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A teoria do adimplemento substancial no Direito Civil brasileiro

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4 TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL

Seguindo entendimento natural após a compreensão dos institutos trazidos pela Teoria Geral dos Contratos, bem como pela Teoria Geral das Obrigações, podemos considerar como natural o avanço para, enfim, a compreensão do objeto fim do presente trabalho.

A Teoria do Adimplemento Substancial tem sua origem no Direito Inglês, com seu primeiro registro oficial datando da década de 70 do século XVIII. Tal registro valioso trata-se de conteúdo muito citado, inclusive constante de arquivo da Universidade de Harvard, sendo que traz uma lide entre um reclamante inglês, nos anos setenta do século XVIII, de nome Boone, que havia transmitido ao réu, chamado Eyre, direitos sobre uma plantação e um lote de negros localizados na região conhecida como Índias Ocidentais, ao preço de £500 no ato e outros pagamentos anuais de £160.

Covenant on a deed, whereby the plaintiff conveyed to the defendant the equity of redemption of a plantation in the West Indies, together with the stock of negroes upon it, in consideration of £500 and an annuity of £160 per annum for his life; and covenanted that he had a good title to the plantation, was lawfully possessed of the negroes, and that the defendant should quietly enjoy. The defendant covenanted, that the plaintiff well and truly performing all and every thing therein contained on his part to be performed, he the defendant would pay the annuity. The breach assigned was the non-payment of the annuity. Plea, that the plaintiff was not, at the time of making the deed, legally possessed of the negroes on the plantation, and so had not a good title to convey.

To which there was a general demurrer.

LORD MANSFIELD.—The distinction is very clear, where mutual covenants go to the whole of the consideration on both sides, they are mutual conditions, the one precedent to the other. But where they go only to a part, where a breach may be paid for in damages, there the defendant has a remedy on his covenant, and shall not plead it as a condition precedent. If this plea were to be alIowed, anyone negro not being the property of the plaintiff would bar the action. Judgment for the plaintiff. (Harvard Law School, Boone v. Eyre, Banco Aberto de Casos da Escola de Direito da Universidade de Harvard, 2013) [1]

Em razão de divergências quanto ao entregue por Boone, a saber, a plena posse dos negros na plantação, desejava Eyre esquivar-se dos pagamentos anuais, ao que o julgador, Lord Mansfield, aplicou a – ainda não existente de maneira mais formal à época – que viria a ser conhecida como “doctrine of substantial performance in contract law”, ou Teoria do Adimplemento Substancial, no Brasil, entendendo que, se Eyre deixasse de efetuar os pagamentos anuais, a propriedade lhe sairia por preço muito menor ao que valia. Para Lord Mansfield, restava direito a Eyre quanto a uma indenização pelo que deixou de receber, porém não lhe cabia deixar de efetuar o pagamento, em razão do adimplemento substancial da obrigação por parte de Boone, a quem, em aspectos gerais, Lord Mansfield deu o ganho de causa.

No Direito Italiano já existe a previsão do Adimplemento Substancial, porém sem uma especificação quanto aos critérios objetivos para sua aplicação:

Art. 1455 Importanza dell'inadempimento Il contratto non si può risolvere se l'inadempimento di una delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo all'interesse dell'altra (1522 e seguenti, 1564 e seguente, 1668, 1901). (Código Civil Italiano, Livro Quarto, Título II, Capítulo XIV, Seção I)[2]

Nesse trecho, fica estabelecido que o inadimplemento, se de pouca importância, não resolve o contrato, protegendo-se, porém, o direito da outra parte.

No Brasil, a primeira vez em que tal teoria apareceu em um acórdão do Superior Tribunal de Justiça foi em 1995, de acordo com artigo publicado na revista eletrônica especializada em Direito, Conjur, pelo Ministro Antônio Carlos Ferreira, do próprio STJ, sendo o REsp de número 76.362/MT, com julgamento em 11 de dezembro daquele ano. Segundo o citado Ministro, “seu resumo é este: a) dois segurados promoveram ação de cobrança para receber a cobertura securitária devida em razão de acidente de veículo;”. Continua relatando o Ministro, seguindo o processo: “b) os segurados deixaram de pagar a última parcela na data do sinistro, o que foi confessado na inicial;”, e conclui com a informação do acórdão mato-grossense: “c) apreciada a ação pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso, entendeu a corte que o segurado tinha “obrigação primordial” de pagar o “prêmio do seguro”. Sem isso, nada poderia exigir da seguradora, na hipótese de se achar em estado de inadimplência.”

Ministro Antônio Carlos Ferreira relata ainda o desfecho dado pelo Superior Tribunal de Justiça no caso: “No STJ (...), o relator ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. deu provimento ao recurso utilizando-se da doutrina do adimplemento substancial.”

