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Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen

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Agenda 02/11/2018 às 15:00

2. Direito e Moral

As normas morais como normas sociais

Kelsen destaca que existem outras normas, ao lado das normas jurídicas, que regulam a conduta dos homens entre si, as quais também podem ser classificadas como normas sociais. Estas tais normas são conhecidas sob a designação de Moral, e a ciência que as tem por objeto é a Ética. Nas palavras de Kelsen: “Na medida em que a Justiça é uma exigência da Moral, na relação entre a Moral e o Direito está contida a relação entre a Justiça e o Direito”.

Kelsen informa que quando se afirma que a Moral, assim como o Direito, regula a conduta humana, estatuindo deveres e direitos, isto é, que estabelece autoritariamente determinadas normas, a pureza do método da ciência jurídica é posta em perigo, pois já não se sabe o que é Moral e o que é Direito.

Aduz ainda que o caráter social da Moral é, por muitas vezes, posto em questão, afirmando que, além das normas morais que dispõem sobre a conduta de um homem em face de outro, existem ainda normas morais que prescrevem uma conduta do homem em face de si mesmo (como a norma que proíbe o suicídio, a coragem e a castidade), o que por si só afasta tal caráter social.

Kelsen finaliza este item afirmando que: “...só por causa dos efeitos que esta conduta tem sobre a comunidade é que ela se transforma, na consciência dos membros da comunidade, numa norma moral. Também os chamados deveres do homem para consigo próprio são deveres sociais”. Diante desta exposição verifica-se que Kelsen, não obstante negue à Moral o caráter social, na hipótese em que regula a conduta de um homem em face de si mesmo, a tem como um dever social

A moral como regulamentação da conduta interior;

Neste item Kelsen ressalta que a concepção de que o Direito serve a regular a conduta externa e a Moral serve a regular a conduta interna é errônea, pois ambas as normas servem a regular as condutas humanas internas e externas. Exemplifica este raciocínio alegando que “...quando uma ordem jurídica proíbe o homicídio, proíbe não apenas a produção da morte de um homem através da conduta de um outro homem, mas também uma conduta interna, ou seja, a intenção de produzir um tal resultado.”

Para Kelsen as normas que prescrevem condutas que correspondem às inclinações ou aos interesses egoísticos dos destinatários das normas são supérfluas, uma vez que o homem tende a seguir às suas próprias inclinações, sem a necessidade de portar-se segundo os comandos de tais normas. Neste sentido, ele destaca que: “...uma norma que prescreve uma determinada conduta humana, apenas tem sentido se a situação se a situação deve ser diferente daquela que resultaria do fato de cada qual seguir as suas próprias inclinações ou procurar realizar os interesses egoístas que atuariam na ausência da validade e eficácia de uma ordem social.”

Para este autor a Moral não prescreve senão que os indivíduos devem, em suas condutas, combater as suas inclinações, não realizar os seus interesses egoísticos, mas agir por outros motivos.

Como exemplo do que fora exposto por Kelsen, da tentativa de distinção entre Direito e Moral, podemos citar os atos de execução que um determinado soldado nazista, subordinado hierarquicamente ao seu comandante (durante a 2ª Grande Guerra Mundial) pratica, exterminando presos em campos de concentração. O seu ato é conforme o ordenamento jurídico daquele Estado, ou seja, é um ato lícito, mas é contrário à ordem Moral, por razões óbvias.

Finalizando este item, Kelsen assevera que: “...o conceito de moral não pode ser limitado à norma que disponha: reprime as suas inclinações, deixa de realizar os seus interesses egoísticos. Mas a verdade é que somente se o conceito de Moral for assim delimitado é que Moral e Direito se podem distinguir pela forma indicada: referir-se aquela a conduta interna ao passo que este também dispõe sobre a conduta externa”.

