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O poder decisório do delegado de polícia

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06/06/2018 às 09:15
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Para decidir, a autoridade policial deve deter preparo intelectual e ferramentas de pesquisa, a fim de dar base e fundamento ao que será posto em prática. Nisso é importante o que chamamos de pré-confrontação, pela qual se anteveem situações atípicas e se elaboram soluções de antemão.

1. Introdução

A Polícia é um órgão que, basicamente, tem a atribuição de impor limitações às liberdades individuais e coletivas, a fim de salvaguardar a ordem pública. A palavra tem origem no grego pólis, que significa “cidade”. Dela se derivou a expressão politeia, que alude a “ordem da cidade”, até finalmente chegar ao latim politia, cuja tradução a língua castelhana eclodiu no atual vocábulo “Polícia”.

Ela, Polícia, seria uma instituição sem utilidade se fosse instalada numa sociedade onde as pessoas fossem unanimemente perfeitas e respeitassem, de forma espontânea, a lei e as regras morais. Entretanto, essa sociedade imaginária não existe, afinal os seres humanos são dotados de vícios, defeitos e desvios, havendo a necessidade de que outros, representando o conglomerado coletivo e abstrato, mantenham a ordem, o acatamento as normas e a própria existência objetiva do Estado.

É uma entidade, portanto, que nasceu com a sociedade, um produto da cultura humana, com todas as suas virtudes e falhas, afinal é formada por homens. Não deve ser fraca nem abusiva, mas enérgica. Deve ser legalista e, acima de tudo, sensata. Aliás, as ações e decisões policiais devem ser galgadas na sensatez, isto é, no equilíbrio para legitimar a chamada disciplina jurídica, qual seja, a submissão de todos nós ao Direito.

Note-se que, nesse passo, a defesa do indivíduo deve ser social (coletiva), e não unicamente pessoal. Em razão disso são plenamente justificáveis certas restrições individuais, como a inspeção de identidade civil, a consulta sobre antecedentes criminais, a busca administrativa, a condução coercitiva, a retenção de curta duração, a interpelação sobre a estada em locais que inspirem desconfiança, a interdição cautelar de ambientes, dentre outras. Essas ações até poderiam ser questionadas diante de certos princípios constitucionais, mas por não serem arbitrárias – e sim discricionárias –, não são eivadas de ilegalidade, pois para a defesa geral requer o sacrifício de algumas liberdades. Isso é a consagração da máxima de que o interesse coletivo sempre prevalece sobre o individual, ou, melhor dizendo, não existem direitos irrevogavelmente adquiridos contra a ordem pública, já que a liberdade do cidadão é e sempre será relativa.

Embora alvo de críticas vindas de todas as plagas, não são poucos os órgãos estatais que tencionam subtrair-lhes as atribuições – mas sem a desagradável contrapartida das responsabilidades –, afinal não existe projeção maior do que a decorrente de uma ação policial, onde, de forma subliminar, coroa-se a vitória do bem sobre o mal. Ser policial, assim, exige sacrifícios pessoais que poucos possuem condições de arcar e, por conta disso, ele existe não apenas para assegurar a ordem, mas principalmente para evitar que o caos se instale. Respeito. É o que a Polícia impõe por nós. Respeito. É o que a Polícia deve merecer de nós.


2. O papel do Delegado de Polícia no Sistema Jurídico

2.1. Origens do cargo de Delegado de Polícia

Historicamente, o Delegado de Polícia surgiu entre nós com a edição do Regulamento n° 120, de 31 de janeiro de 1842, o qual ordenava a execução da parte policial e criminal da Lei n° 261, de 3 de dezembro de 1841. Essa norma foi a responsável pela criação – no município da Corte e em cada província–, da figura do Chefe de Polícia e dos seus respectivos delegados e subdelegados, nomeados pelo Imperador ou pelos Presidentes das regiões. Antes disso, dizem alguns doutrinadores que o vocábulo “delegado” – ainda sem a adjetivação “de polícia” –, já era empregado desde a época do alvará de 10 de maio de 1808, para designar a autoridade policial da Província que representava o titular da Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil, cujo primeiro dirigente foi o desembargado Paulo Fernandes Viana[1].

