Capa da publicação Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen: reflexão analítica e síntese da obra
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Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen

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5. Dinâmica Jurídica

O fundamento de validade de uma ordem normativa: norma fundamental;

a) Sentido da questão relativa ao fundamento de validade;

Kelsen inicia este capítulo ressaltando que o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Neste sentido, uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior. Tal norma superior confere à personalidade legiferante “autoridade” para estatuir normas. O fato de alguém ordenar seja o que for não é fundamento para considerar o respectivo comando como válido, ou seja, para ver a respectiva norma como vinculante em relação aos seus destinatários. Apenas uma autoridade competente pode estabelecer normas válidas; e uma tal competência somente se pode apoiar sobre uma norma que confira poder para fixar normas.

No entanto, a indagação sobre o fundamento de validade de uma norma não pode perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Tal norma será designada aqui como norma fundamental (Grundnorm).

b) Princípio estático e princípio dinâmico;

Para Kelsen é possível distinguir dois tipos diferentes de sistema de normas: um tipo estático e um tipo dinâmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer, a conduta dos indivíduos por elas determinadas, é considerada como devida (devendo ser) por força de seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. Neste contexto, Kelsen destaca que um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de normas, e o princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um princípio estático.

Já o sistema de normas do tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de que a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora, ou uma regra segundo que prescreve como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental.

Kelsen frisa ainda que o princípio estático e o princípio dinâmico estão reunidos numa e na mesma norma quando a norma fundamental pressuposta se limita, segundo o princípio dinâmico, a conferir poder a uma autoridade legisladora e esta mesma autoridade ou uma outra por ela instituída não só estabelecem normas pelas quais delegam noutras autoridades legisladoras, mas também normas pelas quais se prescreve uma determinada conduta dos sujeitos subordinados às normas e das quais podem ser deduzidas novas normas através de uma operação lógica.

O fundamento de validade de uma ordem jurídica;

Kelsen informa que o sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurídica tem essencialmente um caráter dinâmico. Sendo assim, uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, mas porque é criada por uma forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com esta norma fundamental. As normas de uma ordem jurídica têm de ser produzidas através de um ato especial de criação. São normas postas, quer dizer, positivas, elementos de uma ordem positiva.

À pergunta formulada por Kelsen – Qual o fundamento de validade de uma norma pertencente a uma determinada ordem jurídica? – ele próprio responde informando que seria a norma fundamenta desta ordem jurídica. Como essa norma é a norma fundamental de uma ordem jurídica, isto é, de uma ordem que estatui atos coercivos, a proposição que descreve tal norma, a proposição fundamental da ordem jurídica estadual em questão, diz: devem ser postos atos de coerção sob os pressupostos e pela forma que estatuem a primeira Constituição histórica e as normas estabelecidas em conformidade com ela. As normas de uma ordem jurídica cujo fundamento de validade comum é esta norma fundamental não são um complexo de normas válidas colocadas umas ao lado das outras, mas em uma construção escalonada de normas supra-infra-ordenadas umas às outras.

A norma fundamental como pressuposição lógico-transcendental;

Para Kelsen, na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se torna possível interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos postos de acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, quer dizer, como normas objetivamente válidas, pode a norma fundamental, na sua descrição pela ciência jurídica ser designada como condição lógico-transcendental desta interpretação. Segundo ele a Teoria Pura do Direito pergunta: como é possível uma interpretação, não reconduzível a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas descritíveis em proposições jurídicas? A resposta da Teoria Pura do Direito é: sob a condição de pressupormos a norma fundamental: devemos nos conduzir como a constituição prescreve, quer dizer, de harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade constituinte, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição.

Neste sentido, a norma cuja validade é afirmada na premissa maior legitima, assim, o sentido subjetivo do ato de comando, cuja existência é afirmada na premissa menor, como seu sentido objetivo. Por exemplo: devemos obedecer às ordens de Deus. Deus ordenou que obedeçamos às ordens dos nossos pais. Logo, devemos obedecer às ordens de nossos pais.

A unidade lógica da ordem jurídica; conflito de normas;

Segundo Kelsen, diante da quantidade de normas existentes em nível infraconstitucional, não se pode negar a possibilidade de os órgãos jurídicos efetivamente estabelecerem normas que entrem em conflito umas com as outras. Um tal conflito de normas surge quando uma norma determina uma certa conduta como devida e uma outra norma determina também como devida uma outra conduta, inconciliável com aquela. Para Kelsen, uma contradição lógica entre duas afirmações consiste em que apenas uma ou a outra pode ser verdadeira; em que se uma é verdadeira a outra tem de ser falsa. Nesta linha de raciocínio, uma norma não é verdadeira nem falsa, mas válida ou não válida. Os princípios lógicos em geral e o princípio da não-contradição em especial podem ser aplicados às proposições jurídicas que descrevem normas de Direito e, assim, indiretamente, também podem ser aplicados às normas jurídicas.

