Capa da publicação Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen: reflexão analítica e síntese da obra
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Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen

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4. Estática Jurídica

Neste capítulo, Kelsen abordará as normas do direito positivo tal como postas aos membros de uma determinada sociedade. Tal capítulo pressupõe a base para o entendimento do capítulo seguinte, onde Kelsen irá expor a sua mais importante contribuição à ciência jurídica, quando aborda a estrutura hierárquica das normas jurídicas, que tanto influenciou o pensamento jurídico ocidental, principalmente após a segunda guerra mundial. De tal apresentação, surgiu a idéia da “Pirâmide de Kelsen”, que tem a Constituição em seu topo, a qual constitui o fundamento de validade das demais normas jurídicas.

De início, Kelsen aborda a questão das sanções do Direito nacional e do Direito internacional, discorrendo, a princípio, que as sanções aparecem sob duas formas diferentes: como pena e como execução (execução forçada). Segundo o mesmo, ambas constituem um mal, ou como queiram alguns (sob a forma negativa), a privação de um bem: no caso da pena capital, a privação da vida, no caso das penas corporais, outrora usadas (como a privação da vista, a amputação de uma mão ou da língua), a privação do uso de um membro do corpo, ou o castigo corretivo: a provocação de dores; no caso da pena de prisão, a privação da liberdade; no caso das penas patrimoniais, a privação de valores patrimoniais, especialmente da propriedade. Ainda segundo Kelsen, a privação de outros direitos pode ser cominada como pena: tal a perda dos direitos políticos, a demissão, etc.

Para Kelsen, ambas as espécies de sanções – pena e execução (civil) – são aplicadas tanto pela autoridade judicial como pela autoridade administrativa, em processo para o efeito previsto.

De outro lado, as sanções do Direito internacional geral não são, na verdade, qualificadas quer como penas, quer como execução civil, mas representam, tal como estas, uma privação compulsória de bens, ou seja, uma lesão, estatuída pela ordem jurídica, de interesse de um Estado por parte de um outro Estado.

Em outro momento, Kelsen destaca que o ilícito (que constitui a violação ao preceito estabelecido na norma positivada) não é negação, mas pressuposto do Direito. E continua, afirmando que tanto a concordância dos atos conforme as normas, como também a violação das mesmas (normas) constitui pressuposto do Direito, e não apenas a violação da norma, como se costuma pensar.

Ainda sobre este assunto, Kelsen destaca: “Não é qualquer qualidade imanente e também não é qualquer relação com uma norma metajurídica, natural ou divina, isto é, qualquer ligação com um mundo transcendente ao Direito positivo, que faz com que uma determinada conduta humana tenha de valer como ilícito ou delito – mas, única e exclusivamente o fato de ela ser tornada, pela ordem jurídica positiva, pressuposto de um ato de coerção, isto é, de uma sanção”.

Kelsen diz que a norma, ao contrário do indivíduo, não pode ser “lesada” pelo ato de coerção dirigido contra ele.

Quando trata do Dever jurídico e da norma jurídica, Kelsen faz questão de frisar que deve haver uma distinção entre dever jurídico e norma jurídica, pois uma norma jurídica é quem institui um dever jurídico.

O dever pressupõe obrigação, e tal obrigação é decorrência do estabelecimento de uma regra, feita através de uma norma. A sanção, por conseguinte, poderia ser aplicada tanto em casos de violação de tais normas (hipótese mais comum), como em casos de observância de determinadas normas (sanções-prêmios), em situações em que a própria norma tenha estabelecido tais recompensas, como estímulo à sua efetividade, como ocorre, com mais freqüência, na seara tributária.

Para Kelsen, existe uma diferença entre Dever jurídico e dever-ser, sendo o primeiro termo usado, exclusivamente, para definir uma ordem jurídica positiva, que não possui qualquer espécie de implicação moral, enquanto que o segundo termo (dever-ser) é usado sempre de forma associada a idéia de um valor moral, mesmo que tal valor seja relativo, já que não se deve admitir a validade de uma moral abosoluta.

