Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

A Carta Política e o sistema constitucional das crises.

A Constituição Federal de 1988 não admite nenhuma hipótese de "intervenção militar". Qualquer interpretação constitucional desse naipe é atentado contra a democracia e à República e, como tal, deve ser interpelado e banido do convívio político.

Resumo: Entre o direito democrático e a técnica de governo mediante exceções, o Brasil brinca de democracia. A Carta Política não admite exceção ao que a própria Lei Constitucional não faça distinção. Para efeito didático, o texto está dividido em duas partes: 1) Da “suposta” intervenção militar; 2) Força Normativa Democrática da Carta Política de 1988. Foi utilizado o método hipotético-dedutivo e uma pesquisa do tipo bibliográfica, apresentando-se a temática da intervenção constitucional e do golpe militar, para ao final concluir que não há diferença entre um e outro.

Palavras-chave: Carta Política; CF/88; Intervenção militar; Estado de Exceção; Força Normativa da Constituição.


INTRODUÇÃO

Com as recentes manifestações populistas que, de forma inconsciente, rogam pela intervenção militar, o Brasil mostra-se num ambiente democrático – que respeita opiniões – mas que não valoriza o que é democracia: especialmente a regra de ouro da democracia, que é a absoluta resistência política e jurídica a todas as possibilidades não-democráticas; tal como a tolerância que, em tese, admite tudo, menos a intolerância à democracia. As luzes âmbares se acendem e o céu, que antes era mais azul, vai se acinzentando com as falsas lembranças que clamam por uma ditadura que guardou em porões escuros e debaixo do tapete as verdades que com muito sofrimento vêm à tona, rompendo paradigmas de acordões políticos e de uma sociedade moralmente anestesiada.

O objeto deste artigo é investigar se há, de fato, uma possibilidade real (jurídica) de intervenção constitucional, ou seja, se é possível, sem romper com a Constituição, um governo militar que rechace a hipótese de instauração de um golpe de Estado. Partindo-se de um corte metodológico que analisa o sistema constitucional das crises, especialmente serão tecidos comentários a respeito da Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

O texto foi divido em duas partes, uma explicitando aspectos de uma suposta intervenção militar e outra trazendo a força normativa da democracia como hipótese à problematização que se resume neste momento de fragilidade experimentado, especialmente desde 2016 e com os últimos acontecimentos.


1. DA “SUPOSTA” INTERVENÇÃO MILITAR

Desde o início há que estabelecer que entre a intervenção militar e golpe militar, não há diferenças.

A Constituição Cidadã não admite exceção, é uma Carta Política que dirige e é dirigida pela/para a cidadania. Se o resultado de sua aplicação é diverso, isto se deve ao fato de que a interpretação que dela é feita não condiz com o Espírito da Constituição. Há, asseguradas pela Constituição na vigência do Estado Democrático, hipóteses de exceção que aparecem sob o nome de estado de defesa, estado de sítio, intervenção (que pode ser federal ou estadual), e garantia da lei e da ordem (GLO), previsões aludidas pelo Constituinte de 1985 na forma de “respostas imediatas aos conflitos internos” (AGAMBEN, 2004). Essas medidas são disciplinadas como sistema constitucional das crises e visam estabilizar a ordem constitucional, num primeiro momento, reestabelecendo a democracia como diretriz da disputa pelo poder:

O sistema constitucional das crises poderia ser definido como o conjunto ordenado de normas constitucionais que, informadas pelos princípios da necessidade, da proporcionalidade e da temporariedade, têm por objeto as situações de crise e por finalidade o restabelecimento da normalidade constitucional. (BAHIA, 2017, p.277)

No entanto, a utilização dessas medidas deve ser, além de excepcionalíssimas, pontuais e, evidentemente, a ultima ratio do governo. Vale destacar que, sob o regime democrático, as medidas de exceção são constitucionalmente definidas como ultima ratio; ao revés do regime autocrático em que o uso/sistemático dos meios de exceção se constitui em prima ratio, ou seja, a primeira opção. Cabe dizer que a Constituição acaba “prisioneira do círculo vicioso segundo o qual as medidas excepcionais, que se justificam como sendo para a defesa da constituição democrática, são aquelas que levam à sua ruína” (AGAMBEN, 2004, P. 20). Isto, evidentemente, se é dado a César o poder de César. Aliás, cabe mencionar de antemão que, sob a vigência das regras democráticas, a exceção não se equivale ao instrumental do dictator romano.