Não é, portanto, inteiramente descabido dizer-se que duas normas jurídicas se “contradizem” uma à outra. E, por isso mesmo, somente uma delas pode ser tida como objetivamente válida. Dizer que A deve ser e que não deve ser ao mesmo tempo é tão sem sentido como dizer que A é e não é ao mesmo tempo. Um conflito de normas representa, tal como uma contradição lógica, algo de sem sentido.

Diante de um conflito aparente de normas, uma norma estabelecida em último lugar sobreleva à da norma fixada em primeiro lugar e que a contradiz, segundo o princípio lex posterior derogat priori.

Pode haver ainda um conflito entre duas normas individuais, como por exemplo, entre duas decisões judiciais, particularmente quando as duas normas foram postas por órgãos diferentes. Uma lei pode conferir competência a dois tribunais para decidir o mesmo caso, sem emprestar à decisão de um dos tribunais o poder de anular a decisão do outro. Para Kelsen, este conflito entre duas normas individuais não constitui um gravame em si mesmo, pois nunca haverá dois casos idênticos (no sentido mais restrito do conceito de igualdade) para que tenham que ser julgados da mesma forma. Além disso, o juiz tem plena liberdade para formar o seu convencimento.

A eficácia é estabelecida na norma fundamental como pressuposto da validade. Se o conflito se apresenta numa e mesma decisão judicial – o que a custo será possível, a não ser que o juiz tenha perturbações mentais -, então estamos perante um ato sem sentido e, portanto, não estamos sequer em face de uma norma jurídica objetivamente válida.

Legitimidade e efetividade;

As constituições escritas contêm em regra determinações especiais relativas ao processo através do qual, e através do qual somente, podem ser modificadas. O princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida até a sua validade terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica, é o princípio da legitimidade. Este princípio só é aplicável a uma ordem jurídica estadual com uma limitação muito importante: no caso de revolução, não encontra aplicação alguma. Uma revolução no sentido amplo da palavra, compreendendo o golpe de Estado, é toda modificação ilegítima da Constituição, isto é, toda modificação da Constituição, ou a sua substituição por uma outra, não operadas segundo as determinações da mesma Constituição. Decisivo é o fato de a Constituição vigente ser modificada ou completamente substituída por uma nova Constituição através de processos não previstos pela Constituição até ali vigente. Em regra, por ocasião de uma revolução destas, somente são anuladas a antiga Constituição e certas leis politicamente essenciais. Uma grande parte das leis promulgadas sob a antiga Constituição permanece, como costuma dizer-se, em vigor. O que existe neste caso é a recepção de normas de uma ordem jurídica por outra.

A norma fundamental refere-se apenas a uma Constituição que é efetivamente estabelecida por um ato legislativo ou pelo costume e que é eficaz. Uma Constituição é eficaz se as normas postas de conformidade com ela são, globalmente e em regra, observadas e aplicadas.

Validade e eficácia;

Para Kelsen, a relação entre validade e eficácia é um caso especial da relação entre o dever-ser da ordem jurídica e o ser da realidade natural. Sobre o tema existem duas teses extremas, sendo uma delas representada pelo fato de que, entre validade como um dever-ser e a eficácia como um ser, não existe conexão de espécie alguma, que a validade do Direito é completamente independente de sua eficácia. O outro extremo é a tese de que a validade do Direito se identifica com a sua eficácia.

A solução proposta pela Teoria Pura do Direito para este problema é: “assim como a norma de dever-ser, como sentido do ato-de-ser que a põe, se não identifica com este ato, assim a validade de dever-ser de uma norma jurídica se não identifica com a sua eficácia da ordem do ser; a eficácia da norma jurídica como um todo e a eficácia de uma norma jurídica singular são – tal como o ato que estabelece a norma – condição da validade”.

Segundo Kelsen, as normas de uma ordem jurídica positiv valem (são válidas) porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua produção é pressuposta como válida, e não porque são eficazes; mas elas somente valem se esta ordem jurídica é eficaz, quer dizer, enquanto esta ordem for eficaz. Logo que a Constituição e, portanto, a ordem jurídica que sobre ela se apóia, como um todo, perde a sua eficácia, a ordem jurídica, e com ela cada uma das suas normas, perdem a sua validade (vigência).

