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O poder decisório do delegado de polícia

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06/06/2018 às 09:15
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3. A Ambiência do Trabalho Policial

O estudo do ambiente de trabalho e do próprio policial é importante para fazer ver que a Polícia é formada por pessoas vindas da população. Elas não são alienígenas, não tem poderes anormais e nem tão pouco o dom da infalibilidade. Em razão disso, por trás de um distintivo ou de uma farda estão indivíduos comuns, cujo diferencial reside na pré-disposição de proteger a sociedade, da qual eles próprios provém.

De um modo geral, o policial trabalha em condições precárias de segurança, cumprindo horários irregulares, estando sujeito a plantões noturnos e chamados a qualquer hora. Algumas instituições classificam essas situações sob o nome de “Regime Especial de Trabalho Policial”, onde existe constante risco a vida e contínuo desgaste físico e emocional.

Por si só, essas adversidades influenciam no modo de agir do ser humano, afinal elas atuam negativamente sobre ele. Dessa forma, podemos considerar que o cenário de atuação do profissional de segurança pública é atípico, pois enquanto a grata parcela da sociedade dorme ou se socializa, ele, policial, continua atento para refrear abusos e reprimir condutas ilícitas, sob as piores e mais adversas conjunturas imagináveis.

O trabalho policial é tudo, menos estável. Diz-se que nele “se espera o inesperado”, e isso é verdade, afinal, em instantes, um ambiente aparentemente tranquilo se altera e vira palco de confronto, onde a calma e o foco não devem ser perdidos. Isso é um exemplo claro de ambiente com segurança precária, em que o risco a saúde física e psicológica são a regra.

Não se conhece, não hoje, órgão mais fiscalizado do que o da segurança pública de um Estado. E nem mais transparente, afinal o momento atual preza pelo acesso quase que absoluto ao trabalho que é nele realizado. Mas o que muitos parecem não entender é que a Polícia é um serviço público sui generis, com o escopo de limitar e disciplinar ações, interesses e liberdades, algo que por si só não soa agradável. Assim, pode-se imaginar o quão difícil é a tarefa daquele que, para manter a ordem, toma decisões tidas como “antipáticas” diuturnamente.

Assim, com relação à “pessoa” do policial, temos que:

  1. A sua atividade é pautada pelo stress e pelo cansaço, o que influencia no seu sistema nervoso;

  2. Os seus turnos de trabalho são agressivos para a saúde, o que influencia no seu ritmo biológico;

  3. O seu reconhecimento profissional costuma ser parco, o que influencia na sua autoestima;

  4. Os seus atos de ofício são encarados com rigor potencializado, o que influencia no seu temor reverencial em agir;

  5. Os organismos sociais o enxergam com preconceito e desconfiança, o que influencia na sua segurança funcional e jurídica;

  6. O seu papel disciplinador o faz alvo de acintes e provocações, o que influencia no seu controle emocional;

  7. E a sua natureza é humana, o que influencia na sua falibilidade.

Isso parece não ter importância, mas deve pesar na avaliação de conduta de um policial, principalmente para compreendermos os motivos que o tornam falível. A partir do instante que admitimos isso, passamos a encarar o policial como pessoa e, ao invés de julgá-lo de forma cega e concisa, começamos também entendê-lo enquanto “ser”.


4. A Tomada de Decisões

As decisões da autoridade policial, a saber, são as seguintes: a) decisões convencionais; b) decisões não convencionais e c) decisões de campo.

As primeiras são aquelas de natureza corriqueira, geralmente programadas, as quais solucionam problemas de rotina, procedimentos e hábitos. Exemplos temos os registros policiais comuns, os quais não envolvem demasiada operação lógica para a lavratura.

As segundas são aqueles que envolvem mérito, são feitas sob medida para casos não rotineiros e não programados, como as que envolvem a privação ou não da liberdade de uma pessoa.