De acordo com ideários bastante nebulosos de sobreposição da segurança nacional, acautelados sob um quadro de inevitável rebaixamento da democracia, a partir da alegação de que a Constituição Federal de 1988 a suportaria, é que insurge a hipótese de “intervenção constitucional”; todavia, ali se encontra somente uma reserva presidencial de poder denominada Garantia da Lei e da Ordem (GLO):

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (grifo nosso).

Ainda no tocante à guarda suprema da autoridade civil (Presidente da República), mesmo os meios constitucionais de exceção mais drásticos impõem a obrigação hierárquica das Forças Armadas. Aliás, é de se destacar o papel das forças armadas, pois, como ressalta José Afonso da Silva (2010, p. 772-773):

Constituem, assim, elemento fundamental da organização coercitiva a serviço do Direito e da paz social. Esta nelas repousa pela afirmação da ordem na órbita interna e do prestígio estatal na sociedade das nações. São, portanto, os garantes materiais da subsistência do Estado e da perfeita realização de seus fins. Em função da consciência que tenham da sua missão está a tranquilidade interna pela estabilidade das instituições. É em função de seu poderio que se afirmam, nos momentos críticos da vida internacional, o prestígio do Estado e a sua própria soberania [...] Sua missão essencial é a de defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, o que vale dizer defesa, por um lado contra agressões estrangeiras em caso de guerra e, por outro lado, defesa das instituições democráticas, pois a isso corresponde a garantia dos poderes constitucionais, que, nos termos da Constituição, emanam do povo (art. 1º, parágrafo único).

Desta forma, não se exerce autoridade pelo uso das Forças Armadas, ou seja, não se governa pela força, mas pelo equilíbrio da democracia. Ocorre que, as medidas de exceção, mesmo adotadas no escopo de superação de uma crise interna, impõem restrições aos direitos das pessoas, por isso, como meios de reserva democrática, não são dadas, em discricionariedade, ao governante:

O estado de defesa e o estado de sítio compõem o sistema constitucional de crises, ou seja, o conjunto de prerrogativas públicas, constitucionalmente esculpidas, que atribuem ao Poder Executivo Federal poderes excepcionais para a superação de situações de crise institucional. As medidas adotáveis, como frisado, têm natureza excepcional. Assim sendo, devem ser temporárias, só utilizadas quando realmente necessárias, e, por fim, proporcionais à situação de crise que pretendem superar. O desrespeito a qualquer desses princípios ensejaria o rompimento das amarras constitucionais que sustentam o regime democrático. Em outras palavras, se medidas de exceção forem aplicadas em tempos de normalidade democrática, a Constituição estará sendo violada, configurando-se autêntico golpe de estado. (ARAUJO e NUNES JUNIOR, 2016, p. 515)

A regulação constitucional e democrática das medidas de exceção constituem, assim, forte obstáculo à Transmutação (in)Constitucional, notadamente para que a ultima ratio não se converta em prima ratio, bem como – na mesma lição romana de origem – não se confunda/iluda mais o imaginário popular entre majestas (poder ex parte principis) e Potestas in populo: poder autocrático e poder democrático.

A CF/88, então, estabelece a intervenção federal, o estado de defesa e o estado de sítio, na forma de uso reservado do poder democrático – sempre sob a tutela do poder civil e consoante as regras constitucionais de limitação e averiguação/sanção dos abusos cometidos:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

IV - aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas;

Art. 57. O Congresso Nacional reunir-se-á...

§ 6º A convocação extraordinária do Congresso Nacional far-se-á: (grifo nosso).

I - pelo Presidente do Senado Federal, em caso de decretação de estado de defesa ou de intervenção federal, de pedido de autorização para a decretação de estado de sítio e para o compromisso e a posse do Presidente e do Vice-Presidente da República (grifo nosso).

Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza (grifo nosso).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira (grifo nosso).

E, mais do que isso, haverá responsabilização dos abusos e apuração dos ilícitos cometidos sob a vigência dos meios de exceção:

Art. 140. A Mesa do Congresso Nacional, ouvidos os líderes partidários, designará Comissão composta de cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de defesa e ao estado de sítio (grifo nosso).

