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A natureza jurídica do pedágio

Agenda 28/06/2020 às 15:15

O artigo analisa a controvérsia existente sobre a natureza jurídica do pedágio e a sua definição pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 800.

O art. 150, V, da Constituição, que estipula as limitações ao poder de tributar, prevê:

“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...) V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público”.

A natureza jurídica do pedágio é controvertida na doutrina e na prática dos tribunais, com duas concepções principais: (a) trata-se de taxa, logo, uma espécie de tributo; (b) ou trata-se de tarifa, logo, uma espécie de preço público, sem natureza de tributo.

A diferença – e a definição da natureza jurídica – reflete nas normas aplicáveis ao pedágio: (a) se for considerado um tributo, o pedágio deverá observar a normatização tributária, especialmente os princípios constitucionais e os limites ao poder de tributar (tais como a legalidade, a anterioridade e a vedação ao confisco); (b) visto como um preço público, não se submete às mesmas restrições impostas aos tributos.

Em consequência, a principal discussão prática acerca do pedágio diz respeito à possibilidade – ou não – da criação e do aumento do valor por meio de ato diferente de lei, e a partir de quando pode ser cobrado (no mesmo exercício financeiro ou a partir do exercício seguinte). Em outras palavras, (a) se incidem os princípios da legalidade tributária e da anterioridade na exigência de pedágio, se pode ser arrecadado e fiscalizado somente por pessoa jurídica de direito público interno (visto como taxa); (b) ou se essas exigências são dispensadas, logo, pode ser instituído e reajustado por atos diferentes da lei, arrecadado e fiscalizado por pessoa jurídica de direito privado (visto como tarifa).

Um argumento comum na discussão diz respeito à existência de via alternativa, ou seja, de uma rodovia que possa ser utilizada gratuitamente, paralela ou próxima àquela em que há cobrança do pedágio. Caso não exista essa alternativa, sustenta-se que o pedágio é compulsório, logo, teria natureza tributária (taxa). Em consequência, sua cobrança depende da utilização efetiva da rodovia (serviço público específico e divisível), vedada a imposição do pedágio pelo uso potencial.

Há, ainda, quem classifique o pedágio como uma espécie tributária autônoma, distinta das demais e, especificamente, não se inserindo como uma modalidade de taxa. Sustenta-se, para esse fim, que o pedágio tem natureza tributária, mas que possui características próprias que o distingue dos demais tributos: é vinculado ao uso de um bem público, tem como fato gerador a utilização de determinada via pública, e é vinculado à conservação da rodovia.

No Supremo Tribunal Federal, a questão foi discutida em três julgamentos ocorridos nos últimos 25 anos, em dois processos de controle (concentrado e difuso) de constitucionalidade.

Em primeiro lugar, por unanimidade, o Pleno do STF indeferiu a medida liminar na ADI 800, mantendo em vigor o Decreto estadual nº 34.417/92, do Rio Grande do Sul, sob o fundamento de que o pedágio consiste em um preço público. Nos termos da ementa do julgado:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO N. 34.417, DE 24.7.92, DO GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, QUE INSTITUI E AUTORIZA A COBRANÇA DE PEDAGIO EM RODOVIA ESTADUAL. ALEGADA AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA ANTERIORIDADE.

Tudo esta a indicar, entretanto, que se configura, no caso, mero preço público, não sujeito aos princípios invocados, carecendo de plausibilidade, por isso, a tese da inconstitucionalidade. De outra parte, não há falar-se em periculum in mora, já que, se risco de dano existe no pagar o pedágio, o mesmo acontece, na frustração de seu recebimento, com a diferença, apenas, de que, na primeira hipótese, não e ele de todo irreparável, como ocorre na segunda. Cautelar indeferida” (ADI 800 MC/RS, Pleno, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 26/11/1992, DJ 18/12/1992, p. 24375).