Segundo Kelsen, devido é apenas o ato de coerção que funciona como sanção. São estas as suas palavras: “Se se diz que quem está juridicamente obrigado a uma determinada conduta “deve”, por força do Direito, conduzir-se do modo prescrito, o que com isso se exprime é o ser-devido – ou seja, o ser positivamente permitido, o ser autorizado e o ser prescrito – do ato coercitivo que funciona como sanção e é estatuído como conseqüência da conduta oposta”.

No que tange ao termo responsabilidade, Kelsen destaca que o indivíduo contra quem é dirigida a conseqüência do ilícito, é juridicamente responsável por ele. Para Kelsen, indivíduo obrigado e indivíduo responsável não são sinônimos. É-se obrigado a uma conduta conforme ao Direito e responde-se por uma conduta antijurídica.

Existe ainda a distinção entre responsabilidade individual e responsabilidade coletiva. A responsabilidade individual é aquela direcionada, de forma geral, a todo e qualquer indivíduo, sendo que a sua ocorrência, no caso concreto, realiza a individualização da conduta, e, respectivamente, da pena a ser aplicada. Já a responsabilidade coletiva constitui elemento característico da ordem jurídica primitiva e está em estreita conexão com o pensar e o sentir identificadores dos primitivos, pois à falta de uma consciência do eu, suficientemente acusada, o primitivo sente-se de tal modo uno com os membros de seu grupo.

Kelsen destaca ainda que existe uma distinção entre a responsabilidade pela culpa e pelo resultado. Para ele, quando a ordem jurídica faz pressuposto de uma conseqüência do ilícito uma determinada ação ou omissão através da qual é produzido ou não é impedido um evento indesejável (por exemplo, a morte de um homem), pode distinguir-se da hipótese em que o mesmo evento ou sucesso se verificou sem qualquer previsão ou intenção. No primeiro caso, fala-se em responsabilidade pela culpa, no segundo caso, de responsabilidade pelo resultado.

Em relação ao dever de indenizar, Kelsen ressalta que este deve ser entendido como uma responsabilidade, ou melhor, como uma obrigação de se ressarcir os prejuízos materiais ou morais causados a um indivíduo, por outro indivíduo. Tal prestação, a ser exigida de forma coercitiva pelo aparelho estatal, constitui uma forma de sanção.

Kelsen frisa que quando esta sanção não é dirigida contra o delinqüente, mas contra um outro indivíduo que está, com o delinqüente, numa relação pela ordem jurídica determinada, a responsabilidade tem sempre o caráter de uma responsabilidade pelo resultado. Desta forma, a responsabilidade tem o caráter de responsabilidade pela culpa, em relação ao delinqüente, e o caráter de responsabilidade pelo resultado, em relação ao objeto da responsabilidade.

Em relação a distinção entre Direito e dever, Kelsen aduz que usualmente contrapõe-se ao dever jurídico o direito como direito subjetivo, colocando este em primeiro lugar. Na descrição do Direito, o direito avulta tanto no primeiro plano, que o dever quase desaparece por detrás dele. Para se distinguir, tem o direito, como “direito subjetivo”, de ser distinguido da ordem jurídica, como “direito objetivo”. A situação em questão, para Kelsen, é esgotantemente descrita como o dever jurídico do indivíduo (ou dos indivíduos) de se conduzir por determinada maneira em face de outro indivíduo. Neste sentido, a função de uma ordem jurídica positiva (do Estado), que põe termo ao estado de natureza, é, de acordo com esta concepção, garantir os direitos naturais através da estatuição dos correspondentes deveres. Se se afasta a hipótese dos direitos naturais e se reconhecem apenas os direitos estatuídos por uma ordem jurídica positiva, então verifica-se que um direito subjetivo, no sentido aqui considerado, pressupõe um correspondente dever jurídico, é mesmo este dever jurídico.

Em relação a distinção entre direitos reais e direitos pessoais, Kelsen assevera que sob a influência da antiga jurisprudência romana costuma distinguir-se entre o direito sobre uma coisa (jus in rem) e o direito em face de uma pessoa (jus in personam). Tal distinção, segundo este, induz em erro, pois também o direito sobre uma coisa é um direito em face de pessoas.

O direito real subjetivo por excelência é a propriedade. É definida pela jurisprudência tradicional como domínio exclusivo de uma pessoa sobre uma coisa, e por isso mesmo, distinguida dos direitos de crédito que apenas fundamentam relações jurídicas pessoais.