A moral como ordem positiva sem caráter coercitivo

Como visto no capítulo 1, o que, essencialmente, distingue a Moral do Direito é que enquanto este se utiliza do caráter coercitivo para que o preceito estabelecido na norma seja cumprido, ou se torne eficaz, a ordem Moral não possui tal poder. O que o descumprimento de uma ordem ou preceito Moral faz nascer no indivíduo é o aparecimento de um sentimento de desconforto, causado pela reprovação da comunidade onde o indivíduo está inserido.

Kelsen ressalta que uma ordem moral não prevê o estabelecimento de quaisquer órgãos centrais para a aplicação de suas normas. Da mesma forma, uma ordem jurídica primitiva, sem o estabelecimento de tal estrutura, a esta se assemelha.

O ponto principal no estabelecimento da distinção entre Direito é Moral, segundo Kelsen, não é o estabelecimento de quais condutas as duas ordens prescrevem ou proíbem, mas como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana. No caso do direito, a conduta humana desejada é orientada pela possibilidade de imposição de um mal, em caso de seu descumprimento. Tal mal constitui o estabelecimento da coerção, elemento este que não se mostra presente nas ordens morais.

O Direito como parte da Moral

Kelsen destaca que o Direito é, por sua própria essência, moral. Isto porque a conduta que as normas jurídicas prescrevem ou proíbem também é prescrita ou proibida pelas normas da ordem Moral. Desta forma, se uma ordem social prescreve uma conduta que a Moral proíbe, ou proíbe uma conduta que a Moral prescreve, esta ordem não é Direito porque não é justa. Neste sentido, Kelsen afirma que o Direito pode ser moral, mas não tem necessariamente de o ser. No entanto admite-se a exigência de que o Direito deve ser moral, isto é, deve ser justo, pois esta é uma condição própria da idéia de Direito.

Diante do exposto até então percebe-se que existe uma íntima relação entre Direito e Moral, a ponto de diferenciarem-se apenas quanto a forma de aplicação de seus comandos. Finalizando esta concepção, Kelsen assevera que: “...quando e afirma que o Direito por sua própria essência tem um conteúdo moral ou constitui um valor moral, com isso afirma-se que o Direito vale no domínio da Moral, que o Direito é uma parte constitutiva da ordem moral, que o Direito é moral, e portanto, é por essência justo.

Relatividade do Valor Moral;

A Moral, em sua essência, é um valor tido como importante para uma determinada sociedade, capaz de assegurar, quando observado, uma relativa paz social. Ocorre que tais valores variam bastante, segundo aspectos temporais e espaciais, ou seja, o que é considerado justo para uma determinada sociedade pode não ser justo para outra sociedade, ou até mesmo o que é considerado justo em uma época pode não ser em outra época, ou ainda, o que é considerado justo para uma classe ou profissão pode não ser para outra (classe ou profissão), dentro de um mesmo povo.

Nesta direção Kelsen afirma que: “...nada há que tenha de ser havido por necessariamente bom ou mau, justo ou injusto em todas as possíveis circunstâncias, que apenas há valores morais relativos – então a afirmação de que as normais sociais devem ter um conteúdo moral, devem ser justas, para poderem ser consideradas como Direito, apenas pode significar que estas normas devem conter algo que seja comum a todos os sistemas de Moral enquanto sistemas de justiça”.

O valor Moral tanto é relativo que Kelsen recorda que, segundo a convicção de muitos, uma guerra pode ser considerada uma valor moral porque possibilita a comprovação das virtudes de uma nação. Desta forma, como não se tem como palpável a existência de uma moral absoluta (pois esta seria proveniente de uma autoridade supra-humana) toda ordem Moral é, apenas e tão somente, relativa. Apontando nesta direção, Kelsen preleciona que: “...quando não se pressupõe qualquer valor moral absoluto, não se tem qualquer possibilidade de determinar o que é que tem de ser havido, em todas as circunstâncias, por bom e mau, justo e injusto”.