Por fim, Kelsen ressalta que uma ordem jurídica é considerada válida quando as suas normas são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de fato observadas e aplicadas. E também uma norma jurídica singular não perde a sua validade quando apenas não é eficaz em casos particulares, isto é, não é observada ou aplicada, embora deva ser observada e aplicada.

A norma fundamental do direito internacional;

Kelsen afirma que o Direito Internacional apenas é uma parte integrante da ordem jurídica estadual representada como soberana e cujo fundamento de vigência é a norma fundamental referida à Constituição eficaz. Ela é, como fundamento de vigência da Constituição estadual, ao mesmo tempo o fundamento de vigência do Direito internacional reconhecido, quer dizer, posto em vigência para o Estado, com base na Constituição estadual.

A norma do Direito internacional que representa este fundamento de vigência é usualmente descrita pela afirmação de que, de acordo com o Direito internacional geral, um governo que, independentemente de outros governos, exerce o efetivo domínio sobre a população de um determinado país, constitui um governo legítimo, e que o povo que vive nesse país sob um tal governo forma um Estado no sentido do Direito internacional – e isto sem curar de saber se este governo exerce esse domínio efetivo com base numa Constituição já anteriormente existente ou com base numa Constituição por ele revolucionariamente estabelecida.

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Uma norma fundamental genuína não é uma norma posta, mas uma norma pressuposta. Ela representa o pressuposto sob o qual o chamado Direito internacional geral, isto é, as normas globalmente eficazes, que regulam a conduta de todos os Estados entre si, são consideradas como normas jurídicas que vinculam os Estados.

Teoria da norma fundamental e doutrina do direito natural;

Kelsen frisa aqui que a norma fundamental, determinada pela Teoria Pura do Direito como condição da validade jurídica objetiva, fundamenta a validade de qualquer ordem jurídica positiva. De acordo com a Teoria Pura do Direito, como teoria jurídica positiva, nenhuma ordem jurídica positiva pode ser considerada como não conforme à sua norma fundamental, e portanto, como não válida. O conteúdo de uma ordem jurídica positiva é completamente independente da sua norma fundamental.

Uma doutrina conseqüente do Direito natural distingue-se de uma teoria jurídica positivista pelo fato de aquela procurar o fundamento de validade do Direito positivo, isto é, de uma ordem jurídica globalmente eficaz, num Direito natural diferente do Direito positivo e, portanto, numa norma ou ordem normativa a que o Direito positivo, quanto ao seu conteúdo, pode corresponder mas também pode não corresponder; por tal forma que, quando não corresponda a esta norma ou ordem normativa, deve ser considerado como não válido. A possibilidade de um conflito entre o Direito natural e o Direito positivo, isto é, uma ordem coercitiva eficaz, implica a possibilidade de considerar como não válida uma tal ordem coercitiva.

A norma fundamental do direito natural;

Para Kelsen, a suposição de que uma teoria do Direito natural poderia dar uma resposta incondicional à questão do fundamento de validade do Direito positivo se baseia sobre uma ilusão. Uma tal doutrina vê o fundamento de validade do Direito positivo no Direito natural, quer dizer, numa ordem posta pela natureza como autoridade suprema colocada acima do legislador humano. Neste sentido, o Direito natural é também Direito posto, isto é, positivo.

E conclui, explicando que para ciência a natureza é um sistema de elementos determinados pela lei da causalidade. Ela não possui uma vontade e não pode, portanto, estabelecer normas. As normas somente podem ser assumidas como imanentes à natureza quando se admita que na natureza está a vontade de Deus. Mas, dizer que Deus, através da natureza como manifestação da sua vontade ordena aos homens que se conduzam de determinada maneira, é uma suposição metafísica que não pode ser aceita pela ciência em geral e pela ciência do Direito em particular, pois o conhecimento científico não pode ter por objeto qualquer processo afirmado para além de toda experiência possível.

A estrutura escalonada da ordem jurídica;

A Constituição;

Neste momento Kelsen ressalta que a relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norm superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A norma fundamental – hipotética – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora. A Constituição é aqui entendida num sentido material. Esta Constituição pode ser produzida por via consuetudinária ou através d um ato de um ou vários indivíduos a tal fim dirigido, isto é, através de um ato legislativo. Tais Constituições podem ser escritas ou não escritas (consuetudinárias).