No seu voto, o relator, Min. Ilmar Galvão, resumiu a controvérsia desta forma:

“Com efeito, se se estiver diante de tributo, é fora de dúvida que, em face do princípio da legalidade estrita, a que estão sujeitas as exações dessa natureza, sem exceção, a conclusão seria, inevitavelmente, pela negativa. Se se estiver, no entanto, frente a um caso de preço público, de tarifa, nenhum óbice existe, de ordem constitucional, que sua cobrança seja regulada por meio de decreto do Chefe do Poder Executivo, no exercício da competência que lhe confere a Magna Carta, de dispor sobre a organização e o funcionamento da administração (art. 84, VI, da CF/88)”.

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Concluiu que o pedágio não é um tributo, mas um preço público, porque não é cobrado de todos os proprietários ou usuários de veículos automotores, tampouco de quem utiliza todas as rodovias, mas apenas de quem faz uso de determinadas estradas, que observem requisitos mínimos de trafegabilidade:

“Com efeito, se o pedágio há de ser exigido tão-somente de quem usa a estrada, pode ser visto até como imposto residual, incidente sobre o fato de trafegar-se pelas estradas públicas, mas não como taxa, já que inexigível de quem, conquanto proprietário ou usuário de veículo automotor, não utilize a rodovia.

Assim sendo, parece fora de dúvida que se está diante de preço público, ou tarifa, seja, de 'retribuições facultativas da aquisição de bens ou da utilização de serviços, transferidos ou prestados pela Administração Pública ou por seus delegados ou mesmo por particulares, a quem o adquira ou os utilize voluntariamente'.

A circunstância, pois, de ser exigido pela Administração Pública não o descaracteriza. (...)

Por isso mesmo que de tributo não se trata, mas sim de tarifa, não pode ser exigido, indiscriminadamente, pela utilização de todas as estradas, (...).

Como preço público (tarifa) não está o pedágio sujeito aos requisitos constitucionais que disciplinam os tributos, podendo ser cobrando, na forma e no quantum fixado por decreto de que utiliza espontaneamente o bem ou serviço tarifado”.

Em consequência, passou-se a seguir essa definição de preço público conferida ao pedágio pelo Pleno do STF.

Por outro lado, a posição contrária na doutrina se fundamenta em julgamento posterior (também unânime) de recurso extraordinário pela 2ª Turma do STF, no qual se concluiu que o pedágio tem natureza jurídica de tributo, consistente em taxa. Conforme a ementa da ementa do acórdão:

“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PEDÁGIO. Lei 7.712, de 22.12.88.

I.- Pedágio: natureza jurídica: taxa: C.F., art. 145, II, art. 150, V.

II.- Legitimidade constitucional do pedágio instituído pela Lei 7.712, de 1988.

III.- R.E. não conhecido” (RE 181475/RS, 2ª Turma, rel. Min. Carlos Velloso, j. 04/05/1999, DJ 25/06/1999).

O relator, Min. Carlos Velloso, faz remissão ao decidido por ele no RE 194862/RS, e utilizou os seguintes argumentos para justificar suas conclusões:

“Primeiro que tudo, deixo expresso o meu entendimento no sentido de que o pedágio, objeto da causa, é espécie tributária, constitui-se numa taxa. O fato de ter sido o pedágio tratado no Sistema Tributário Nacional exatamente nas limitações ao poder de tributar - CF, art. 150, V - é significativo. Ora, incluído numa ressalva a uma limitação à tributação, se fosse preço, a ressalva não teria sentido. É dizer, se está a Constituição tratando de limitações à tributação, não haveria sentido impor limitação a um preço (tarifa), que tem caráter contratual, assim incluído no regime de direito privado.

(...)

Sustenta-se, no RE, que o pedágio teria o mesmo fato gerador do IPVA.

A hipótese de incidência do IPVA é a propriedade de veículos automotores (CF. art. 155, III) e o sujeito passivo do IPVA é o proprietário do veículo. Registre-se: a propriedade do veículo e não o veículo é que se constitui em hipótese de incidência do IPVA.