Na interpretação do Ministro Antônio Carlos Ferreira, o entendimento do Relator foi acertado, pois se baseou na interpretação de que a seguradora não poderia “dar por extinto o contrato de seguro, por falta de pagamento da última prestação do prêmio”, pelos motivos que elencou: o costumeiro recebimento das prestações com atraso, nunca tendo se oposto a isso, e sendo prática autorizada em contrato, não encontrando sentido recusar-se apenas diante da ocorrência de sinistro que ensejasse o pagamento da indenização; o adimplemento substancial do contrato; e a necessidade da resolução contratual ser requerida em juízo, em razão da então possibilidade de se avaliar a importância do adimplemento. Também nas palavras do Ministro Antônio Carlos Ferreira:

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A introdução da teoria do adimplemento substancial no STJ é um perfeito exemplo da virtuosa associação entre doutrina e jurisprudência, um diálogo cada vez mais raro em função do enorme acervo que os tribunais são levados a vencer todos os dias e, infelizmente, pela postura mais reativa que parte dos doutrinadores acabou por assumir em seus ofícios nas universidades e nos livros. (Antônio Carlos Ferreira, 2015, Revista Eletrônica Conjur)

O entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça tem se guiado pela sobriedade, buscando sobretudo a efetivação do equilíbrio entre as partes, através da prestação jurisdicional. O julgamento do REsp 1051270 / RS, como possível de se constatar pela Ementa, é um belíssimo exemplo da melhor aplicação possível do Direito Civil, observando-se seus Princípios:

DIREITO CIVIL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL PARA AQUISIÇÃO DE VEÍCULO (LEASING). PAGAMENTO DE TRINTA E UMA DAS TRINTA E SEIS PARCELAS DEVIDAS. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. DESCABIMENTO. MEDIDAS DESPROPORCIONAIS DIANTE DO DÉBITO REMANESCENTE. APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. 1. É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos". 2. Nessa linha de entendimento, a teoria do substancial Adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato. 3. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o réu pagou: "31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido". O mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante do substancial adimplemento da avença. 4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título. 5. Recurso especial não conhecido. (STJ – Resp: 1051270 RS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Data da Publicação: 05/09/2011).

No julgado em tela, ao considerar o adimplemento substancial do recorrido, o Superior Tribunal de Justiça efetivamente fez jus a seu nome, oferecendo a melhor prestação jurisdicional possível ao caso concreto. Ora, se após o pagamento de 86% da obrigação total, que se tratava de mera questão de prestações pecuniárias sucessivas, a instituição de crédito ainda puder se utilizar de uma Ação de Reintegração de Posse e assim recuperar o bem, que nessa altura já é muito mais do pagador que da instituição bancária – afinal, 86% está absurdamente mais próximo de 100% do que de 0% - , tal situação, sim, compreenderia um rompimento total com o Princípio da Boa-Fé, com o risco até mesmo de incidir em enriquecimento sem causa, em afronta ao Artigo 884, Caput, do Código Civil Brasileiro, in verbis: “Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”

A despeito desse assunto, aliás, não cabe preocupação quanto ao enriquecimento sem causa da outra parte, o parcialmente inadimplente, pela aplicação dessa teoria, conforme trecho final do julgado exposto, “Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título”, e também em conformidade com o Artigo 886: “Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido.”

Cabe ressaltar a necessidade de se verificarem determinados requisitos para que se possa pleitear a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial. Ao julgar o REsp 1581505 / SC, o Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira, da Quarta Turma, apresentou o que entende serem tais requisitos:

a) a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes; b) o pagamento faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio; c) deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários. (STJ – Resp: 1581505 / SC, Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira . Data da Publicação: 28/09/2016)

No julgamento em questão, do REsp 1581505 / SC, tais requisitos não estavam presentes, razão pela qual foi desprovido o Recurso.

Podemos destacar, dentre os requisitos para a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial, o que melhor se enquadra no próprio conceito de adimplemento substancial: o da proporcionalidade do cumprimento da obrigação em razão da pretensão de resolução contratual. Exemplo relevante acerca do tema é o Resp 1636692 / RJ, no qual a Terceira Turma considerou, em um caso envolvendo o inadimplemento de um terço da obrigação, a inaplicabilidade da referida teoria.

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. CONTRATOS DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. AÇÃO DE RESOLUÇÃO DE CONTRATOS. ALEGAÇÃO DE CUMPRIMENTO PARCIAL DOS CONTRATOS. INADIMPLEMENTO DE PARCELAS MENSAIS E SEMESTRAIS. FATOS INCONTROVERSOS. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. INAPLICABILIDADE NA ESPÉCIE. 1. Discussão acerca da aplicação da chamada Teoria do Adimplemento Substancial, instituto que pode, eventualmente, restringir o direito do credor à resolução contratual previsto no artigo 475 do CC/02 (art. 1.092, § único, do CC/16), tendo por fundamento a função de controle do princípio da boa-fé objetiva. 2. "O adimplemento substancial constitui um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o pedido de indenização e/ou adimplemento, de vez que a primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa-fé (objetiva)". 3. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 4. Caso concreto em que restou incontroverso que a devedora inadimpliu parcela relevante da contratação (cerca de um terço do total da dívida contraída), mostrando-se indevida a aplicação, pelo Tribunal de origem, da Teoria do Adimplemento Substancial. 5. Necessidade de retorno dos autos à origem a fim de que proceda ao julgamento dos demais pedidos constantes da petição inicial, bem como da reconvenção. 6. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ – Resp: 1636692 / RJ, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino . Data da Publicação: 18/12/2017)

Nesse caso, o adimplemento por parte do recorrido foi de aproximadamente 66% da obrigação, apenas. Logo, não se pode considerar como ínfima (e, nesse caso, fazendo menção novamente ao entendimento do Ministro Antônio Carlos Ferreira durante julgamento do REsp 1581505 / SC) a parcela da obrigação não adimplida, restando portando incabível a Teoria do Adimplemento Substancial.