Mas qual o fundamento da expressão “Delegado” de Polícia? A polícia repressiva é produto da cultura humana, ou seja, ela é uma manifestação do Poder Público e da autoridade figurada do Estado. Mas em razão desse “poder” e dessa “autoridade” não poderem ser diretamente exercidos por um ente abstrato, ele, Estado, procede a uma espécie de delegação, a fim de que, em nome do interesse coletivo, um profissional previamente habilitado coordene as atividades persecutórias da Polícia. Em essência, vê-se que o poder desempenhado pelo Delegado de Polícia não lhe pertence por si só, pois dele tem apenas o exercício. Nestes termos, ele não executa suas funções por autoridade própria, mas sim como longa manus do Estado. Por isso emprega-se o termo “Delegado” de Polícia, ou seja, aquele que, representando parte da “polícia” inerente a estrutura organizacional do Estado-Administração – a Civil –, a personifica e a dirige.

2.2. Previsão constitucional

Desde 1988 a figura profissional do Delegado de Polícia passou a ter expressa previsão na Constituição Federal. Nos termos do art. 144, parágrafo 4º, “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”.

Note-se a Constituição fala em “delegados de polícia de carreira”[2], isto é, no bacharel em Direito possuidor de regular formação técnico-profissional auferida em Escola de Polícia, após regular aprovação em concurso público[3]. Ou seja, ele zela pela segurança pública e pelos direitos fundamentais e, por exercer as suas funções de forma diuturna, assume, de forma imparcial, papel de primeiro garantidor da legalidade e da justiça, conforme bem disse o ministro do STF Celso de Mello ao proferir voto no habeas corpus n° 84548/SP.

Ao aludir ao profissional de carreira, a Constituição Federal está fazendo referência ao concursado e bacharel em Direito. Mas qual a necessidade de termos um profissional de Polícia com diploma de ciências jurídicas? A resposta é bem simples. Por lidar com direitos e garantias individuais – seja no dia a dia ou à frente dos inquéritos e investigações –, o Delegado de Polícia deve obrigatoriamente operar a lei, afinal, hoje, o investigado é um sujeito dotados de direitos e deveres. Conquanto os agentes[4] executem relevantes ações de campo, todas elas irão gerar efeitos jurídicos para os implicados e, nesse passo, urge a necessidade do expert em leis a frente dela, a fim de que sejam protegidos os bens jurídicos, apuradas as práticas conforme o sistema processual e preservado o suspeito de eventuais abusos.

Muitas ações de investigação tem regras processuais penais específicas e, conquanto algumas vozes se levantem em contrário, os agentes não exercem poderes próprios, mas atuam sob a coordenação da autoridade policial, única com legitimidade para determinar a realização de atos de polícia judiciária no seu âmbito[5]. É por isso que um agente policial, salvo as ressalvas previstas em lei – v.g., o flagrante obrigatório do art. 301 do Código de Processo Penal –, só diligencia mediante ordem de serviço, e um perito, por conseguinte, atua apenas por requisição.

Diante disso, temos para nós, como princípio inconteste, que o Delegado de Polícia é o primeiro profissional com atribuição para efetuar o exame jurídico e de mérito sobre os fatos em tese ilícitos, a fim de preservar os interesses do Estado e zelar pelas garantias individuais das pessoas. É ele que faz o juízo de valor entre o evento e o contexto carreado em desfavor do conduzido, a fim de refutar provas ilegais e arbitrariedades. Convém lembrar que o Delegado de Polícia não é, como muitos querem fazer ver, um “justiceiro”. Ele não pune, mas disciplina e refreia a fim de subsidiar o verdadeiro teor da justiça, que é o de dar a cada um aquilo que lhe cabe. E quem fará justiça é o Juiz de Direito, com base nos subsídios colhidos na Delegacia de Polícia sob o crivo da autoridade policial.