Para Kelsen, as duas espécies de situações caracterizadas pela jurisprudência tradicional como relações jurídicas pessoais e relações jurídicas reais serão classificadas e distinguidas como direitos reflexos absolutos e direitos reflexos relativos. O direito reflexo de propriedade não é propriamente um direito absoluto; é o reflexo de uma pluralidade de deveres de um número indeterminado de indivíduos em face de um e o mesmo indivíduo com referência a uma e a mesma coisa, diferentemente de um direito de crédito que apenas é reflexo de um dever de um determinado indivíduo em face de um outro indivíduo também determinado.

Nesta análise, Kelsen apenas tomou em consideração o direito reflexo. Ele desempenha na teoria tradicional um papel decisivo, se bem que este “direito” de um nada mais seja do que o dever de um outro ou de todos os outros de se conduzirem, em face daquele, de determinada maneira.

Ao direito subjetivo de alguém, se refere a definição, encontrada na jurisprudência tradicional, segundo a qual o direito subjetivo é determinado como interesse juridicamente protegido. No entanto, este interesse da comunidade, ou melhor, a proteção deste interesse através do dever funcional dos órgãos aplicadores do direito, não é, em regra designado como direito subjetivo reflexo.

Quando trata do direito subjetivo como permissão positiva, Kelsen esclarece que a situação designada como titularidade de um direito ou direito subjetivo também pode consistir no fato de a ordem jurídica condicionar uma determinada atividade, por exemplo, o exercício de uma determinada indústria ou profissão, a uma autorização, designada como “concessão” ou “licença”, que é concedida, quer sob os pressupostos determinados pela ordem jurídica, quer segundo a livre apreciação do órgão competente. O exercício da referida atividade sem a autorização devida, emanada da autoridade competente, é proibido, quer dizer, està sujeito a uma sanção.

Quando aborda a questão dos direitos políticos, Kelsen destaca que os mesmos costumam ser definidos como a capacidade ou poder de influir na formação da vontade do Estado. Quando assim se fala, pensa-se, no entanto, na forma geral de aparição das normas jurídicas, que formam esta ordem nas leis. A participação dos súditos das normas na atividade legislativa, é a característica principal da forma democrática de Estado.

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Para Kelsen, entre os direitos políticos são também contados os chamados direitos fundamentais, e os direitos de liberdade (isto é, o da inviolabilidade) da propriedade, a liberdade da pessoa, a liberdade de opinião, entre outros tipos de liberdades.

O poder jurídico descrito anteriormente como direito subjetivo – direito privado ou direito político – é apenas um caso particular da função da ordem jurídica que aqui designamos por atribuição de um poder ou competência ou autorização. Nesta direção, a função da ordem jurídica designada como atribuição de um poder ou competência refere-se somente à conduta humana. Só a conduta de um indivíduo é que é pela ordem jurídica autorizada. Ao indivíduo que pode realizar uma tal conduta é pela ordem jurídica atribuída a capacidade de se conduzir desta maneira.

Vale salientar ainda que o exercício do poder jurídico, como função jurídica é da mesma espécie que a função de um órgão legislativo, dotado pela ordem jurídica do poder de criar normas gerais, e que as funções dos órgãos judiciais e administrativos, dotados pela ordem jurídica do poder de criar normas individuais por aplicação daquelas normas gerais. A tais funções específicas, essenciais ao funcionamento do Estado e à garantia do Estado de Direito dá-se o nome de competência.

Em relação à organicidade, Kelsen explica, em síntese, que as atribuições de competências são atribuídas aos órgãos do Estado, e que os mesmos são essenciais para a realização dos objetivos daquele Estado, dentre eles o bem comum e a justiça social, o que é relativo, segundo os padrões culturais de uma determinada sociedade. Desta forma, cada órgão possui uma parcela de poder ou de competência, que lhe é próprio.

Em seguida Kelsen, destaca que doutrina tradicional designa como capacidade (de gozo) de direitos a capacidade de um indivíduo para ser titular de direitos e deveres jurídicos ou para ser sujeito de direitos e deveres. Para ele, no Direito moderno não há pessoas incapazes de direitos (como os escravos). No entanto, nem todas as pessoas possuem capacidade de exercício. Desta forma, os menores e os doentes mentais não possuem capacidade de exercício. Por isso, tais pessoas têm, segundo o Direito moderno, representantes legais aos quais compete exercitar, por elas, os seus direitos, cumprir os seus deveres e criar, por elas deveres e direitos através de negócios jurídicos. Convém destacar que tais pessoas não possuem, na verdade, capacidade de exercício, mas tem capacidade de direitos.