Para Kelsen o que pode ser comum a todos os sistemas morais possíveis não é outra coisa senão a circunstância de eles serem normas sociais, ou seja, normas que prescrevem uma determinada conduta de homens – imediata ou mediatamente – a outros homens. Desta forma, a afirmação de que o Direito, é por sua natureza, moral, não quer dizer que ele tenha um determinado conteúdo, mas que ele é uma norma social que estabelece um “dever-ser”.

Como já exposto em linhas passadas, Kelsen volta a afirmar que o Direito e a Moral não é uma questão sobre o conteúdo do Direito, mas uma questão sobre a sua forma. Finalizando esta parte da discussão, Kelsen afirma que a existência de uma moral mínima não constitui requisito de validade das normas jurídicas, e que o valor de paz não representa um elemento essencial ao conceito de Direito.

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Separação do Direito e da Moral

Constitui objeto principal desta obra a separação de todos os outros conhecimentos do conhecimento jurídico, ou seja, do Direito. É este o intuito principal do autor ao elaborar a sua teoria pura do Direito. Como exposto no capítulo 1, Kelsen não descarta a importância de tais ciências afins na análise das normas jurídicas e de sua efetividade, mas considera, por uma questão meramente metodológica, importante a separação não só do Direito e da Moral (como parte integrante da Ética), como também a separação do Direito e da Sociologia, e de outras ciências afins.

Acerca desta separação, Kelsen destaca que: “Quando uma teoria do Direito positivo se propõe a distinguir Direito e Moral em geral e Direito e Justiça em particular, para os não confundir entre si, ela volta-se contra a concepção tradicional, tida como indiscutível pela maioria dos juristas, que pressupõe que apenas existe uma única Moral válida – que é, portanto, absoluta – da qual resulta uma Justiça absoluta. A exigência de uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente desta Moral absoluta, única válida, da Moral por excelência, de a Moral”.

Para Kelsen, se se pretende fazer a separação entre Direito e Moral, não quer dizer que entre o Direito e a Moral, ou entre o Direito e a Justiça, não haja correspondência ou alguma afinidade, até porque o conceito de “bom” não pode ser determinado senão como “o que deve ser”, o que por sua vez corresponde a uma norma.

Tal distinção ocorre também porque a validade de uma ordem jurídica independe de estar situada dentro dos limites de uma ordem Moral. Quando ocorre de uma ordem jurídica estar em sintonia com uma ordem moral estar-se-á diante de uma situação ideal, mas não necessariamente tem que ser assim, até porque o valor moral muitas vezes é relativo dentro de uma sociedade, em razão, principalmente, das diferentes classes sociais e das diferentes profissões, como tratado anteriormente.

Justificação do Direito pela Moral

Para Kelsen, uma justificação do Direito positivo pela Moral é possível apenas quando entras as normas do Direito e da Moral possa existir um Direito moralmente bom e um Direito moralmente mau.

Neste diapasão, este autor frisa que: “A necessidade de distinguir o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que, do ponto de vista de um conhecimento científico do Direito positivo, a legitimação deste por uma ordem moral distinta da ordem jurídica é irrelevante, pois a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objeto, mas apenas tem de o conhecer e descrever”. Com estas palavras, Kelsen quis dizer que não constitui objetivo do Direito fazer juízo de valor sobre o seu objeto. Tal tarefa pode pertencer a Moral.

O operador do Direito tem por escopo analisar as normas jurídicas, descartando, pela praticidade que se exige, divagações sobre o valor moral de seus preceitos. Dentro desta ótica, Kelsen ilustra que: “A tese, rejeitada pela Teoria Pura do Direito, mas muito espalhada pela jurisprudência tradicional, de que o Direito, segundo a sua própria essência, deve ser moral, de que uma ordem social imoral não é Direito, pressupõe, uma Moral absoluta, isto é uma Moral válida em todos os tempos e em toda a parte. De outro modo não poderia ela alcançar o seu fim de impor a uma ordem social um critério de medida firme, independente de circunstâncias de tempo e de lugar, sobre o que é direito (justo) e o que é injusto”.