2.3. Autoridade Policial e Poder de Polícia

No sistema jurídico brasileiro, o cargo de Delegado de Polícia sempre foi sinônimo de “autoridade policial”, não por ser ele o “chefe” de todas as demais Polícias, mas sim por titular, com exclusividade, as funções de mando que, no art. 4º do Código de Processo Penal, são dadas as “autoridades policiais”, i.e., aquelas próprias de polícia judiciária (auxiliar do juízo) e de repressão criminal (apuração de autoria e materialidade).

Ora, se a própria lei estatui que a “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e de sua autoria”[6], e a Constituição Federal, no mesmo passo, diz que as polícias civis – que são dirigidas por Delegados de Polícia de carreira – detém as funções de polícia judiciária e apuração das infrações penais[7], resta óbvio que a autoridade policial aludida pelo Código de Processo Penal é apenas o Delegado de Polícia. Isso hoje é reforçado, inclusive, pela Lei Federal n° 12.830/13, que eu seu art. 2º, parágrafo 1º, diz que ao Delegado de Polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal.

E os demais policiais? São autoridades? O tema não é tão simples quanto parece. Temos para nós que “autoridade” é uma coisa e “autoridade policial” – a do Código de Processo Penal e das leis que disciplinam atos de polícia judiciária não militares –, outra. Autoridade, por si só, é um munus que concentra o poder administrativo de fazer com que alguém lhe obedeça. Assim, em sentido amplo, ela é exercida com base no próprio poder de polícia geral da administração, respeitados os seus limites. Nesse passo, um patrulheiro possui autoridade (ou poder de polícia geral) para preservar a ordem pública, disciplinar condutas e recompor ações contrárias à polícia de costumes, o mesmo ocorrendo com os guardas civis das cidades, nos termos da Lei Federal n° 13.022/14[8]. Um oficial da Força Pública também é autoridade, na mesma acepção. E poderá ser, ainda, autoridade policial militar quando exercer atividades de polícia judiciária militar no serviço disciplinar do quartel, tudo em consonância com o Decreto-Lei n° 1.002/69 (Código de Processo Penal Militar).

Nesse diapasão, essa “autoridade” não se confunde com a autoridade policial, esta sim emprestada unicamente ao Delegado de Polícia, pois somente ele – no âmbito da Secretaria da Segurança Pública[9]– detém o poder de polícia judiciária[10] para conduzir a persecução sobre uma pessoa surpreendida em flagrante delito. E é ele que, em âmbito civil, apreende objetos que tiveram relação com o fato, interdita locais de crime, intima pessoas, colhe as provas para o esclarecimento do evento, ouve o ofendido e o suspeito, procede ao reconhecimento de pessoas e coisas, determina que se proceda a exames e perícias, ordena a identificação criminal, averigua a vida pregressa do indiciado, autua em flagrante, representa pela prisão cautelar, determina a reprodução simulada de fatos, nomeia peritos e escrivães ad hoc, concede liberdade provisória etc.

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Ou seja, qualquer policial, civil ou militar, possui autoridade em sentido amplo – ou o chamado poder de polícia[11] –, mas a “autoridade policial” em sentido estrito é tão somente do Delegado de Polícia da circunscrição. Se assim não fosse, as pessoas presas em flagrante seriam levadas aos quartéis da Polícia Militar ou ao Ministério Público para terem os seus comportamentos antissociais avaliados, mas é o Delegado de Polícia do Distrito ou da Delegacia que, por força de lei, decide se a pessoa permanece ou não presa, esse é o diferencial, o poder de polícia judiciária.

Dito isso, enquanto o Delegado de Polícia personifica o poder do Estado – por isso é “delegado” dele, do “Estado” –, os demais policiais, estejam eles em atividade de policiamento, investigação, perícia ou medicina legal, são chamados de “agentes da autoridade policial”, não porque lhe sejam genérica ou hierarquicamente subordinados[12], mas porque agem em nome da autoridade que é emprestada a ele, a qual visa apurar a autoria e a materialidade dos delitos que não foram prevenidos ou evitados pela polícia de segurança.