Art. 141. Cessado o estado de defesa ou o estado de sítio, cessarão também seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executores ou agentes (grifo nosso).

Parágrafo único. Logo que cesse o estado de defesa ou o estado de sítio, as medidas aplicadas em sua vigência serão relatadas pelo Presidente da República, em mensagem ao Congresso Nacional, com especificação e justificação das providências adotadas, com relação nominal dos atingidos e indicação das restrições aplicadas (grifo nosso).

Essas observações, de restrição ou de imposição de “não-fazer” no curso da modalidade de exceção imposta, devem-se ao fato notório de que a Carta Política de 1988 ancora-se nos preceitos do Estado Democrático de Direito. Distante desses limites apoia-se um Golpe à Constituição (BONAVIDES, 2009) – não como na década de 1990, contra os direitos sociais –, mas, de modo expresso, contra todos os direitos fundamentais.

Do passado oportunista

Esta forma-Estado – amparada na Democracia, na Cidadania e na plenitude dos direitos fundamentais: a começar dos princípios da Legalidade e da Dignidade – tem o lastro da história para conter o uso/sistemático dos meios de exceção. O caso histórico mais evidente remonta à Constituição de Weimar (art. 48) conferindo superpoderes ao Kaiserpräsident.

Reichspräsident – um tipo ideal anterior ao de Weimar – seria uma figura pública com comprovada “experiência” que pudesse dirigir as distopias parlamentares. Este modelo foi levado pelo sociólogo alemão Max Weber à própria feitura da Constituição alemã de 1919. Daí, em subsunção, terminou como Kaiserpräsident.

O líder cesarista aparece à moda militar como Napoleão I, ditador que teve sua posição confirmada por um plebiscito, ou então aparece à maneira burguesa: mediante confirmação plebiscitária, com aquiescência do Exército, de uma reivindicação ao poder, da parte de um político não-militar, como Napoleão III [...] As circunstâncias do afastamento de Bismarck demonstram a maneira pela qual o legitimismo hereditário das monarquias reage contra esses poderes cesaristas (WEBER, 1985, p. 74).

Proibitivamente – sob a guarida da legalidade que disciplina a discricionariedade –, dizemos que as recentes utilizações deste poder militar em episódios recentes, no tocante às operações de GLO, são medidas de exceção que só podem ser utilizadas quando as forças tradicionais de segurança pública não são eficazes diante da perturbação da ordem; por outras palavras, as determinações de GLO são provisórias e visam o restabelecimento do status anterior da sociedade, em locais e períodos determinados. Portanto, segue proibido a exegese antidemocrática dos mecanismos de contenção de crise, para além ou contra a Lei Constitucional.

Desse modo, proibitivamente, o constituinte da Carta Política não deixou brechas ao surgimento do César ou do Kaiser. Conhecedor da fragilidade da democracia, sobretudo “nova” na América Latina, o legislador de 1985 procurou afastar os arroubos da tomada de poder que se pudesse ascender com algum tipo de cesarismo e autocracia.

Em que pese tenhamos visto um Golpe a implantar uma Ditadura Inconstitucional em 2016 (MARTINEZ, 2017), ao menos o cesarismo in natura, como diagnosticado por Gramsci (2000), receberia o anteparo constitucional mínimo para que o manu militari fosse regulado pelos poderes civis constituídos.

Como em 2016 a Constituição não foi observada na integralidade de seus preceitos, em 2018 – com a suposta “intervenção militar” – tenta-se o mesmo curso. Quem pode o mais, pode o menos: Daí o impeachment do último governo, ainda que baseado em “arranhões de normas constitucionais” .

Outrossim, é possível que “apenas” um “arranhão” na Constituição seja ocasional e ainda assim reformule toda a condição político-institucional de um país?

Se um arranhão na Constituição é capaz de destituir o principal posto do Executivo, do que não seria capaz um deslize por completo, ou um Golpe à Constituição?

Como é que se materializa o direito?

Este arranhão deixou marcas; mas, todas as cicatrizes já estão à mostra?

