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Ordem do dia: desfiliação dos defensores públicos da OAB

Agenda 17/06/2018 às 12:00

Refletimos sobre a atuação da Defensoria Pública e a desnecessidade de seus membros estarem inscritos nos quadros da OAB para exercerem seu múnus público, à luz do STJ.

 

A Segunda Turma (T2) do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, no dia 1.° de março de 2018, nos autos do REsp n. 1.710.155/CE, dar interpretação conforme à Constituição ao artigo 3.°, § 1.º, do Estatuto da Advocacia e da OAB – EAOAB (Lei ordinária n. 8.906/94), no sentido de afastar a necessidade de inscrição na OAB dos membros da carreira da Defensoria Pública para exercício de suas atribuições e funções institucionais.

A 2.ª Turma seguiu precedente da Quinta Turma da própria Corte, nos autos do RHC n. 61.848/PA, DJe 17/08/2016, segundo o qual “os Defensores Públicos não são advogados públicos, possuem regime disciplinar próprio e têm sua capacidade postulatória decorrente diretamente da Constituição Federal”, utilizando-se como fundamento nosso artigo “Defensoria Pública na concretização de políticas públicas: um controle da aparente discricionariedade administrativa governamental”[1].

Antes de abordar a temática central do presente artigo, importante relembrar que a Defensoria Pública é prevista constitucionalmente como instituição permanente e essencial à Justiça, detentora de autonomia funcional, financeiro-orçamentária e administrativa (caput e §§ 3.º e 4.º do art. 134 e art. 168 da Constituição do Brasil – CRFB, c/c EC n. 45/2004, 74/2013 e 80/2014), como órgão extrapoder, desvinculado dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e também a eles insubordinado, assim como às demais instituições do Sistema de Justiça.  

É também órgão contrapoder, podendo e devendo exercer suas funções institucionais contra as Pessoas Jurídicas de Direito Público (§ 2.º do art. 4.º da Lei Complementar n. 80/94 – Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública – LONDP), inclusive perante os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos (art. 4.º, inc. VI, LONDP).

A Defensoria Pública tem por vocação-incumbência a defesa das pessoas necessitadas, entendidas como aquelas em situação de vulnerabilidade (jurídica, econômica, organizacional, circunstancial etc.), por meio da representação judicial e atuação extrajudicial, individual ou coletiva, em todos os graus de jurisdição e instância, e a promoção dos direitos humanos, convertendo-se em expressão e instrumento do regime democrático.

O Brasil adotou, na Constituição da República Federativa de 1988, um modelo específico e peculiar de salaried staff, assistência jurídica gratuita promovida por agentes públicos políticos (art. 4.°, § 5.º, da LC n. 80/94 – LONDP), exercendo uma parcela do Poder Público e, portanto, da soberania estatal, com capacidade postulatória decorrente diretamente da Constituição (art. 4.°, § 6.º, da LONDP), sendo remunerados pela atuação exclusiva, vedado o exercício de advocacia fora das atribuições institucionais (parte final do § 1.º do art. 134 da CRFB), fiscalizados por sua própria Corregedoria-Geral (órgão da Administração Superior – art. 5.º, inc. I, “d”; art. 53, inc. I, “d”; e art. 98, inc. I, “d”, da LONDP), sem recebimento de honorários advocatícios,  cujas verbas assim percebidas são destinados exclusivamente ao aparelhamento da Instituição Defensorial e à capacitação profissional de seus membros e servidores (art. 4.°, inc. XXI, da LONDP).

As Constituições brasileiras de 1824 e 1891 nada previram sobre assistência judiciária gratuita, assim como a Constituição de 1937, ao passo que a Constituição de 1934 (art. 113, 32) previu a assistência judiciária aos necessitados como obrigação do Poder Público (União e Estados), por meio da criação de órgãos especiais, sinalizando desejar modelo semelhante ao atual (CRFB – assistência jurídica pública integral e gratuita exclusiva da Instituição Defensoria Pública), o que foi seguido na Constituição de 1946 (art. 141, § 35), embora nesta a obrigação estatal não sugerisse a criação de órgãos especiais, afastando-se, no entanto, do modelo pro bono (assistência gratuita prestada por advogados privados de modo solidário e altruísta, sem participação estatal), mas permanecendo a possibilidade do modelo judicare, hoje mais aproximado da Advocacia Dativa.