E as terceiras são aquelas adotadas em âmbito operacional, usualmente em milésimos de segundo, geralmente em abordagens e confrontos armados.

Para decidir, a autoridade policial deve deter preparo intelectual e ferramentas de pesquisa, a fim de, com estas, dar base e fundamento ao que será posto em prática. Nisso é importante aquilo que chamamos de pré-confrontação, onde o Delegado diligente costuma antever situações atípicas e elabora soluções de antemão, facilitando, assim, a criação de uma memória muscular que o fará seguir etapas que o ajudarão a melhor decidir num caso real. Isso decorre dos estudos de caso e do preparo de despachos e fundamentações, os quais serão de suma utilidade num momento de tensão, onde o ganho de tempo é primordial.

Quando tomamos uma decisão, é importante considerarmos que ela afetará não apenas o tomador, mas também a Instituição e a pessoa implicada. Se tomada de maneira impensada, uma decisão acarretará um impacto negativo para o ente público, que será alvo de críticas gerais, desconsiderando-se a pessoa do tomador. Em contrapartida, uma decisão sensata traz um viés positivo ao órgão público como um todo, valorizando não apenas o profissional, mas o ente abstrato de forma geral.

Sob pressão, regra na Polícia, devemos limpar a mente dos problemas pessoais; apostar no autoconhecimento; abusar do bom senso e da experiência e principalmente analisar os prós e os contras, projetando-os sempre para o futuro. Uma pré-visualização nos ajuda a avaliar impactos, facilitando em muito a tomada da decisão.

O Delegado de Polícia carrega consigo uma responsabilidade não apenas social, mas, sobretudo, funcional. Diante disso, não pode olvidar dos crimes contra a administração – tal qual a prevaricação –, bem como, o abuso de autoridade, que sempre rodeiam a sua vida profissional. Nesses casos é bom sempre ter em mente que ambos são dolosos, não admitem a forma culposa e, por conta disso, se despidos de desídia ou má-fé, jamais poderão ser invocados para prejudicar a autoridade policial.

A decisão também atinge a pessoa implicada, bem como a reputação, a liberdade e a vida da mesma, exigindo-se, assim, imensa cautela por parte do tomador, o qual deve adotar um planejamento apropriado que envolva o uso da lógica, a coleta de provas e indícios, a análise de possibilidade (de modo a diminuir a chance de erro), os prós e contras e a inteligência emocional. Ou seja, o problema deve ser observado sobre diversos pontos de vista, que não apenas o da autoridade policial. Isso ajuda a criação de barreiras de defesa para a decisão, de modo a torná-la minimamente instransponível.

Para as decisões não convencionais, é muito importante que o Delegado de Polícia observe quatro pontos distintos, quais sejam, a formalidade, a serenidade, a firmeza e a equidistância. Mantendo essa base, a segurança será aliada da autoridade policial, ceifando eventuais percalços que porventura possam surgir. A formalidade decorre do próprio exercício do cargo, com o uso da linguagem adequada e apropriada a preservar o cargo. A serenidade tem a ver com a linguagem corporal tranquila, de modo a passar a imagem da segurança e do domínio da situação. A firmeza é necessária para manter a situação sob controle, de modo a refrear comportamentos impertinentes e divorciados do cavalheirismo. E enfim a equidistância, primordial para que a autoridade policial tenha a imparcialidade necessária para agir num patamar superior e adequar a justiça num primeiro momento.

As pressões não são poucas. Elas podem vir da Polícia Militar, dos advogados, dos implicados, dos familiares dos implicados, da mídia e não raro, até mesmo superior. Destarte, o Delegado de Polícia, mormente o em noviciado, deve sempre pautar-se pelos quatro princípios acima descritos, jamais deixando-se virar parte na ocorrência, preservando pela distância necessária que o torne apto a decidir com segurança, tomando, na sequencia, todas as medidas cabíveis contra aqueles que, de qualquer forma, obstruíram a ação regular da polícia judiciária.