Exemplificando, o Delegado de Polícia não é superior hierárquico de um policial militar, pois ele não faz parte da cadeia organizacional das milícias estaduais. Entretanto, se esse mesmo policial militar, ainda que seja um oficial superior, surpreender alguém em flagrante delito, será obrigado a levá-lo a presença do Delegado de Polícia, pois só ele tem “autoridade policial” – de “polícia judiciária” – para analisar os fatos. Agora, para ações de preservação da ordem ou até mesmo de choque, aí sim as forças públicas possuem autonomia própria – poder de polícia geral –, já que tais atividades específicas fazem parte do seu rol constitucional de atribuições. Note-se que não se trata de questão de vaidade, mas sim de imposição e reserva legal.

Tentemos ser ainda mais convincentes acerca dessa diferenciação. O conceito geral de “autoridade” – típica a qualquer policial – encontra-se no art. 5º da Lei Federal n° 4.898/65, o qual diz que, para efeitos de tal lei – abuso de autoridade – considera-se autoridade quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar. Nesses termos, se um soldado em noviciado é considerado “autoridade” para experimentar as penas da lei, ele também o é para exercê-la em sua atividade. Mas onde então entra a figura do “agente da autoridade”? No art. 301 do Código de Processo Penal, está estatuído que qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Aí está a diferenciação trazida pela própria lei, pois se não fosse o desejo dela que isso ocorresse, certamente apenas constaria a expressão “autoridades policiais”, de modo a abranger qualquer policial. Mas não. Quis o legislador estabelecer um regramento necessário, afinal não se pode cogitar uma Polícia galgada sem hierarquia; um, por delegação do Estado – delegado – exerce autoridade policial, e o outro, em nome dele, serve de instrumento para a execução cartorária e operacional desse objetivo.

Em suma, qualquer policial – por ser servidor público – detém autoridade de vigilância e de coerção imediata, ou poder de polícia geral. Já o Delegado de Polícia, como visto, enverga a autoridade de polícia judiciária, i.e., a autoridade policial formalmente descrita na lei adjetiva, pois só ele tem poder decisório nessa matéria.

2.4. Prerrogativas do Delegado de Polícia

Conforme preceitua o art. 2º, parágrafo 1º, da Lei Federal n° 12.830/13, ao Delegado de Polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

Conduzir significa dirigir, orientar, comandar, direcionar e administrar alguma coisa, no caso, a investigação. Esse múnus, assim sendo, dá ao Delegado de Polícia, em âmbito nacional, a autonomia e a independência necessárias para agir, sem prejuízo dos controles externos que são exercidos pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.

Por outro lado, essa garantia prejudica a presidência compartilhada da investigação, pois a condução deve ficar adstrita ao Delegado de Polícia que recebeu, direta ou indiretamente, a responsabilidade pela apuração da notícia crime, sob pena de comprometimento do seu livre convencimento, o qual, por essência, deve ser pessoal e individual.

2.4.1. A Independência Funcional

Quando falamos em independência e autonomia em razão do poder-dever de conduzir as investigações – que são de aplicação geral no país –, é impossível não fazermos referência a independência funcional da carreira, que em alguns Estados já ganhou peso constitucional. Em São Paulo por exemplo, o art. 140, parágrafo 3º da Constituição Estadual diz que, aos delegados de polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção[13] nos atos de polícia judiciária. Já o parágrafo 1º da Lei Complementar n° 1.152/11 (com a redação alterada pela Lei Complementar n° 1.249/14), estatui ser garantia institucional da carreira de Delegado de Polícia a independência funcional, a qual é assegurada pela autonomia intelectual[14] para interpretar o ordenamento jurídico e decidir, com imparcialidade[15] e isenção[16], de modo fundamentado. Ou seja, é tendência nacional dar mostras de que a figura do Delegado de Polícia está enraizada na seara jurídica, e que ele, cada vez mais, aufere garantias e prerrogativas para melhor exercer os seus misteres perante a população.