A assistência jurídica gratuita prestada às expensas do Poder Público deve ser feita tão somente pela Defensoria Pública, respeitando-se os Constituintes originário e derivado. Consequentemente, a prestação desse serviço por meio de Advogados previamente inscritos em lista do Poder Judiciário ou nomeados pontualmente (modelo brasileiro judicare), configura verdadeira inconstitucionalidade progressiva ou norma ainda constitucional, principalmente em razão do art. 98 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), incluído pela Emenda Constitucional n. 80/2014, a qual estabelece o prazo de 8 (oito) anos para que a União, os Estados e o Distrito Federal instalem órgãos de execução da Instituição perante todas as unidades jurisdicionais (§1.º, art. 98, ADCT). A instalação deve ser progressiva, priorizando as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional (§1.º, art. 98, ADCT).

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Em decorrência do exposto, denota-se que a Constituição de 1988 criou uma instituição pública autônoma, essencial à Justiça e composta por membros com atribuições, deveres, prerrogativas e garantias especiais, com dinâmica normativa própria, cuja exigência de pertencimento a outro poder, ente, ordem ou órgão viola frontalmente sua essência constitucional, sua vocação e as garantias dos seus membros, os quais têm independência funcional e capacidade postulatória decorrente diretamente da Constituição e exclusivamente da nomeação e posse no cargo público (art. 4.°, § 6.°, da CRFB). 

Cada carreira das Instituições essenciais à função jurisdicional do Estado tem sua relevante missão, devendo se organizar e estruturar conforme suas peculiaridades, e, neste tocante, a Constituição foi extremamente clara, precisa e direta, determinando que cada uma das Procuraturas Constitucionais se organizasse através de lei complementar própria, específica e não geral, tomando cada uma delas a forma de lei orgânica de instituições a que se quer dar relevância constitucional: Ministério Público (art. 128, §5º); Advocacia Pública (art. 131, caput - referência expressa à Advocacia Geral da União, implicitamente aplicável às Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal) e Defensoria Pública (art. 134, §1º). 

O Min. Herman Benjamin, e os demais ministros da 2.ª Turma do STJ, interpretaram adequadamente a legislação federal a partir do texto constitucional, concluindo pela desnecessidade de inscrição nos quadros da OAB dos membros da Defensoria Pública para exercerem suas atribuições institucionais, remanescendo a inscrição apenas como critério de mérito e capacidade técnica para concursos públicos (arts. 26 e 71, caput e § 2.°, e 112, todos da LONDP – LC n. 80/94: DPU e DPDF)[2].

No entanto, o respeitado Ministro sugestionou que os membros da Defensoria Pública exercem advocacia contenciosa e consultiva, não sendo, pois, de todo inaplicável o EAOAB àqueles, “dada a similitude com a advocacia privada das atividades que realizam”.

Na verdade, o Ministro confundiu dois institutos diversos. A atividade da advocacia e o exercício da capacidade postulatória perante órgãos judiciais e administrativos, e da consultoria e da assessoria jurídicas. Em relação a estas últimas, importante ressaltar que o “exercício de tais funções é inerente às Procuraturas Constitucionais”, não sendo própria ou exclusiva da advocacia, conforme já decidiu o STF (ADI 1.539/DF, Min. Maurício Correia) e a identificação entre ambas se deve “à confusão criada entre os termos postular e advogar, utilizando-se este como sinônimo daquele, o que não se pode ter como absoluto”. E mais: 

“Observe-se que a postulação em juízo por quem não fosse advogado era admitida não apenas nos casos em que a parte poderia fazê-la diretamente, como na Justiça do Trabalho, mas também nos casos de atuação como representante judicial, por exemplo, sendo conferida aos titulados (bacharéis em Direito) e mesmo àqueles que não possuíam formação jurídica – e nem inscrição na Ordem -, nomeadamente para a assistência judiciária.” 

Exercer advocacia pressupõe ter capacidade postulatória, mas a atividade postulatória não implica necessariamente exercício de advocacia.

Na vertente interpretativa da 2.ª Turma do STJ, além de negar vigência às alterações operadas pelo Constituinte derivado, que na EC n. 80/2014 criou seção específica destinada à Defensoria Pública (Seção IV do Capítulo IV do Título IV da Constituição), o Ministro esvaziou de sentido a própria tipografia arquitetada pelo Constituinte originário, que desde a redação originária se referia à Defensoria Pública como Instituição independente das demais, aliás, cuja autonomia sempre esteve presente, apenas não explícita ou reconhecida, à semelhança do Ministério Público, com vocação peculiar e identidade institucional.