Enfim, dentre as indagações que o Delegado de Polícia deve fazer a si mesmo diante de uma ocorrência envolvendo pessoa detida, temos as seguintes: a) essa pessoa pode ser presa? b) eu posso deixar de prendê-la? c) o fato delituoso está demonstrado? d) o nexo causal que justifique a ação/omissão delituosa está presente (autoria)? e) o nexo causal que exclua a infração ou afaste a responsabilidade do agente está presente (dirimente)? f) existe a “fundada suspeita” que legitime a recolha a prisão? Em conseguindo responder essas indagações de maneira segura, a autoridade praticamente elimina as chances de erro, pois criou aquela pré-confrontação necessária para rebater eventuais críticas a sua decisão.

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Pois vem, vejamos agora, com um pouco mais de detalhes, como agir numa ocorrência comum e como agir numa ocorrência envolvendo pessoa presa.


5. Atendimento de Ocorrências Policiais Ordinárias

Ocorrências ordinárias são aquelas que envolvem situações convencionais. Nelas vigora a técnica da relação humana para o atendimento ao público. Aliás, atendimento e orientação – sem necessariamente haver o registro – são sinônimos nesses casos, pois em nada se confundem com a recusa de atendimento.

Para tanto, devemos levar em conta o trinômio “interação”, “análise” e “providência”.

A interação é o primeiro momento, o qual costuma ser crítico. Caracteriza-se pelo contato social em que o interessado busca o serviço público e ainda não tem ideia do que vai ocorrer e de como será o seu atendimento. Nesse instante é necessário que o agente policial, de forma cortes e solidária, esteja preparado para romper a barreira negativa por vezes existente. A oferta de ajuda deve ser o primeiro mote, até para que a parte sinta-se a vontade para reportar a sua demanda. Nessa fase devem ser colhidas todas as informações e documentos necessários para a futura análise, a qual demandará ou não uma providência formal.

Tão logo tenha os dados básicos em mãos, passasse para a fase da análise, isto é, do mérito do problema. O cidadão, por vezes, desconhece se o comportamento narrado é caso ou não de boletim de ocorrência e, nesse instante, cabe um exame pormenorizado do problema sob o ponto de vista do Direito Penal, a fim de que seja verificada qual a providência adequada para a solução. Com a conclusão alcançada, parte-se para a última fase, que é a providência.

A providência consiste na orientação propriamente dita, isto é, no registro do boletim de ocorrência ou no encaminhamento a seara adequada, criando-se um vínculo entre a parte e o Estado-Administração.

Dito isso, basta incutirmos em mente que, num atendimento comum, três etapas devem ser exauridas. Se fizermos isso, justificada estará a ação da Polícia e legitimada estará a providência a rigor adotada.


5. Atendimento de Ocorrências Policiais Extraordinárias (Pessoa Detida)

A cadeia de decisão em ocorrências envolvendo pessoas presas é bem mais complexa. São cinco fases distintas, mas que ao fim se completam. São elas a “colheita de dados”, a “análise de dados”, a “seleção de opções”, o “planejamento da medida” e a “execução da decisão”.

Na colheita de dados é feita a aferição preliminar dos pormenores da notícia. O objetivo é apurar circunstâncias, materialidade e autoria. A autoridade policial faz uma pré-análise geral da notícia e verifica o local onde se deu a captura. Após, executa uma entrevista prévia com o condutor, com a vítima, com as testemunhas e com o conduzido, fazendo também um exame visual no mesmo, a fim de verificar o seu estado físico. São feitas pesquisas criminais – para se ter uma ideia da vida pregressa do conduzido – e, em sendo necessário, a autoridade vai ao local dos fatos, examinando imagens e gravações que possam ajudar na formação da convicção. Verifica se os fatos ao fim estão livres de dúvidas, formando, assim, uma espécie de banco de dados para a sua convicção. Até então o Delegado de Polícia não anunciou a sua decisão, o que apenas ocorrerá na fase final da operação, dada a possibilidade do surgimento de fatos novos. É importante frisarmos que, até exarar o desfecho ao caso, a prisão-captura não foi ratificada e, em razão disso, a custódia do conduzido não impende a autoridade policial, mas sim aos condutores da ocorrência. No Estado de São Paulo, tal providência é disciplinada pela Recomendação DGP-1/05, de obrigatório conhecimento por quem atua nos plantões policiais.