De todo modo, é preciso criar barreiras culturais, políticas e institucionais para que as “marcas futuras” sejam tão-somente de materialização do direito no Estado Constitucional – e que seja suficientemente democrático a fim de não permitir outros arranhões na Constituição e na Política.

Assim, quem deturpa o texto da Carta Política, quer fazer entender, por intervenção militar, um aspecto de legalidade, um nuance de legitimidade. Tomar o poder com apoio popular.

Como não há um único inciso na CF88 que admita a ação fora ou além das regras democráticas, a suposta intervenção militar, se ocorresse, seria um golpe na mesma Constituição invocada pelos interventores ou golpistas.

Ainda é de se frisar que todo golpe caminha pela exceção, como Estado de Exceção que excede toda legalidade e legitimidade requerida pela normalidade constitucional. Ao exceder a legitimidade, visto que a mera legalidade pode ser ditada por César, a exceção acaba por excluir a democracia (AGAMBEN, 2004).

Essas permissões constitucionais anunciam o Estado de Exceção como regra, e por isso golpe, pois: “ele não só sempre se apresenta muito mais como uma técnica de governo do que como urna medida excepcional, mas também deixa aparecer sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica” (AGAMBEN, 2004, p. 18). A ideia, propriamente “golpista”, de uma intervenção militar pactua-se fora e contra a Constituição – e a democracia –, destinando-se de forma espúria o poder civil ao manu militari.


2. FORÇA NORMATIVA DEMOCRÁTICA DA CARTA POLÍTICA DE 1988

Portanto, o recrudescimento fascista, antidemocrático em defesa desta intervenção militar não passa de neologismo, falsificação constitucional, ideologia própria de quem arquiteta uma ditadura militar, como forma de poder autocrático: no sentido oposto de Constituição Democrática. Trata-se, no entanto, da mesma segurança jurídica, invocada à democracia, neste momento, que se ofertava aos primórdios do Estado de Direito. O que se observa desde o Princípio da Ótima Concretização da Norma – pari passu à regra da “bilateralidade da norma jurídica” – como autocontenção/autolimitação do Poder Político (MALBERG, 2001, p. 449-461 – tradução livre – grifo nosso).

Por conseguinte, em suas relações com os administrados, a autoridade administrativa não deve somente abster-se de atuar contra legem senão que ademais está obrigada a atuar somente secundum legem, ou seja, em virtude das habilitações legais. Finalmente, o regime do Estado de Direito implica essencialmente que as regras limitantes que o Estado impôs a si mesmo, em interesse de seus súditos, poderão ser alegadas por estes da mesma maneira que se alega o direito, já que somente com esta condição terão de constituir, para o súdito, verdadeiro direito [...] O regime do Estado de Direito significa que não poderão impor-se aos cidadãos outras medidas administrativas, que não sejam aquelas que estejam autorizadas pela ordem jurídica vigente, e, por conseguinte, exige-se a subordinação da administração tanto aos regulamentos administrativos quanto às leis.

Para os juristas democráticos, libertários, lúcidos não seria diferente, como em Canotilho, quando descreve o Princípio Democrático como “impulso social dirigente e transformador do status quo”, exatamente porque permite que os cidadãos se desenvolvam na sua integralidade (CANOTILHO, s.d, p. 286-287 - grifos nossos).

O princípio democrático, constitucionalmente consagrado, é mais do que um método ou técnica de os governados escolherem os governantes, pois como princípio normativo, considerado nos seus vários aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, ele aspira a tornar-se impulso dirigente de uma sociedade [...] O princípio democrático não se compadece com uma compreensão estática de democracia. Antes de mais, é um processo de continuidade transpessoal, irredutível a qualquer vinculação do processo político a determinadas pessoas. Por outro lado, a democracia é um processo dinâmico inerente a uma sociedade aberta e ativa, oferecendo aos cidadãos a possibilidade de desenvolvimento integral, liberdade de participação crítica no processo político, condições de igualdade econômica, política e social.

E sendo a democracia o sentido inverso, excludente e antagônico de autocracia, a referida intervenção militar (a partir de seus apologetas) deve ser combatida como descreve a Carta Política de 1988: como crime hediondo, nos preceitos do art. 5, XLIV.

XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Entendam-se grupos armados em análise constitucional extensiva, como grupos, indivíduos, partidos, plataformas políticas, setores arcaicos e “armados de ódio” à democracia. O que confere validade a esta contenção legal e legítima do Fascismo é o arco democrático que se construiu a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; mesmo objetivo que se seguiu na DECLARAÇÃO AMERICANA DOS DIREITOS E DEVERES DO HOMEM/1948.

Artigo XXVIII. Os direitos do homem estão limitados pelos direitos do próximo, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem-estar geral e do desenvolvimento democrático (grifo nosso).

Em defesa da Carta Política – como reserva da Força Normativa Democrática – o próprio Princípio da Supremacia da Constituição haveria de ser invocado, desde o Princípio Democrático (CANOTILHO, s/d) alicerçado com o fim da Segunda Grande Guerra:

Mas o conceito de Estado Democrático de Direito é predominantemente empregado em países capitalista, marcadamente com ideologias de socialdemocracia, tais como o Estado de Direito Democrático e Social no art. 28, I, da Lei Fundamental de Bonn de 1949, o Estado Democrático e Social do art. 2º da Constituição francesa de 1958 e o Estado Social e Democrático de Direito, no art. 1º da Constituição espanhola de 1978. Contudo, no art. 2º da Constituição portuguesa de 1976, inicialmente constou o Estado de Direito Democrático com vocação socialista (DIMOULIS, 2012, p. 167).

É possível que, se estivesse postado na antevisão de que a democracia seria atacada tão pouco tempo depois da promulgação da Carta Política de 1988, o constituinte tivesse guardado a grafia portuguesa, de Estado de Direito Democrático; pois, sem que o direito seja democrático o poder é autocrático.

Afinal, no golpe militar há um forte trauma social e institucional, desconstituindo-se a autoridade civil. Como qualquer tipo de golpe, o manu militari propõe saídas para crises fora do alcance legal. O golpe coloca o poder acima da Constituição, do bem e do mal. Alardeia-se a exceção para resolver problemas que as regras não teriam condições de fazer. Por isso, o Golpe à Constituição desmoraliza séculos de construção do direito constitucional libertário.

Assim, mesmo que em um período de síncope constitucional, segue inadmissível permitir um Estado de Exceção aos direitos e às garantias democráticas, pois esta não é a vontade consciente do povo. A Constituição é um documento político, melhor dizendo, é uma Carta Política que não pode ser tomada à força do povo que é seu signatário, seja por uma atuação governamental ilegítima, seja por uma intervenção militar inconstitucional.

Quando se diz da consciência constitucional, diz-se das cláusulas pétreas: respeito à autonomia dos Entes Políticos (União, DF, Estados e municípios); direito de escolher os representantes; Executivo, Legislativo e Judiciário atuantes e bem definidos; e, o mais importante de tudo, prevalência dos direitos e das garantias fundamentais como reserva constitucional da República e da Dignidade Humana.

Ao entorno desta consciência intangível posicionam-se os valores da pluralidade política, da dignidade da pessoa humana e da cidadania, bem como se alocam os objetivos da República, ao sabor da própria CF/88: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento saudável e sustentável; erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem quaisquer preconceitos e outras formas de discriminação. No aniversário de 30 anos da Constituição, não custa lembrar do que ela ainda nos pode ensinar.

Da Iluminação da Carta Política

Esta vinculação entre direito (legitimidade, liberdade) e democracia (dignidade, emancipação) equivale à natureza jurídica da Carta Política. No que ainda corresponde aos preceitos libertários da Iluminação do Direito.

Saint-Just (1989), grande leitor de Rousseau, sonhava com uma democracia igualitária sem pobres nem ricos, no âmbito de uma República virtuosa: "A paz, a abundância, a virtude pública, a vitória, tudo está no rigor das leis". Fora das leis, tudo é estéril e morto. No entanto, desenvolveu as bases teóricas do governo revolucionário e fez a apologia do Terror. Morto aos 26 anos teria tempo de publicar um livro impressionante, O Espírito da Revolução, em que apresentou suas ideias para uma Constituição revolucionária francesa. Entre outras coisas, tratou da educação: “A França ainda não promulgou leis sobre a educação no momento em que escrevo, mas provavelmente nós as veremos sair do corpo dos direitos do homem. Tenho pois apenas uma palavra a dizer: a educação na França deve ensinar a modéstia, a política e a guerra” (SAINT-JUST, 1989, p. 65). Ora, se a lei existe para que não se tenha guerra (ou não se faça “justiça com as próprias mãos”), por que a educação a ensinaria? Para que o povo pudesse se defender dos príncipes tiranos.