Legislação e costume;

Para Kelsen, as normas jurídicas gerais criadas pela via legislativa são normas conscientemente postas, quer dizer, normas estatuídas. Os atos que constituem o fato legislação são atos produtores de normas, são atos instituidores de normas; quer dizer: o seu sentido subjetivo é um dever-ser.

A Constituição também pode instituir como fato produtor de Direito um determinado fato consuetudinário. Este fato é caracterizado pela circunstância de os indivíduos pertencentes à comunidade jurídica se conduzirem por forma sempre idêntica sob certas e determinadas circunstâncias, de esta conduta se processar por um tempo suficientemente longo, de por esta forma surgir, nos indivíduos que, através de seus atos, constituem o costume, a vontade coletiva de que assim nos conduzamos.

Segundo Kelsen, uma distinção politicamente entre Direito legislado e Direito consuetudinário consiste no fato de aquele ser produzido através de um processo relativamente centralizado e este através de um processo relativamente descentralizado. As leis são criadas por órgãos especiais instituídos para este fim e que funcionam segundo o princípio da divisão de trabalho. As normas de Direito consuetudinário adquirem existência através de uma determinada conduta dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica.

Lei e decreto;

Kelsen explica que as normas gerais que provêm não do parlamento, mas de uma autoridade administrativa, são designadas como decretos, que podem ser decretos regulamentares ou decretos-leis. Fala-se de lei em sentido formal em contraposição a lei em sentido material. Esta compreende toda a norma jurídica geral. Aquela abrange, quer toda e qualquer norma jurídica geral surgida em forma de lei, isto é, emitida pelo parlamento e publicadas por determinada maneira, quer, em geral, todo conteúdo que surja nesta forma.

Direito material e direito formal;

Kelsen explica que por Direito formal designam-se as normas gerais através das quais são regulados a organização e o processo das autoridades judiciais e administrativas, os chamados processo civil e penal e o processo administrativo. Por Direito material entendem-se as normas gerais que determinam o conteúdo dos atos judiciais e administrativos e que são em geral designadas como Direito civil, Direito penal e Direito administrativo, mito embora as normas que regula, o processo dos tribunais e das autoridades administrativas não sejam menos Direito civil, Direito penal e Direito administrativo.

As chamadas “fontes do direito”;

Para Kelsen, legislação e costume são frequentemente designados como as duas “fontes” do Direito, entendendo-se aqui por Direito apenas as normas gerais do Direito estadual. Mas as normas jurídicas individuais pertencem tanto ao Direito, são tão parte integrante da ordem jurídica, como as normas jurídicas gerais com base nas quais são produzidas. E, se tomarmos em linha de conta o Direito internacional geral, então não se pode considerar como “fontes” deste Direito a legislação, mas somente o costume e o tratado.

Ainda por “fonte” do Direito pode entender-se também o fundamento de validade de uma ordem jurídica, especialmente o último fundamento de validade, a norma fundamental.

Criação do direito, aplicação do direito e observância do direito;

Para Kelsen, atos de aplicação do Direito são aqueles através dos quais os atos de coerção estatuídos pelas normas jurídicas são executados, atos de observância do direito são aqueles decorrentes de uma conduta que evita uma sanção (o cumprimento do dever jurídico constituído através da sanção). Também o uso de uma permissão positiva pode ser designado como observância do direito. Quanto aos atos de criação do Direito, estes podem ser gerais, que subdivide-se, quanto a sua origem, em Direito legislado e Direito consuetudinário, e individuais, quando oriundos da aplicação do Direito geral ao caso concreto, por parte dos órgãos responsáveis pelo exercício da jurisdição (decisões judiciais, de caráter individual).

Jurisprudência;

Aqui Kelsen destaca o caráter constitutivo da decisão judicial, mostrando que a mesma é uma decorrência da aplicação de uma norma geral de Direito que fora criada pela via legislativa ou consuetudinária.

O tribunal não só tem que responder a quaestio facti como também a quaestio júris. Depois de realizadas estas duas averiguações, o que o tribunal tem a fazer é ordenar in concreto a sanção estatuída in abstracto na norma jurídica geral.

Uma decisão judicial, segundo Kelsen, não possui, como se supõe, uma simples caráter declaratório. O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito, já de antemão firme e acabado, cuja produção já foi concluída. A função do tribunal não é simples “descoberta” do Direito ou júris-“dição” (“declaração” do Direito) neste sentido declaratório. A decisão do juiz possui um caráter constitutivo.

