante que admitimos isso, passamos a encarar o policial como pessoa e, ao invés de julgá-lo de forma cega e concisa, começamos também entendê-lo enquanto “ser”.
4. A Tomada de Decisões
As decisões da autoridade policial, a saber, são as seguintes: a) decisões convencionais; b) decisões não convencionais e c) decisões de campo.
As primeiras são aquelas de natureza corriqueira, geralmente programadas, as quais solucionam problemas de rotina, procedimentos e hábitos. Exemplos temos os registros policiais comuns, os quais não envolvem demasiada operação lógica para a lavratura.
As segundas são aqueles que envolvem mérito, são feitas sob medida para casos não rotineiros e não programados, como as que envolvem a privação ou não da liberdade de uma pessoa.
E as terceiras são aquelas adotadas em âmbito operacional, usualmente em milésimos de segundo, geralmente em abordagens e confrontos armados.
Para decidir, a autoridade policial deve deter preparo intelectual e ferramentas de pesquisa, a fim de, com estas, dar base e fundamento ao que será posto em prática. Nisso é importante aquilo que chamamos de pré-confrontação, onde o Delegado diligente costuma antever situações atípicas e elabora soluções de antemão, facilitando, assim, a criação de uma memória muscular que o fará seguir etapas que o ajudarão a melhor decidir num caso real. Isso decorre dos estudos de caso e do preparo de despachos e fundamentações, os quais serão de suma utilidade num momento de tensão, onde o ganho de tempo é primordial.
Quando tomamos uma decisão, é importante considerarmos que ela afetará não apenas o tomador, mas também a Instituição e a pessoa implicada. Se tomada de maneira impensada, uma decisão acarretará um impacto negativo para o ente público, que será alvo de críticas gerais, desconsiderando-se a pessoa do tomador. Em contrapartida, uma decisão sensata traz um viés positivo ao órgão público como um todo, valorizando não apenas o profissional, mas o ente abstrato de forma geral.
Sob pressão, regra na Polícia, devemos limpar a mente dos problemas pessoais; apostar no autoconhecimento; abusar do bom senso e da experiência e principalmente analisar os prós e os contras, projetando-os sempre para o futuro. Uma pré-visualização nos ajuda a avaliar impactos, facilitando em muito a tomada da decisão.
O Delegado de Polícia carrega consigo uma responsabilidade não apenas social, mas, sobretudo, funcional. Diante disso, não pode olvidar dos crimes contra a administração – tal qual a prevaricação –, bem como, o abuso de autoridade, que sempre rodeiam a sua vida profissional. Nesses casos é bom sempre ter em mente que ambos são dolosos, não admitem a forma culposa e, por conta disso, se despidos de desídia ou má-fé, jamais poderão ser invocados para prejudicar a autoridade policial.
A decisão também atinge a pessoa implicada, bem como a reputação, a liberdade e a vida da mesma, exigindo-se, assim, imensa cautela por parte do tomador, o qual deve adotar um planejamento apropriado que envolva o uso da lógica, a coleta de provas e indícios, a análise de possibilidade (de modo a diminuir a chance de erro), os prós e contras e a inteligência emocional. Ou seja, o problema deve ser observado sobre diversos pontos de vista, que não apenas o da autoridade policial. Isso ajuda a criação de barreiras de defesa para a decisão, de modo a torná-la minimamente instransponível.
Para as decisões não convencionais, é muito importante que o Delegado de Polícia observe quatro pontos distintos, quais sejam, a formalidade, a serenidade, a firmeza e a equidistância. Mantendo essa base, a segurança será aliada da autoridade policial, ceifando eventuais percalços que porventura possam surgir. A formalidade decorre do próprio exercício do cargo, com o uso da linguagem adequada e apropriada a preservar o cargo. A serenidade tem a ver com a linguagem corporal tranquila, de modo a passar a imagem da segurança e do domínio da situação. A firmeza é necessária para manter a situação sob controle, de modo a refrear comportamentos impertinentes e divorciados do cavalheirismo. E enfim a equidistância, primordial para que a autoridade policial tenha a imparcialidade necessária para agir num patamar superior e adequar a justiça num primeiro momento.
As pressões não são poucas. Elas podem vir da Polícia Militar, dos advogados, dos implicados, dos familiares dos implicados, da mídia e não raro, até mesmo superior. Destarte, o Delegado de Polícia, mormente o em noviciado, deve sempre pautar-se pelos quatro princípios acima descritos, jamais deixando-se virar parte na ocorrência, preservando pela distância necessária que o torne apto a decidir com segurança, tomando, na sequencia, todas as medidas cabíveis contra aqueles que, de qualquer forma, obstruíram a ação regular da polícia judiciária.
Enfim, dentre as indagações que o Delegado de Polícia deve fazer a si mesmo diante de uma ocorrência envolvendo pessoa detida, temos as seguintes: a) essa pessoa pode ser presa? b) eu posso deixar de prendê-la? c) o fato delituoso está demonstrado? d) o nexo causal que justifique a ação/omissão delituosa está presente (autoria)? e) o nexo causal que exclua a infração ou afaste a responsabilidade do agente está presente (dirimente)? f) existe a “fundada suspeita” que legitime a recolha a prisão? Em conseguindo responder essas indagações de maneira segura, a autoridade praticamente elimina as chances de erro, pois criou aquela pré-confrontação necessária para rebater eventuais críticas a sua decisão.
Pois vem, vejamos agora, com um pouco mais de detalhes, como agir numa ocorrência comum e como agir numa ocorrência envolvendo pessoa presa.