Já a hipótese de incidência do pedágio é a conservação da estrada ou rodovia e ocorre quando da utilização de rodovias federais, pontes e obras de arte especiais que as integram (Lei 7.712/88, art. 1º). Contribuinte do pedágio é o usuário da rodovia (Lei nº 7.712/88, art. 2º).

Também a base de cálculo do pedágio não é a mesma do IPVA.

Com efeito.

A base de cálculo do IPVA é o valor do veículo.

Já o pedágio da Lei 7.712, de 1988, não tem base de cálculo, porque ele é um tributo. (...)

O que deve ser considerado é que o poder público, ao invés de optar pelo custeio mediante impostos, caso em que todos pagariam, quer utilizassem ou não a rodovia, optou pela taxa, que será paga apenas pelos beneficiários do serviço público de conservação da estrada. o fato é que a rodovia está aberta ao uso, durante todo o mês, a todos. se uns usam mais e outros usam menos, isto é não constitui ofensa ao princípio da igualdade, convindo esclarecer que o pagamento do pedágio se faz para todo o mês. É dizer, o selo do pedágio vale para todo o mês. (...)”.

Assim, passou-se a afirmar que o STF, por meio de sua 2ª Turma, atribuiu ao pedágio a natureza jurídica de tributo, na espécie taxa.

Todavia, o caso não dizia respeito à cobrança do pedágio pela utilização efetiva de uma rodovia específica, mas, como deixa claro o voto, envolveu o selo-pedágio, instituído pela Lei nº 7.712/88, que deveria ser adquirido para uso em qualquer rodovia federal.

Por fim, o Supremo Tribunal Federal resolveu a questão no julgamento do mérito da ADI 800 por seu Plenário, em 11 de junho de 2014.

A ADI 800 foi proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) no dia 06/11/1992, e tramitou por quase 22 anos no STF até a conclusão do seu julgamento de mérito.

Em primeiro lugar, o indeferimento da medida cautelar foi célere: no dia 26 de novembro de 1992 o Pleno do STF indeferiu a medida, conforme citado acima.

O mérito, todavia, foi julgado somente em 11 de junho de 2014. Também de forma unânime, o Plenário do STF concluiu que o pedágio é preço público, em acórdão com a seguinte ementa:

“TRIBUTÁRIO E CONSTITUCIONAL. PEDÁGIO. NATUREZA JURÍDICA DE PREÇO PÚBLICO. DECRETO 34.417/92, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. CONSTITUCIONALIDADE. 1. O pedágio cobrado pela efetiva utilização de rodovias conservadas pelo Poder Público, cuja cobrança está autorizada pelo inciso V, parte final, do art. 150 da Constituição de 1988, não tem natureza jurídica de taxa, mas sim de preço público, não estando a sua instituição, consequentemente, sujeita ao princípio da legalidade estrita. 2. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente” (ADI 800/RS, Pleno, rel. Min. Teori Zavascki, j. 11/06/2014, DJe 27/06/2014).

O voto do relator, Min. Teori Zavascki, esclarece as diferenças existentes nos casos anteriores, para realizar o distinguishing com o acórdão do RE 181.475 e ressaltar que o precedente aplicável ao caso é apenas a decisão na medida cautelar na própria ADI 800:

“(...) 3. A discussão doutrinária a respeito do tema foi, de alguma forma, contaminada pela figura do denominado ‘selo-pedágio’, prevista na Lei 7.712/88, que a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, com toda a razão, considerou tratar-se de taxa (RE 181475/RS, 2ª Turma, rel. Min. Carlos Velloso, j. 04/05/1999, DJ de 25/06/1999). Dito ‘selo-pedágio’ foi instituído pela Lei 7.712/88, que assim o disciplinou:

(...)