Kelsen finaliza este item alegando que a ciência jurídica não tem de legitimar o Direito, não tem de justificar a ordem normativa que lhe compete. Sua função é, apenas e tão somente conhecê-la e descrevê-la.


3. Direito e Ciência

As normas jurídicas como objeto da ciência jurídica

As normas jurídicas, como bem se sabe, correspondem ao objeto da ciência jurídica, de modo que a conduta humana, segundo Kelsen, somente se enquadra como norma jurídica se estiver determinada nestas, como pressuposto ou conseqüência.

Teoria jurídica estática e teoria jurídica dinâmica

De forma bastante resumida, uma vez que estes temas serão objeto dos capítulos 4 e 5 desta obra, Kelsen explica que a teoria jurídica estática tem por objeto o Direito como um sistema de normas em vigor, ou sejam o Direito no seu momento estático, enquanto que a teoria jurídica dinâmica tem por objeto o processo jurídico em que o direito é produzido e aplicado, o Direito no seu movimento.

Norma jurídica e proposição jurídica

Para Kelsen, proposições jurídicas “...são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica – nacional ou internacional – dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por este ordenamento, deve intervir certas conseqüências pelo mesmo ordenamento determinadas”. Já as normas jurídicas, ao contrário, não são juízos, são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos, e, como tais, comandos, imperativos, permissões e atribuições de poder ou competência. Em todo caso, como destaca Kelsen, não são instruções (ensinamentos).

Na distinção entre norma e proposição jurídica deve-se destacar a diferença entre a função do conhecimento jurídico e a função da autoridade jurídica que aplica o Direito, através de órgãos específicos do Estado. A ciência jurídica tem por missão conhecer – de fora – o Direito e descrevê-lo com base em sua experência cognitiva.

O âmago desta distinção é abordado por Kelsen quando este revela que: “A ciência jurídica, porém, apenas pode descrever o Direito; ela não pode, como o Direito produzido pela autoridade jurídica (através de normas gerais ou individuais), prescrever seja o que for”. Completando esta exposição, Kelsen põe a discussão que nenhum jurista pode negar a diferença básica existente entre uma lei publicada em jornal oficial e um comentário jurídico sobre esta hipotética lei.

Kelsen finaliza este item afirmando que a proposição jurídica que descreve a validade de uma normal penal que prescreve a pena de prisão para o furto apenas poderá traduzir que, se alguém comete furto, deverá ser punido. No entanto, o dever-ser da proposição jurídica não possui um sentido prescritivo, mas um sentido descritivo, uma vez que apenas a norma jurídica, enquanto Direito, possui a capacidade jurídica de exercer atos de coerção (caso necessários) para a aplicação de suas disposições, o que revela a sua natureza prescritiva.

Ciência causal e ciência normativa

Neste item Kelsen mostra a distinção existente entre a ciência normativa e a ciência causal, sendo a primeira um produto cultural, estabelecido pelos homens, visando uma determinada ordem e paz social, e a segunda um produto decorrente dos fenômenos naturais.

Para Kelsen a natureza é uma ordem das coisas ou um sistema de elementos que estão ligados uns com os outros como causa e efeito, ou seja, segundo um princípio designado de causalidade. Já a sociedade, constitui uma ordem normativa de conduta humana. No entanto, não se tem razão suficiente para afastar os atos humanos como sendo elementos da natureza, uma vez que o homem está inserido e faz parte do meio natural.

Contudo, existe uma necessidade de distinção entre as ciências da natureza e a ciência jurídica, pois segundo Kelsen: “Somente na medida em que o Direito for uma ordem normativa da conduta dos homens entre si pode ele, como fenômeno social, ser distinguido da natureza, como ciência social, ser separada da ciência da natureza”.