5. Atendimento de Ocorrências Policiais Ordinárias
Ocorrências ordinárias são aquelas que envolvem situações convencionais. Nelas vigora a técnica da relação humana para o atendimento ao público. Aliás, atendimento e orientação – sem necessariamente haver o registro – são sinônimos nesses casos, pois em nada se confundem com a recusa de atendimento.
Para tanto, devemos levar em conta o trinômio “interação”, “análise” e “providência”.
A interação é o primeiro momento, o qual costuma ser crítico. Caracteriza-se pelo contato social em que o interessado busca o serviço público e ainda não tem ideia do que vai ocorrer e de como será o seu atendimento. Nesse instante é necessário que o agente policial, de forma cortes e solidária, esteja preparado para romper a barreira negativa por vezes existente. A oferta de ajuda deve ser o primeiro mote, até para que a parte sinta-se a vontade para reportar a sua demanda. Nessa fase devem ser colhidas todas as informações e documentos necessários para a futura análise, a qual demandará ou não uma providência formal.
Tão logo tenha os dados básicos em mãos, passasse para a fase da análise, isto é, do mérito do problema. O cidadão, por vezes, desconhece se o comportamento narrado é caso ou não de boletim de ocorrência e, nesse instante, cabe um exame pormenorizado do problema sob o ponto de vista do Direito Penal, a fim de que seja verificada qual a providência adequada para a solução. Com a conclusão alcançada, parte-se para a última fase, que é a providência.
A providência consiste na orientação propriamente dita, isto é, no registro do boletim de ocorrência ou no encaminhamento a seara adequada, criando-se um vínculo entre a parte e o Estado-Administração.
Dito isso, basta incutirmos em mente que, num atendimento comum, três etapas devem ser exauridas. Se fizermos isso, justificada estará a ação da Polícia e legitimada estará a providência a rigor adotada.
5. Atendimento de Ocorrências Policiais Extraordinárias (Pessoa Detida)
A cadeia de decisão em ocorrências envolvendo pessoas presas é bem mais complexa. São cinco fases distintas, mas que ao fim se completam. São elas a “colheita de dados”, a “análise de dados”, a “seleção de opções”, o “planejamento da medida” e a “execução da decisão”.
Na colheita de dados é feita a aferição preliminar dos pormenores da notícia. O objetivo é apurar circunstâncias, materialidade e autoria. A autoridade policial faz uma pré-análise geral da notícia e verifica o local onde se deu a captura. Após, executa uma entrevista prévia com o condutor, com a vítima, com as testemunhas e com o conduzido, fazendo também um exame visual no mesmo, a fim de verificar o seu estado físico. São feitas pesquisas criminais – para se ter uma ideia da vida pregressa do conduzido – e, em sendo necessário, a autoridade vai ao local dos fatos, examinando imagens e gravações que possam ajudar na formação da convicção. Verifica se os fatos ao fim estão livres de dúvidas, formando, assim, uma espécie de banco de dados para a sua convicção. Até então o Delegado de Polícia não anunciou a sua decisão, o que apenas ocorrerá na fase final da operação, dada a possibilidade do surgimento de fatos novos. É importante frisarmos que, até exarar o desfecho ao caso, a prisão-captura não foi ratificada e, em razão disso, a custódia do conduzido não impende a autoridade policial, mas sim aos condutores da ocorrência. No Estado de São Paulo, tal providência é disciplinada pela Recomendação DGP-1/05, de obrigatório conhecimento por quem atua nos plantões policiais.
Feito isso, a autoridade policial passa para a segunda fase, que é de análise dos dados recolhidos, onde é feita a interpretação técnico-jurídica. É aí que o Delegado de Polícia verificará se é caso de flagrante (próprio, impróprio, ficto ou presumido), se o crime é “possível”, se houve espontaneidade na apresentação, se houveram excludentes, descriminantes ou erro justificável, se o fato é “significante” e se o contexto probatório é idôneo. É nesse momento que surge a convicção.
Na fase seguinte, o Delegado de Polícia seleciona as opções hábeis a formalizar a convicção. É então que será decidido pela lavratura do auto constritivo, por um termo circunstanciado ou pelo mero registro dos fatos em boletim de ocorrência. Nesse instante a autoridade ainda não divulgou sua decisão, a qual ainda está sendo formatada.
Optando, fundamentadamente, pela opção escolhida, a autoridade passa para a quarta fase, que é a de planejamento da medida, onde são elencadas as ações decorrentes da formalização, isto é, como será feito o boletim de ocorrência (sua escrituração), qual a capitulação correta e como os trabalhos serão divididos em caso de eventual flagrante.
Com tudo isso decidido e revisado, isto é, com os dados colhidos, conferidos e analisados e a opção escolhida e planejada, a autoridade policial, aí sim, irá exteriorizar publicamente a sua decisão, a qual deverá estar amadurecida e dotada de fundamentos técnicos e jurídicos que a tornem segura, afinal é nessa fase final em que irão ocorrer os questionamentos externos, exigindo do Delegado de Polícia um controle absoluto sobre o cenário. Nos casos de protestos e indignações, a autoridade deve ter a expertise de manter-se paciente, dando aos insurgentes a opção de questionarem a decisão na seara adequada e de forma escrita, a fim de não se tornar parte no átrio da Delegacia.
É muito importante que o Delegado de Polícia só exteriorize a sua decisão final após analisar todo o contexto e fazer as entrevistas preliminares, a fim de que passe segurança, firmeza e seriedade. A constante alteração decisória não é boa, pois fragiliza a insituição e desprestigia a autoridade investida ao Delegado.