Feito isso, a autoridade policial passa para a segunda fase, que é de análise dos dados recolhidos, onde é feita a interpretação técnico-jurídica. É aí que o Delegado de Polícia verificará se é caso de flagrante (próprio, impróprio, ficto ou presumido), se o crime é “possível”, se houve espontaneidade na apresentação, se houveram excludentes, descriminantes ou erro justificável, se o fato é “significante” e se o contexto probatório é idôneo. É nesse momento que surge a convicção.

Na fase seguinte, o Delegado de Polícia seleciona as opções hábeis a formalizar a convicção. É então que será decidido pela lavratura do auto constritivo, por um termo circunstanciado ou pelo mero registro dos fatos em boletim de ocorrência. Nesse instante a autoridade ainda não divulgou sua decisão, a qual ainda está sendo formatada.

Optando, fundamentadamente, pela opção escolhida, a autoridade passa para a quarta fase, que é a de planejamento da medida, onde são elencadas as ações decorrentes da formalização, isto é, como será feito o boletim de ocorrência (sua escrituração), qual a capitulação correta e como os trabalhos serão divididos em caso de eventual flagrante.

Com tudo isso decidido e revisado, isto é, com os dados colhidos, conferidos e analisados e a opção escolhida e planejada, a autoridade policial, aí sim, irá exteriorizar publicamente a sua decisão, a qual deverá estar amadurecida e dotada de fundamentos técnicos e jurídicos que a tornem segura, afinal é nessa fase final em que irão ocorrer os questionamentos externos, exigindo do Delegado de Polícia um controle absoluto sobre o cenário. Nos casos de protestos e indignações, a autoridade deve ter a expertise de manter-se paciente, dando aos insurgentes a opção de questionarem a decisão na seara adequada e de forma escrita, a fim de não se tornar parte no átrio da Delegacia.

É muito importante que o Delegado de Polícia só exteriorize a sua decisão final após analisar todo o contexto e fazer as entrevistas preliminares, a fim de que passe segurança, firmeza e seriedade. A constante alteração decisória não é boa, pois fragiliza a insituição e desprestigia a autoridade investida ao Delegado.

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Sobre o autor
Marcelo de Lima Lessa

Formado em Direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos (1994). Delegado de Polícia no Estado de São Paulo (1996), professor concursado de “Gerenciamento de Crises” da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”. Ex-Escrivão de Polícia. Articulista nas áreas jurídica e de segurança pública. Graduado em "Criminal Intelligence" pelo corpo de instrução do Miami Dade Police Department, em "High Risk Police Patrol", pela Tactical Explosive Entry School, em "Controle e Resolução de Conflitos e Situações de Crise com Reféns" pelo Ministério da Justiça, em "Gerenciamento de Crises e Negociação de Reféns" pelo grupo de respostas a incidentes críticos do FBI - Federal Bureau of Investigation e em "Gerenciamento de Crises", "Uso Diferenciado da Força", "Técnicas e Tecnologias Não Letais de Atuação Policial" e "Aspectos Jurídicos da Abordagem Policial", pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Atuou no Grupo de Operações Especiais - GOE, no Grupo Especial de Resgate - GER e no Grupo Armado de Repressão a Roubos - GARRA, todos da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Marcelo Lima. O poder decisório do delegado de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5453, 6 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65673. Acesso em: 8 nov. 2024.

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