Do que também se depreende que, a natureza política é a própria Polis, a Política, o espaço público (e privado) de manifestação individual e coletiva, não-excludente, em que se forma o animal político em seu "fazer-política" – e de onde aqueles que procuram a salvação de suas almas devem se afastar (Weber, 1993). A Carta Política é a verdadeira Política de inclusão, de afirmação do ser político que assim se socializa.

Portanto, se a Política inclui, a natureza jurídica da Carta Política não pode ser excludente e, se apenas a democracia inclui, a Constituição legitima não pode ter outra natureza político-jurídica que não seja democrática. Dessa forma, a natureza jurídica da Carta Política deve incluir, como direito positivo, os discursos e as práticas emancipatórias de todo "fazer-política" democrático.

Esta é a primeira fase – afirmar-se constitucionalmente apenas direitos democráticos –, digamos assim, para que se inicie a base conceitual da Carta Política. Em seguida, como Força Normativa, a Constituição (formatada como Carta Política) deve se servir integralmente do Princípio do Império da Lei a fim de que a democracia inclusiva (portanto, popular) seja jurídica e fática. Construindo-se pilares jurídicos e culturais (inclusivos e participativos) para que a própria Constituição Democrática possa ser implementada, aprofundada e defendida com vigor. Como uma virtus (potência emancipadora) democrática da salus publica (a virtù como Prudência Democrática).

De tal modo, se bem reconhecermos que o direito democrático é de sua essência, isto é, fundamental à Constituição, logo entenderemos que os direitos humanos fundamentais têm exatamente a mesma correspondência para a "melhor virtude" da Carta Política.

Portanto, a Constituição Democrática, como Império da Lei democrática, efetiva-se tão logo se tenha um Estado Material de Direito, em que seja de legítimo direito a materialização mais profunda da democracia.

Neste sentido, a Carta Política é radical, indo às extremidades mais profundas das raízes democráticas: em que o animal político se torna sujeito de direitos, na transformação do dissenso em consenso regulado pelo direito.

Por fim, a Força Normativa Democrática da Constituição corrobora com o escopo da democracia inclusiva, e que tem por razão inicial o direito legitimado pelo processo civilizatório.

Pois, só há civilização onde prosperar a humanização. Do contrário, afirma-se a razão instrumental do mesmo direito que sustenta as constituições não-democráticas.

Trata-se de uma natureza jurídica que se constrói politicamente; do dissenso democrático (que exclui de per si a intolerância à democracia) ao consenso legítimo do direito.

Na fórmula política que deriva da Carta Política, sobressai o Estado de Direito Democrático de Terceira Geração. Porque é a forma-Estado em que o presente resolve democraticamente as heranças do passado (Modernidade Tardia) e prospecta o futuro.

É a forma política em que cultura e teleologia tem planos comuns.

É a maneira político-jurídica do presente repelir a miséria humana provocada pelo capital predatório, articulando-se com uma educação para o futuro: uma educação crítica e permanente na busca pelo conhecimento científico e tecnológico transformador do presente.

É um tipo-Estado que não se contenta com o se tem, ainda que seja um programa por realizar. A Carta Política, então, lhe cabe como farol e obrigação de fazer e de zelar.

Neste aspecto, a Carta Política é (nomologicamente) um "fazer-sendo", pois é a partir do "fazer-política" democrático que se garante e se aprofunda, concomitantemente, a Política, reserva institucional da Carta Política: agora como provedora de legitimidade ao direito democrático.

Assim, sob a Carta Política, o direito, a política democrática e a teleologia estão articulados na forma do Estado de Direito Democrático de Terceira Geração – tanto em termos da Razão de Estado, redesignada pela cultura democrática, quanto pelo Império da Lei (Estado de Direito) que emana com vigor da Força Normativa Democrática da Carta Política.


