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O inconstitucional combate ao crime

Agenda 16/08/2018 às 17:13

Os paradigmas desvelados pela recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro sobre conflitos armados.

Stella Awards é o nome de um popular - e originalmente fictício - prêmio surgido nos Estados Unidos, cujo propósito seria o de celebrar as maiores aberrações advindas de processos judiciais. A nomenclatura é uma referência ao caso Stella Liebeck versus McDonald´s, no qual a rede de lanchonetes foi condenada a pagar uma polpuda indenização a uma cliente (cerca de três milhões de dólares), após esta derramar café quente no próprio colo, uma vez que não a teriam avisado que o café estava quente.

Casos igualmente escabrosos, reais ou fantasiosos, são frequentemente associados ao prêmio, como o de uma mulher indenizada por tropeçar no próprio filho em uma loja de brinquedos ou o de um ladrão recompensado por ficar preso por alguns dias na garagem da casa que pretendia roubar. De tão popular, o prêmio ganhou uma versão real, o True Stella Awards, administrado por uma revista especializada, que busca catalogar verdadeiras aberrações jurídicas decididas nos tribunais.

No Brasil, não se tem notícia de catalogação semelhante. Porém, se alguém se propuser a fazê-lo, já há um bom caso recente para receber a “premiação”. Trata-se da decisão proferida pela 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no julgamento da apelação nº 0015288-05.2008.8.19.0001, derivada de uma ação em que a esposa e os filhos de um pedreiro, morto durante confronto entre policiais e traficantes, buscam indenização junto ao Estado.

O pedido foi deferido pelo Tribunal, o que não chega a ser novidade em casos semelhantes, em que ações policiais vitimam inocentes. Contudo, a fundamentação utilizada nesse julgamento foi inédita e verdadeiramente digna de inclusão no rol das distorções que o Poder Judiciário é capaz de produzir.

De acordo com a Turma Julgadora do Tribunal fluminense, a indenização é devida mesmo que não tenha sido um disparo da polícia a vitimar o pedreiro, uma vez que o simples fato de permitir o confronto das forças de segurança pública com os criminosos já seria “inconstitucional”. Na decisão, em que se faz referências à repressão do regime militar, consignou-se que “a política de enfrentamento aberto de delinquentes, com trocas de tiros entre forças policiais e criminosos, não consoa com o conceito de segurança pública disposto no art. 144, caput, da Constituição da República, sendo resquício da ordem constitucional e política anterior, que, em detrimento da pública, prezava a segurança nacional e operava a partir de conceitos como o de guerra interna revolucionária ou subversiva”.

Com isso, concluiu-se que a jurisprudência anterior (entendimentos reiterados dos tribunais), no sentido de ser devida a indenização apenas quando é a polícia a atirar na vítima, não deveria mais ter aplicação, impondo-se, agora, indenizar os parentes daquela de qualquer modo, mesmo, repita-se, que tenha sido um traficante a matá-la.

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Muito mais do que uma mudança de entendimento, a decisão desvela toda uma nova e distorcida concepção do combate ao crime. Além de criar a responsabilidade objetiva do Estado por danos gerados em qualquer conflito, o julgado culmina por colocar em risco toda a possibilidade de efetivo enfrentamento das organizações criminosas.

Talvez por se cuidar de uma câmara cível (e não criminal), tenha-se ali tomado o confronto armado entre policiais e traficantes como uma opção do Estado, traduzindo uma suposta “política de enfrentamento”, que, em realidade, simplesmente não existe. Os tiroteios rotineiramente havidos no Rio de Janeiro não integram absolutamente nenhuma política pública deliberada, até porque seria insano tomar por voluntária a exposição de forças policiais a uma dinâmica que frequentemente resulta na morte de seus integrantes. Se tais enfrentamentos ocorrem, é por absoluta falta de opção.

De outro modo, como seria possível conciliar o combate ao crime, para prover a segurança pública (igual dever constitucional do Estado), sem que disso possa resultar o enfrentamento armado? Como deveriam agir policiais que, ao realizarem qualquer operação em zonas dominadas pelo tráfico de drogas, são recebidos a bala por criminosos fortemente armados, não raro em poderio superior ao da própria polícia? Devem obrigatoriamente recuar ao primeiro disparo dos bandidos? Passará a ser este o sinal para a rendição policial?

A única forma de evitar o confronto entre policiais e criminosos é deixando de combatê-los, não mais cumprindo qualquer efetiva ação repressiva, mantendo-os livres para que exerçam sua atividade ilícita e, como é comum, também se matem e a outros tantos inocentes em seus conflitos próprios. Seria isso que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entende como adequada política de combate ao crime?

É fato que as maiores mazelas na segurança pública do país encontram, sim, raiz na Constituição Federal de 1988, cujo excessivo garantismo acabou colaborando decisivamente para que nos tornássemos uma nação de impunidade reinante. Entretanto, se essa compreensão for ampliada, a ponto de se julgar contra a Constituição a realização de ações policiais absolutamente intrínsecas as dinâmicas urbanas, é melhor decretar-se a falência do Estado, fechar os batalhões e entregar as chaves às quadrilhas. Afinal, em última análise, acabarão sendo estas a definir quando a polícia poderá agir ou não.

Sobre o autor
Fabricio Rebelo

Pesquisador nas áreas Jurídica e de Segurança Pública, Coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (CEPEDES), Professor (cursos livres), Autor de "Articulando em Segurança: contrapontos ao desarmamento civil", Assessor Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBELO, Fabricio. O inconstitucional combate ao crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5524, 16 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68331. Acesso em: 23 nov. 2024.

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