Tratava-se, portanto, de uma exação compulsória a todos os usuários de rodovias federais, por meio de um pagamento renovável mensalmente (art. 3º do Decreto 97.532/89), independentemente da frequência de uso das rodovias. Era cobrada antecipadamente, como contrapartida a um serviço específico ou divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. Há, como se percebe, profundas diferenças entre o ‘selo-pedágio’, previsto na Lei de 1988, e o pedágio, tal como hoje está disciplinado. Esse último somente é cobrado se, quando e cada vez que houver efetivo uso da rodovia, o que não ocorria com o “selo-pedágio’, que era exigido em valor fixo, independentemente do número de vezes que o contribuinte fazia uso das estradas durante o mês. Essas profundas diferenças entre um e outro indicam, sem dúvida, que a decisão da 2ª Turma do STF no RE 181475 (tratando de ‘selo-pedágio’) não pode servir de paradigma na definição da natureza jurídica do pedágio. (...)”.

Na sequência, o voto do relator delimita quais são os critérios necessários para a definição da natureza jurídica do pedágio:

“(...) 5. Na verdade, o enquadramento do pedágio como espécie tributária (taxa) ou não (preço público) independe de sua localização topológica no texto constitucional, mas sim do preenchimento ou não dos requisitos previstos no art. 3º do Código Tributário Nacional, que delimita o conceito de tributo:

(...)

E, a despeito dos debates na doutrina e na jurisprudência, é irrelevante também, para a definição da natureza jurídica do pedágio, a existência ou não de via alternativa gratuita para o usuário trafegar. Essa condição não está estabelecida na Constituição. É certo que a cobrança de pedágio pode importar, indiretamente, em forma de limitar o tráfego de pessoas. Todavia, essa mesma restrição, e em grau ainda mais severo, se verifica quando, por insuficiência de recursos, o Estado não constrói rodovias ou não conserva adequadamente as que existem. Consciente dessa realidade, a Constituição Federal autorizou a cobrança de pedágio em rodovias conservadas pelo Poder Público, inobstante a limitação de tráfego que tal cobrança possa eventualmente acarretar. Assim, a contrapartida de oferecimento de via alternativa gratuita como condição para a cobrança de pedágio não é uma exigência constitucional. Ela, ademais, não está sequer prevista em lei ordinária. A Lei 8.987/95, que regulamenta a concessão e permissão de serviços públicos, nunca impôs tal exigência. Pelo contrário, nos termos do seu art. 9º, § 1º (alterado pela Lei 9.648/98), ‘a tarifa não será subordinada à legislação específica anterior e somente nos casos expressamente previstos em lei, sua cobrança poderá ser condicionada à existência de serviço público alternativo e gratuito para o usuário’.

6. Segundo a jurisprudência firmada nessa Corte, o elemento nuclear para identificar e distinguir taxa e preço público é o da compulsoriedade, presente na primeira e ausente na segunda espécie, como faz certo, aliás, a Súmula 545:

(...)

7. Em suma, no atual estágio normativo constitucional, o pedágio cobrado pela efetiva utilização de rodovias não tem natureza tributária, mas sim de preço público, não estando, consequentemente, sujeita ao princípio da legalidade estrita”.

Portanto, o STF resolveu a discussão sobre a natureza jurídica do pedágio no julgamento do mérito da ADI 800, ou seja, em processo de controle concentrado de constitucionalidade e, consequentemente, essa decisão constitui um precedente vinculante (art. 927, I, do CPC/2015).

Assim, não apenas o seu dispositivo (que declarou a constitucionalidade do Decreto nº 34.417/92, do Estado do Rio Grande do Sul), mas os fundamentos determinantes (ratio decidendi) do acórdão (sobre a natureza de preço público do pedágio) possuem eficácia vinculante.

Sobre o autor
Oscar Valente Cardoso

Professor, Doutor em Direito, Diretor Geral da Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador do Comitê Gestor de Proteção de Dados do TRF da 4a Região, Palestrante, Autor de Livros e Artigos, e Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Oscar Valente. A natureza jurídica do pedágio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6206, 28 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66047. Acesso em: 24 nov. 2024.

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