Nesse diapasão, entre os Delegados de Polícia é convalidada uma hierarquia sui generis, estando eles, entre si, apenas sujeitos a um controle meramente administrativo, qual seja, o de supervisão do serviço sob o aspecto formal, sem que exista, nesse processo, qualquer ação que objetive imiscuir-se no seu poder decisório, o qual é independente. Ademais, é bem certo que o conceito de série de classes costumeiramente usado como critério de graduação entre membros de uma mesma carreira, alude tão somente ao escalonamento hierárquico relacionado ao grau de complexidade das atribuições e nível de responsabilidade, como a direção de unidades policiais e a divisão de serviços. Assim, entre os Delegados de Polícia vigora a hierarquia por supervisão administrativa, onde membros de uma mesma carreira – mas de níveis ou classes diversas –, alternam-se na direção das repartições e supervisionam as estruturas humanas e administrativas que lhes são dispostas. Eles exercem a gestão vertical de pessoas, serviços e materiais, mas não lhes é lícito, independentemente da posição diretiva, imiscuir-se na convicção jurídica de um por assim dizer “subordinado”, o qual, perante a lei, tem, independente do grau de sujeição ou tempo de carreira, liberdade funcional nesse particular.

2.4.2. A Avocação e o Poder Hierárquico

Quando falamos no instituto da avocação, encontramos uma exceção à regra, a qual é baseada no poder hierárquico da administração. De acordo com a Lei Federal n° 12.830/13, art. 2º, parágrafo 4º, o inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação. Nesse passo, mesmo aquele que exerce a hierarquia por supervisão administrativa não pode se eximir do dever de inspeção dos atos praticados na esfera da repartição, devendo agir como fiscal dos direitos e das garantias individuais das pessoas, além de zelar pela tempestiva e eficiente apuração dos fatos ilícitos. Dessa forma, caso constate motivo de interesse público – evento dotado de gravidade ou elevada repercussão que exija recursos otimizados – ou inobservância de procedimento legal ou institucional – provas colhidas sem a observância dos cânones legais ou em desconformidade com regramentos técnicos –, é obrigação do “superior”, em nome do proveito coletivo e com o escopo de evitar prejuízos à aplicação da lei, lançar um despacho fundamentado e avocar (ou redistribuir para outra autoridade policial ou repartição de cunho especializado), o procedimento investigatório. Urge lembramos que esse instituto só deve ser usado em situações excepcionais, pois quem avoca traz para si ou para outrem as atribuições e também as responsabilidades da autoridade precedente. E caso fique comprovado que a avocação se deu em desconformidade com a lei – i.e., como ato de represália ou proteção de interesses escusos – o ato em si é nulo, gerando a severa responsabilização funcional do autor do despacho.

2.4.3. O Ato de Indiciamento

Com o advento da Lei Federal n° 12.830/13, a figura do indiciamento ganhou peso, pois passou a ser ação privativa do Delegado de Polícia, ocorrendo por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, onde deverá ser indicada autoria, materialidade e circunstâncias do que foi apurado. Conquanto aplicado pelas polícias judiciárias há anos[17], o indiciamento não tinha, até então, expressa previsão legal. Nestes termos, tão logo o Delegado de Polícia aponte, a partir do seu juízo individual de convicção, que alguém é ou provavelmente é o autor de uma infração penal, o sujeito – após ser identificado, pregressado e intererrogado – passa a envergar a condição de indiciado, o que não deixa de ser uma garantia para si próprio, afinal ele deixa de ser um mero suspeito e aufere o conhecimento formal da sua posição dentro do inquérito, onde direitos e deveres devem ser exercidos. Não é demais lembramos que o indiciamento não é uma diligência – mas um ato de convicção – e, em razão disso, não pode ser requisitado ao delegado, mormente hoje, diante do já citado impeditivo legal. De igual forma, ele não é condição para o oferecimento da denúncia, graças ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Não é demais lembramos que hoje, em razão da Lei Federal n° 9.613/98, em caso de indiciamento de servidor público nos chamados crimes de lavagem de dinheiro, esse será afastado, sem prejuízo de remuneração e demais direitos, até que o juiz autorize, fundamentadamente, o seu retorno[18].