Causalidade e imputação; lei natural e lei jurídica

Este item é uma decorrência do item anterior, uma vez que os fatos da natureza são regulados pela relação causa e efeito (causalidade), enquanto que a conduta humana é lastreada pelo fenômeno da imputação, que consiste na determinação/especificação de uma conduta exigível. Quando se imputa algo a alguém significa dizer que aquela coisa se tem por obrigatória, sob pena da aplicação de uma sanção específica.

Kelsen destaca que o princípio da causalidade norteia a lei natural, ao passo que o princípio da imputação deve nortear a lei jurídica. E neste sentido, a distinção entre lei natural e proposição jurídica deve ser sustentada com firme decisão. Com “dever-ser” exprime-se usualmente a idéia do ser prescrito, não a do ser-competente (ser autorizado) ou a dor ser-permitido.

Para Kelsen, quando se afirma que uma determinada norma está “em vigor” ou tem “vigência” e que a mesma prescreve determinada conduta, a autoriza (para ela confere competência) ou a permite (positivamente) não pode significar que esta conduta efetivamente se realiza: ela pode apenas significar que tal conduta deve realizar-se.

Mais uma vez, Kelsen afirma que a proposição jurídica “pode” ser também designada de lei jurídica, na hipótese em que é aplicada por analogia a lei natural. Frise-se que a proposição jurídica “pode” e não “deve”, uma vez que a regra é que o dever-ser é atributo das normas jurídicas. Contudo, Kelsen lembra que esta conexão descrita na lei jurídica é, na verdade, análoga à conexão de causa e efeito expressa na lei natural – sendo, no entanto, diferente dela.

Sobre o fenômeno da imputabilidade Kelsen esclarece que: “Imputável é aquele que pode ser punido pela sua conduta, isto é, aquele que pode ser responsabilizado por ela, ao passo que o inimputável é aquele que – porventura por ser menor ou doente mental – não pode ser punido pela mesma conduta, ou seja, não pode ser por ela responsabilizado”. Em outras palavras, de forma mais clara ainda: “...a imputação não consiste noutra coisa senão conexão entre o ilícito e a conseqüência do ilícito”.

O princípio da imputação no pensamento dos primitivos

Kelsen demonstra crer que o princípio da imputação está na base da interpretação da natureza pelos homens primitivos. Isto porque, segundo ele, os primitivos não compreendiam os fenômenos da natureza com uma simples relação de causa e efeito, segundo o princípio da causalidade, pois a aceitação deste princípio é herança das sociedades modernas. Kelsen entende que:”O homem primitivo interpreta os fatos que aprende através de seus sentidos segundo os mesmos princípios que determinam as relações com os seus semelhantes, designadamente, segundo normas sociais”.

Este autor ressalta, ainda, que os homens primitivos apreciam ou julgam a sua conduta reciprocamente, por suas próprias normas consuetudinárias, uma vez que estes tem bem claro o senso comum do que é benéfico e do que é prejudicial. Estas sociedades primitivas acreditavam que tais normas provinham de uma autoridade supra-humana e que, por isso, deveriam ser obedecidas, pois tinham um valor moral absoluto. Segundo Kelsen, as normas mais antigas da humanidade são provavelmente aquelas que visam frenar e limitar os impulsos sexuais e agressivos.

Kelsen afirma que está na base da vida social dos primitivos a regra da retribuição (retaliação). Esta regra compreende tanto uma pena, como um prêmio. Neste sentido, o pressuposto e a conseqüência estão ligados um ao outro, não segundo o princípio da causalidade, mas segundo o princípio fundamental da imputação. Desta forma, se o indivíduo de um dado grupo se comporta bem, deve ser recompensado (premiado), ao passo que se um indivíduo se porta mal, deve ser punido.

Segundo a máxima do princípio retributivo, tais prêmios e penas são impostos, respectivamente, quando o indivíduo se conduz de acordo com a norma desejada ou quando se comporta de forma contrária ao preceito normado (consuetudinariamente). Como nesta época se ignora a idéia de Estado, tais penas e prêmios são aplicados por Deus (força supra-humana), sob a forma de castigos, más colheitas, insucesso na caça, derrotas em guerras, doenças, mortes – penas – e de boas colheitas, vitória nas guerras, saúde, longa vida, sucesso na caça – prêmios.