Vale ressaltar entendimento corrente de que a substancialidade do cumprimento da obrigação não se verifica apenas com uma conta matemática. Nas palavras de Flávio Tartuce: “a análise do adimplemento substancial não deve ser meramente quantitativa, levando-se em conta somente o cálculo matemático do montante do cumprimento do negócio” (2015). E continua explicando o que se deve analisar: “Deve-se considerar também o aspecto qualitativo, afastando-se a sua incidência, por exemplo, em situações de moras sucessivas, purgadas reiteradamente pelo devedor, em claro abuso de direito.” (2015).

Na mesma linha de Flávio Tartuce, a respeito da não aplicabilidade da Teoria do Adimplemento Substancial com base apenas em critérios matemáticos, também vêm sendo produzidos acórdãos pelos ministros do STJ:

2.- Ressalvada a hipótese de evidente relevância do descumprimento contratual, o julgamento sobre a aplicação da chamada "Teoria do Adimplemento Substancial" não se prende ao exclusivo exame do critério quantitativo, devendo ser considerados outros elementos que envolvem a contratação, em exame qualitativo que, ademais, não pode descurar dos interesses do credor, sob pena de afetar o equilíbrio contratual e inviabilizar a manutenção do negócio. (STJ – Resp: 1581505 / SC, Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira . Data da Publicação: 28/09/2016)

Em Recurso Especial em ação versando sobre compra e venda de imóveis, mesmo entendimento teve a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça:

4.- No adimplemento substancial tem-se a evolução gradativa da noção de tipo de dever contratual descumprido, para a verificação efetiva da gravidade do descumprimento, consideradas as conseqüências que, Jurisprudência/STJ - Acórdãos Página 1 de 2 da violação do ajuste, decorre para a finalidade do contrato. Nessa linha de pensamento, devem-se observar dois critérios que embasam o acolhimento do adimplemento substancial: a seriedade das conseqüências que de fato resultaram do descumprimento, e a importância que as partes aparentaram dar à cláusula pretensamente infringida. (STJ – Resp: 1215289 / SP, Relator Ministro Sidnei Beneti, Data da Publicação: 21/02/2013)

A despeito de tais observações, acerca da inviabilidade da análise quanto à aplicação da Teoria do Inadimplemento Substancial exclusivamente com base na percentualidade do adimplemento, devemos considerar a posição do próprio STJ acerca do tema, ao buscar uma solução prática a esse conflito, ainda que não exato, porém sendo um passo na direção da transformação do abstrato em algo mais concreto.

Naturalmente considerando-se a contínua e acertada discussão sobre a necessidade de se analisarem outros elementos além do percentual adimplido, podemos utilizar o entendimento, bastante recente, do Ministro Lázaro Guimarães, Desembargador Convocado do TRT-5:

DIREITO CONTRATUAL. CIVIL. CONTRATO DE COMPRA E VENDA. IMÓVEL À PRESTAÇÃO. INADIMPLEMENTO. AÇÃO DE RESCISÃO DO CONTRATO, REINTEGRAÇÃO NA POSSE E INDENIZAÇÃO POR FRUIÇÃO. INCONSISTÊNCIA. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. POSSIBILIDADE. Cumprindo a parte mais de 80% de sua obrigação, não se mostra razoável a rescisão do Instrumento Particular de Promessa de Compra e Venda de imóvel impondo-se o reconhecimento do adimplemento substancial pela incidência do princípio da boa-fé objetiva, a teor do artigo 422, CC/2002, e consagrada no art. 51, inc. IV do CDC. Apelação Cível conhecida e desprovida. (Resp 1351670 / GO. Relator Ministro Lázaro Guimarães. Data da Publicação 14/05/2018)

Tal entendimento reforça a percepção quanto à necessidade de se observarem elementos essenciais para a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial, nesse caso havendo o adimplemento de mais de 80% da obrigação.

Sobre os autores
Luci Mendes de Melo Bonini

Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Professora de Filosofia e Pesquisadora no Mestrado em Políticas Públicas da Universidade de Mogi das Cruzes. Área de interesse: Direitos Humanos e Políticas Públicas.

Nelton Torcani Pellizzoni

advogado, professor pela Universidade de Mogi das Cruzes.

Luiz Agueda Santos

Advogado trabalhista, mestrando em Direito na PUC-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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