CONCLUSÃO PARCIAL

Como não poderia ser diferente, é possível concluir que não existe uma intervenção militar e, assim sendo, a intervenção militar traduz-se em golpe. Golpe este que não é contra o Estado somente, mas sim contra os brasileiros e as brasileiras que ficam, novamente, à mercê de interesses antirrepublicanos e com as mãos atadas sem as possibilidades dadas pela democracia.

A tarefa constante de denunciar a intervenção militar como uma medida ilegítima é uma bandeira que deve ser empunhada pela sociedade, é um combate contra a regressão, é uma luta contra o Estado de Exceção. De maneira especial, a Constituição traçou inúmeras tarefas que precisam ser implementadas com mais urgência do que as medidas governamentais que ultimamente ganham espaço e até prestígio, ou seja, a preocupação do Brasil é a de ter um Estado Social efetivo, com direitos e garantias fundamentais acessíveis às pessoas, com governos representativos, legisladores militantes pelo povo e um judiciário que dá vida à Constituição.

O caminho reverso seria mais do que deletério, significaria, mais uma vez, retumbar as vozes das elites e dos grupos hegemônicos dominando o Poder, significaria o completo calar das minorias e a perpetuação do abismo entre as classes sociais.

Retomando-se a questão da intervenção constitucional, é um desvio epistemológico, pois o Exército está (constitucionalmente) sob o comando do Presidente e, uma tomada do poder de forma desobediente (à hierarquia constitucional) é inconstitucional e inadmissível no Estado democrático de Direito: é ato e crime contra o povo. As crises políticas precisam ser resolvidas pela própria política, a partir da construção de um processo civilizatório que se permita abrir para a participação popular.

Nossa última intervenção civil-militar que o Brasil noticia durou 21 anos e colocou a democracia sob o júdice do AI-5, juntamente com a Constituição e a vontade popular, cedendo lugar ao interesse da Lei de Segurança Nacional.

Por isso, finalizando-se, antes de pedir pela intervenção militar que nauseia a democracia, a pauta popular precisa ser a defesa e a exigência do cumprimento da Constituição como verdadeira Carta Política. Portanto, e por fim, não existe intervenção militar, isto é a ruptura constitucional frente à soberania popular, e dos mais graves crimes contra à República. Pois que, aqui, corrompe-se não apenas um ou outro sujeito, e seus deveres, mas todo o Texto Constitucional republicano e seus direitos democráticos.

Na democracia não se pode brincar de fazer democracia, deve-se punir o fascismo com a Força da Lei. Menos do que isso é tergiversar com a CF88, é iludir a justiça, é pactuar com o golpe que quer impor uma ditadura civil-militar e seguir o Fascismo.


BIBLIOGRAFIA

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.

ARAUJO, Luiz Alberto David. NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 20. ed. São Paulo: Editora Verbatim, 2016.

BAHIA, Flávia. Direito constitucional. 3ª ed. Recife : Armador, 2017.

BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 4ª ed. São Paulo : Malheiros, 2009.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª Edição. Lisboa-Portugal : Almedina, s/d.

DIMOULIS, Dimitri et al. Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). Volume III. Nicolau Maquiavel II. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.

MALBERG, Raymond Carré de. Teoría general del Estado. Ciudad de México: Facultad de Derecho/UNAM; Fondo de Cultura Económica, 2001.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teoria Geral do Estado de Direito de Exceção: Ditadura Inconstitucional. Pesquisa de Pós-Doutorado em Ciências Políticas. UNESP/Marília, SP: [s.n.], 2017.

SAINT-JUST, Louis Antoine Léon de. O espírito da revolução e da Constituição na França. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1989.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

WEBER, Max. Weber. Textos selecionados (Os Pensadores). 3ª ed. São Paulo : Abril Cultural, 1985.

_____ Ciência e Política: duas vocações. 9ª ed. São Paulo: Cultrix, 1993.

Sobre os autores
Vinícius Scherch

Graduado em Direito pela Faculdade Cristo Rei, Cornélio Procópio - Paraná (2010). Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UNOPAR, Campus Bandeirantes - Paraná (2014). Graduado em Gestão Pública pela UNOPAR, Campus Bandeirantes-Paraná (2015). Mestre em Ciência Jurídica pela UENP -Jacarezinho. Advogado na Prefeitura Municipal de Bandeirantes - Paraná.

Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!