Para Kelsen, “Aquilo que, do ponto de vista da ciência moderna, é natureza, é, para o primitivo, uma parte de sua sociedade como uma ordem normativa cujos elementos estão ligados entre si segundo o princípio fundamental da imputação”.

O surgimento do princípio causal a partir do princípio retributivo

Segundo Kelsen, é mais provável que a lei da causalidade tenha surgido da norma da retribuição. “É o resultado de uma transformação do princípio da imputação, em virtude do qual, na norma da retribuição, a conduta não-reta é ligada à pena e a conduta reta é ligada ao prêmio”.

Kelsen cita que uma das primeiras formulações da lei causal é o célebre fragmento de Heráclito: “Se o Sol não mantiver no caminho prescrito (preestabelecido), as Erínias, acólitas da Justiça corrigi-lo-ão”. Aqui a lei natural aparece ainda como lei jurídica.

Em outras palavras, Kelsen aqui ressalta que a idéia de prevalência do princípio retributivo fez com os povos primitivos e até mesmo a sociedade do início do século XX acreditassem que se alguém tinha uma vida próspera era por que merecia, porque os seus atos tinham sido bons aos olhos de um ser supra-humano, que, por conseguinte, o havia abençoado e o oposto, que este ser supra-humano o havia amaldiçoado. Esta relação de prevalência do princípio retributivo, neste sentido, se confunde com o princípio causal (causa – boas condutas – efeito – bênçãos / causa – más condutas – efeito - maldições).

Ciência social causal e ciência social normativa

Para Kelsen, uma distinção básica existe apenas entre as ciências naturais e aquelas ciências sociais que interpretam a conduta recíproca dos homens, não segundo o princípio da causalidade, mas segundo o princípio da imputação; ciências que não descrevem como se processa a conduta humana determinada por leis causais, no domínio da realidade natural, mas como ela, determinada por normas positivas, por normas postas através de atos humanos, se deve processar.

Para Kelsen, devemos apenas considerarmos válida uma ordem normativa quando ela é globalmente considerada, eficaz; e que, quando um ordem normativa, particularmente uma ordem jurídica, é eficaz, isto é, quando a conduta humana que a regula, considerada de modo global, lhe corresponde, podemos afirmar: se os pressupostos que estão estatuídos nas normas de ordem social efetivamente se verificam, também as conseqüências que nestas normas são ligadas àqueles pressupostos se verificarão com toda a probabilidade; ou, no caso de uma ordem jurídica eficaz: se foi praticado um ilícito previsto pela ordem jurídica, também será provavelmente realizada a conseqüência do ilícito por aquela mesma ordem jurídica prescrita.

Kelsen, ao contrário do que afirmam e acreditam os representantes da chamada jurisprudência “realística” não aceita a idéia de que o Direito não é outra coisa senão uma profecia sobre como os tribunais decidirão, ou seja, que o Direito é uma ciência de Previsão. Em um trecho deste item Kelsen ressalta que: “A tarefa da ciência jurídica não é, em qualquer dos casos, fazer profecias sobre as decisões dos tribunais. Ela dirige-se não só ao conhecimento das normas jurídicas individuais, postas pelos tribunais, mas também a conhecimento das normas gerais, produzidas pelos órgãos legislativos e pelo costume, a respeito das quais a custo seria possível uma previsão, pois a Constituição normalmente apenas predetermina o processo da produção legislativa, e não o conteúdo das leis”.

Diferenças entre o princípio da causalidade e o princípio da imputação

Kelsen afirma que a forma verbal em que são apresentados tanto o princípio da causalidade como o princípio da imputação constitui um juízo hipotético onde um determinado pressuposto é ligado com uma determinada conseqüência. Para ele “O princípio da causalidade afirma que quando é A, B também é (ou será). O princípio da imputação afirma que quando A é, B deve ser”.