Kelsen explica que, em estreita conexão com os conceitos de dever jurídico e de direito subjetivo, está, segundo a concepção tradicional, o conceito de relação jurídica, sendo esta definida como relação entre sujeitos, quer dizer, entre o sujeito de um dever jurídico e o sujeito do correspondente direito ou como relação entre um dever jurídico e o correspondente direito. Dizer que dever e direito se correspondem significa que o direito é um reflexo do dever, que existe uma relação entre dois indivíduos dos quais um é obrigado a uma determinada conduta em face do outro.

Uma relação jurídica entre dois indivíduos, melhor, entre a conduta de dois indivíduos determinada por normas jurídicas, existe no caso de um direito subjetivo no sentido específico da palavra, quer dizer: quando a ordem jurídica confere ao indivíduo, em face do qual um outro está obrigado a conduzir-se de determinada maneira, o poder jurídico de, através de uma ação, iniciar um processo que conduzirá à norma individual, a estabelecer pelo Tribunal, pela qual é ordenada a sanção prevista pela norma geral e a dirigir contra o indivíduo que se conduz contrariamente ao dever. Neste caso existe uma relação jurídica entre o indivíduo dotado deste poder jurídico e o indivíduo obrigado.

Por fim, Kelsen aborda a questão do sujeito jurídico (pessoa), e diz que este, segundo a teoria tradicional, é aquela pessoa sujeita a um dever jurídico ou a uma pretensão ou titularidade jurídica. Aqui, deve-se ter em conta que a afirmação de que um indivíduo é sujeito de um dever jurídico, ou tem um dever jurídico, nada mais se significa senão que uma determinada conduta deste indivíduo é conteúdo de um dever pela ordem jurídica estatuído. Na seqüência, Kelsen define, segundo a teoria tradicional, e sob o seu ponto de vista, o conceito de pessoa física (homem enquanto sujeito de direitos e deveres – teoria tradicional; e como “portador” de direitos e deveres jurídicos, podendo funcionar como portador de tais direito e deveres não só o indivíduo, mas também outras entidades – definição de Kelsen), de pessoa jurídica (corporação), a pessoa jurídica como sujeito agente (capaz de exercer direitos e suportar obrigações), a pessoa jurídica como sujeita de deveres e direitos (quando figuramos a corporação como pessoa atuante (agente), mas também quando a representamos como sujeito de deveres e direitos, entendendo por “direito”, na esteira do uso tradicional da linguagem, não apenas um direito subjetivo no sentido técnico da palavra, no sentido de poder jurídico, portanto, mas também uma permissão positiva.

Em seguida, Kelsen aborda a questão da pessoa jurídica como conceito auxiliar da ciência jurídica. Aqui ele ressalta que quando se diz que a ordem jurídica confere a um indivíduo personalidade jurídica torna a conduta de um indivíduo conteúdo de deveres e direitos, e que é a ciência jurídica que exprime a unidade destes deveres e direitos no conceito de pessoa física, conceito do qual nos podemos servir, como conceito auxiliar, na descrição do direito, mas do qual não temos necessariamente de nos servir, pois a situação criada pela ordem jurídica também pode ser descrita sem recorrer a ele.

Por fim, Kelsen termina este capítulo afirmando que deve-se superar o dualismo de Direito no sentido objetivo e Direito no sentido subjetivo. Neste sentido são suas palavras: “A Teoria Pura do Direito” afasta este dualismo ao analisar o conceito de pessoa como a personificação de um complexo de normas jurídicas, ao reduzir o dever e o direito subjetivo (em sentido técnico) à norma jurídica que liga uma sanção a determinada conduta de um indivíduo e ao tornar a execução de sanção dependente de uma ação judicial a tal fim dirigida; quer dizer: reconduzindo o chamado direito em sentido subjetivo ao Direito objetivo”.

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Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel. Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5602, 2 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69158. Acesso em: 22 nov. 2024.

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