Ora, se ausentes no ordenamento jurídico pátrio uma expressa previsão legal acerca das prerrogativas, garantias e deveres dos membros da Defensoria Pública, estas podem ser facilmente extraídas de uma interpretação sistêmica e teleológica, ou, ainda, de aplicação meramente subsidiária e supletiva, extensível a todo e qualquer agente do Sistema de Justiça, e não da aplicação direta de uma lei ordinária (art. 134, § 1.°, CRFB: exigência de lei complementar) para suprir essa omissão numa visão dialógica de fontes normativas, sob o equivocado fundamento de similitude de atividades.

A Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (LONDP) e o EAOAB devem ser interpretados a partir da Constituição da República, e não o contrário, como ocorre amiúde nos bastidores do Direito.

Uma interpretação sistemática e teleológica, com extração da máxima eficácia da força normativa da Constituição e dos direitos fundamentais nela previstos, iria além das conclusões da 2.ª Turma do STJ, na medida em que Defensores Públicos não exercem advocacia, não consubstanciando sua atividade exercício de advocacia, seja privada, seja pública, cujo entendimento de advocacia institucional ou estatutária ficou superado em razão da promulgação da EC n. 80/2014[3] e da cisão que aprofundou a perspectiva topológica constitucional da Defensoria Pública em relação às demais instituições do Sistema de Justiça.

 O Estatuto da Advocacia e da OAB deve ser aplicado tão somente àqueles que exercem atividade de advocacia privada ou, no máximo, pública (divergência travada na ADI n. 5.334), não sendo a atividade postulatória entendida automaticamente como advocacia, pena de interpretação da Constituição de 1988 a partir do indigitado EOAB de 1994 (artigo 3.°, § 1.°, do EAOAB), caracterizando diversas inconstitucionalidades materiais e formais, em franca violação à autonomia institucional da Defensoria Pública.

A questão ainda continua aberta às divergências, pois a Suprema Corte não deliberou sobre o tema, restando pendente de julgamento a ADI n. 4.636/DF que veicula pretensão da OAB nacional de declaração de inconstitucionalidade do artigo 4.°, § 6.°, da LONDP, e a ADI 5.334, ajuizada pelo Procurador-Geral da República (PGR), em que se requer a declaração da inconstitucionalidade do § 1.º do art. 3.º da Lei n. 8.906/1994 (EAOAB), relativamente aos membros da Defensoria Pública e aos advogados públicos.

Naturalmente, a conclusão não será diversa daquela a que chegou o STJ por duas vezes até o momento, e, certamente, irá mais além, pois a realidade constitucional atual determina o afastamento dos membros da Defensoria Pública de qualquer exercício de advocacia, não justificando qualquer submissão ou filiação aos quadros da OAB, cuja inscrição não é obrigatória, muito menos facultativa, mas sim ilegal e inconstitucional, sendo a ordem do dia a imediata desfiliação da Ordem.


Notas

[1] Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22066/defensoria-publica-na-concretizacao-de-politicas-publicas. Acesso em 04 mar. 2018.

[2] Para compreensão das regras do concurso público da Defensoria Pública, leia o livro “Defensor Público Estadual: guia completo sobre como se preparar para a carreira” (JusPODIVM, 2017).

[3] Superação de entendimento do Autor no artigo “Defensor Público não exerce Advocacia Pública” quanto ao tema advocacia institucional ou estatutária após a edição da EC n. 80/2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23468/defensor-publico-nao-exerce-advocacia-publica. Acesso em 04 mar. 2018.

 

Sobre o autor
Ígor Araújo de Arruda

Defensor público em Pernambuco desde 2015. Ex-defensor público no Maranhão entre 2012 e 2015. Autor do livro "Defensor Público Estadual: guia completo sobre como se preparar para a carreira" (JusPodivm, 2 edições). Coautor nos livros "Teoria Geral da Defensoria Pública" (D'Plácido, 2020) e “Defensoria Pública, Constituição e Ciência Política” (JusPodivm, 2021). Aprovado defensor público no I concurso público da Defensoria Pública da Paraíba. Nomeado analista judiciário do TJPB. Aprovado analista jurídico da SESCOOP/PB (2010). Ex-advogado privado na Paraíba. Ex-membro da Comissão de Direitos Difusos e Relações de Consumo da OAB/PB. Autor de artigos jurídicos, com especial citação no STJ (RHC 61.848-PA, T5, DJe 17.08.2016). Ex-professor e coordenador no curso Mege entre 2015 e 2021. Pós-graduado em Direito Público (2011-2012).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARRUDA, Ígor Araújo. Ordem do dia: desfiliação dos defensores públicos da OAB. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5464, 17 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66481. Acesso em: 18 dez. 2024.

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