A diferença reside no fato que a imputação designa uma relação normativa: se tal fato descrito na norma ocorrer, um determinado fato jurídico deve ser aplicado como conseqüência.

O problema da liberdade

Sobre a distinção fundamental entre imputação e causalidade, Kelsen lança as bases para a discussão do problema da liberdade (da conduta humana). Para tanto ele, ressalta que sobre o fato de que há um ponto terminal da imputação, mas não um ponto terminal da causalidade, se baseia a oposição entre a necessidade, que domina na natureza, e a liberdade que dentro da sociedade existe e se mostra essencial para as relações normativas dos homens.

Para Kelsen, dizer que o homem não é livre significa que a sua conduta, considerada como fato natural, é, por força de uma lei da natureza, causada por outros fatos, isto é, tem de ser vista como efeito destes fatos e, portanto, como determinada por eles.

Kelsen afirma que livre é aquele que não está sujeito à lei da causalidade. Para ele: “Costuma afirmar-se: o homem é responsável, isto é, capaz de imputação moral ou jurídica, porque é livre ou tem uma vontade livre, o que, segundo a concepção corrente, significa que ele não está submetido à lei causal que determina a sua conduta, na medida em que sua vontade é, deveras, causa de efeitos, mas não é ela mesma o efeito de causas. Somente porque o homem é livre é que o podemos fazer responsável pela sua conduta, é que ele pode ser recompensado pelo eu mérito, é que se pode esperar dele que faça penitência pelos seus pecados, é que o podemos punir pelo seu crime”.

Para Kelsen “...a causalidade é, por sua própria essência, coação irresistível. O que em terminologia jurídica se chama coação irresistível é apenas um caso especial de coação irresistível, ou seja, aquele dada cuja existência a ordem jurídica não prevê qualquer responsabilidade por uma conduta pela qual, quando produzida por outras causas, o homem que atue por elas causalmente determinado é responsável”.

Kelsen informa que muitos autores crêem poder resolver o problema do conflito entre a liberdade e o princípio de uma causalidade, pela seguinte maneira: “...um indivíduo é moral ou juridicamente responsável por um evento quando este é provocado pelo seu ato de vontade ou pelo fato de ter ele ter omitido um ato de vontade que evitaria este evento. Não é responsável por um evento quando este, patentemente, não é provocado pelo seu ato de vontade ou pela omissão de um ato de vontade que evitaria o evento. Afirmar que o homem é livre não traduz senão a sua consciência de poder agir como quer (ou deseja)”.

Segundo Kelsen, para que um determinado indivíduo possa ser responsabilizado pelo ato de vontade que praticara, antes é necessário que o mesmo tenha consciência da ilicitude praticada. Diante deste fato, as ordens jurídicas modernas pressupõem um tipo médio de homem e um tipo médio de circunstâncias externas sob as quais os homens atuam, causalmente determinados.

Outros fatos, que não a conduta humana, como conteúdo de normas sociais

Segundo Kelsen, uma norma pode proibir uma determinada conduta humana que tenha um efeito marcadamente determinado (proibição do homicídio), mas também pode prescrever uma conduta humana que seja condicionada não apenas pela conduta de outro homem, mas por outros fatos, diversos da conduta humana, como por exemplo a norma moral do amor ao próximo: se alguém sofre, deves procurar liberta-lo do seu sofrimento; ou a norma jurídica: se alguém, por virtude de doença mental, é perigoso para a comunidade, deve ser compulsoriamente internado.

Na verdade, para Kelsen, a conseqüência não é imputada apenas a uma conduta humana, ou a conseqüência não é somente imputada a uma pessoa, mas também a fatos ou circunstâncias exteriores.

Normas categóricas

Kelsen ensina que normas categóricas são aquelas normas sociais que prescrevem uma determinada conduta humana sem fixar quaisquer pressupostos ou que as prescrevem em todas e quaisquer circunstâncias.