2.4.4. Remoção

Ainda que a própria regra da motivação dos atos administrativos já fosse um óbice para as “remoções-brancas”, i.e., as punições travestidas de remoções[19], a legislação federal agora diz que a remoção do Delegado dar-se-á somente por ato fundamentado, é o que se depreende do art. 2º, parágrafo 6º, da Lei Federal n° 12.830/13. Tal regramento visa garantir a imparcialidade na condução de uma investigação e assegurar validade ao ato administrativo, observando-se pontos como o interesse público, a necessidade do serviço, os méritos funcionais do indicado e o bem comum da medida, a qual deve ser motivada e passível de controle pelo Judiciário. No Estado de São Paulo, os Delegados de Polícia tem assegurada a chamada inamovibilidade relativa, que é disciplinada pela Constituição no art. 140, parágrafo 3º, e pela Lei Complementar n° 207, no seu art. 36, além do disposto na Portaria DGP-58/11.

2.4.5. Prerrogativas de Persecução

Acresça-se que, segundo a Lei Federal n° 12.830/13, ao Delegado de Polícia cabe requisitar perícias, informações, documentos e dados que interessem a apuração dos fatos, o que, por si só, já lhe dá um enorme poder de coerção para as atividades persecutórias.

Mas isso não é novidade. Antes da novel lei, o Código de Processo Penal já determinava em seu art. 6º que autoridade policial deveria agir para que não se alterassem o estado e conservação do local, apreender os objetos que tiverem relação com o fato após a liberação da perícia e colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias. Essa última medida, em boa verdade, possui um campo de ação gigantesco e, se bem trabalhada, dá ao delegado um poder considerável para a escorreita verificação da verdade dos fatos.

A Lei Federal n° 12.850, de 2 de agosto de 2013 (crime organizado), diz que o Delegado de Polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderá, nos casos de colaboração premiada por ele conduzida, requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial. Poderá ainda representar pela infiltração de agentes em tarefas de investigação, podendo inclusive sustar a operação em caso de risco iminente ao agente. Essa norma também garante ao acesso ao Delegado de Polícia, independentemente de autorização judicial, dos dados cadastrais do investigado que informem exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação e o endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito. As empresas de transporte possibilitarão, pelo prazo de 5 (cinco) anos, acesso direto e permanente do Delegado de Polícia aos bancos de dados de reservas e registro de viagens. Tal também atinge as concessionárias de telefonia fixa ou móvel, as quais manterão, pelo prazo de 5 (cinco) anos, os registros de identificação dos números dos terminais de origem e de destino das ligações telefônicas internacionais, interurbanas e locais, as quais podem ser requisitadas pela autoridade policial.

Importante mencionar ser crime a recusa ou a omissão de dados cadastrais, registros, documentos e informações requisitadas pelo Delegado de Polícia no curso de investigação.

Como se vê, são prerrogativas importantes, não extensíveis a quaisquer agentes públicos, daí a importância do Delegado de Polícia no contexto persecutório pátrio.

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Sobre o autor
Marcelo de Lima Lessa

Formado em Direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos (1994). Delegado de Polícia no Estado de São Paulo (1996), professor concursado de “Gerenciamento de Crises” da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”. Ex-Escrivão de Polícia. Articulista nas áreas jurídica e de segurança pública. Graduado em "Criminal Intelligence" pelo corpo de instrução do Miami Dade Police Department, em "High Risk Police Patrol", pela Tactical Explosive Entry School, em "Controle e Resolução de Conflitos e Situações de Crise com Reféns" pelo Ministério da Justiça, em "Gerenciamento de Crises e Negociação de Reféns" pelo grupo de respostas a incidentes críticos do FBI - Federal Bureau of Investigation e em "Gerenciamento de Crises", "Uso Diferenciado da Força", "Técnicas e Tecnologias Não Letais de Atuação Policial" e "Aspectos Jurídicos da Abordagem Policial", pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Atuou no Grupo de Operações Especiais - GOE, no Grupo Especial de Resgate - GER e no Grupo Armado de Repressão a Roubos - GARRA, todos da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Marcelo Lima. O poder decisório do delegado de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5453, 6 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65673. Acesso em: 25 abr. 2024.

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