As normas categóricas estão em contraposição às normas hipotéticas. Podem ser classificadas como normas categóricas, por exemplo, as que prescrevem que não se deve matar o próximo, não se deve furtar ao próximo, não se deve mentir ao próximo. As normas que prescrevem uma simples omissão não podem ser normas categóricas.

Para Kelsen, uma ação positiva não pode ser prescrita incondicionalmente (sem a fixação de pressupostos), uma tal ação apenas é possível sob determinadas condições ou pressupostos. Isto mostra que as normas gerais de uma ordem social empírica, incluindo as normas gerais de omissão, apenas podem prescrever uma determinada conduta sob condições ou pressupostos bem determinados, e que, por isso, toda norma geral produz uma conexão entre dois fatos, conexão essa que pode ser descrita pelo enunciado segundo o qual, sob um determinado pressuposto, deve realizar-se uma determinada conseqüência.

Desta forma, apenas as normas individuais podem ser categóricas, uma vez que prescrevem, autorizam ou positivamente permitem uma determinada conduta de determinado indivíduo sem a vincular a determinado pressuposto. É o que ocorre quando um tribunal decide que um certo órgão tem que proceder a certa execução num determinado patrimônio (especificado), ou que um certo órgão deve pôr na prisão, por um determinado período de tempo, um certo réu.

Negação do dever-ser; o Direito como “ideologia”

Neste item Kelsen frisa que “A possibilidade de uma ciência normativa, isto é, de uma ciência que descreve o Direito como sistema de normas, é, por vezes, posta em questão com o argumento de que o conceito de dever-ser, cuja expressão é a norma, é sem sentido ou constitui tão-somente uma ilusão ideológica”.

A Teoria Pura do Direito, como ciência específica do Direito, concentra a sua visualização sobre as normas jurídicas e não sobre os fatos da ordem do ser, quer dizer: não a dirige para o querer ou para o representar das normas jurídicas, mas para as normas jurídicas como conteúdo de sentido.

Sobre esta questão ideológica do Direito, Kelsen afirma que: “Com efeito, a imputação não liga o ato de produção jurídica com a conduta conforme o Direito, mas o fato, determinado pela ordem jurídica como pressuposto, com a conseqüência pela mesma ordem jurídica fixada. A imputação é, da mesma forma a causalidade, um princípio orientador do pensamento humano e, por isso, é, tanto ou tampouco com aquela, uma ilusão ou ideologia, pois – para falar como Hume ou Kant – também aquela não é mais que um hábito ou categoria de pensamento”.

Este autor destaca, ainda, que só quando se entenda “ideologia” como oposição à realidade dos fatos da ordem do ser, isto é, quando por ideologia se entenda tudo que não seja realidade determinada por lei causal ou uma descrição desta realidade, é que o Direito enquanto norma é uma ideologia. Se por “ideologia” se entende uma representação não-objetiva, influenciada por juízos de valor subjetivos, os quais encobrem, obscurece ou sufoca o objeto do conhecimento e se se designa por “realidade”, não apenas a realidade natural, como objeto da ciência da natureza, mas todo o objeto do conhecimento da ciência jurídica, o Direito positivo como realidade jurídica, então também uma representação do Direito positivo se tem de manter isenta de ideologia.

Finalizando esta abordagem, Kelsen afirma que: “Se se considera o Direito positivo, como ordem normativa, em contraposição com a realidade do acontecer fático que, segundo a pretensão do Direito positivo deve corresponder a este (se bem que nem sempre lhe corresponda), então podemos qualificá-lo como “ideologia” (no primeiro sentido da palavra)”. Afirma ainda que: “...a Teoria Pura do Direito tem pronunciada tendência antiideológica. Comprova-se esta sua tendência pelo fato de, na sua descrição do Direito positivo manter este isento de qualquer confusão com um Direito “ideal” ou “justo”.

Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel. Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5602, 2 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69158. Acesso em: 22 nov. 2024.

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