O negócio jurídico;

Para Kelsen, uma conduta pode ser havida como contrária ao negócio jurídico porque o sentido subjetivo do ato ou dos atos que formam um negócio jurídico é uma norma, porque o negócio jurídico é um fato produtor de normas. Na linguagem tradicional a palavra “negócio jurídico” é usada tanto para significar o ato produtor da norma como ainda a norma produzida pelo ato. O negócio jurídico típico é o contrato. Em um contrato as partes contratantes acordam em que devem conduzir-se de determinada maneira, em face da outra.

O negócio jurídico como fato produtor de Direito, confere aos indivíduos que lhe estão subordinados o poder de regular as suas relações mútuas, dentro dos quadros das normas gerais criadas por via legislativa ou consuetudinária, através de normas criadas pela via jurídico-negocial. O negócio jurídico é, tal como o deito da conduta contrária ao negócio jurídico e o delito da não-indenização do prejuízo or tal conduta causado, pressuposto da sanção civil.

Em relação aos contratos, Kelsen assevera que para que um contrato se conclua, tem de a declaração de uma parte ser dirigida à outra parte e aceita por esta na sua declaração dirigida àquela. O contrato consiste, portanto, como se costuma dizer, numa proposta ou oferta e na sua aceitação. Para que um contrato se realize devem existir declarações de vontade concordes das partes contratantes, declarações segundo as quais as partes querem o mesmo. Através deste fato é criada uma norma cujo conteúdo se determina através das declarações concordantes.

Administração;

Ao lado da legislação e da jurisdição é também menciona a administração como uma das três funções que, na teoria tradicional, são consideradas as funções essenciais do Estado. Legislação e jurisdição são funções jurídicas em sentido estrito, quer dizer, funções através das quais são criadas e aplicadas as normas da ordem jurídica estadual, consistindo a aplicação de uma norma jurídica na produção de uma outra norma ou na execução do ato de coerção estatuído por uma norma.

Esta ordem coercitiva é uma ordem jurídica “estadual” porque e na medida em que institui, para esta função jurídica, órgãos funcionando segundo o princípio da divisão de trabalho e, na verdade, designados imediata e mediatamente para a sua função – quer dizer, órgãos relativamente centrais -, é limitada no seu domínio territorial de validade a um espaço fixamente limitado – o chamado território do Estado – e é pressuposta como ordem suprema ou tão-somente subordinada à ordem jurídica internacional.

Conflito entre normas de diferentes escalões;

Kelsen destaca que uma “norma contrária às normas” é uma contradição nos termos; e uma norma jurídica da qual se pudesse afirmar que ela não corresponde à norma que preside a sua criação não poderia ser considerada como norma jurídica válida – seria nula, o que quer dizer que nem sequer seria uma norma jurídica. O que nulo não pode ser anulado (destruído) pela via do Direito.

Neste sentido, se a ordem jurídica, por qualquer motivo, anula uma norma, tem de considerar esta norma primeiramente como norma jurídica objetivamente válida, isto é, uma norma jurídica conforme o Direito.

Se um tribunal decide um caso concreto e afirma ter-lhe aplicado uma determinada nora jurídica geral, então a questão encontra-se decidida num sentido positivo e assim permanece decidida enquanto esta decisão não for anulada pela decisão de um tribunal superior. Se uma decisão judicial é atacável, ela pode ser anulada pela norma com força de caso julgado de uma decisão e última instância não só quando o tribunal de primeira instância faz uso da alternativa para determinar ele próprio – com validade provisória – o conteúdo da norma individual por ele criada, mas também quando, de conformidade com outra alternativa pela ordem jurídica estatuída, o conteúdo da norma individual criada pelo tribunal de primeira instância corresponde à norma geral que o predetermina.

A afirmação de que uma lei válida é “contrária à Constituição” é uma contradictio inadjecto; pois uma lei somente pode ser válida com fundamento na Constituição. Quando se tem fundamento para aceitar a validade de uma lei, o fundamento da sua validade tem de residir na Constituição. De uma lei inválida não se pode, porém, afirmar que ela é contrária à Constituição, pois uma lei inválida não é sequer uma lei, porque não é juridicamente existente e, portanto, não é possível acerca dela qualquer afirmação jurídica.

Resta saber a quem deve a Constituição conferir competência para decidir se, num caso concreto, foram cumpridas as normas constitucionais, se um instrumento cujo sentido subjetivo é o de ser uma lei no sentida da Constituição há de valer também como tal segundo o seu sentido objetivo.

Se todo tribunal é competente para controlar a constitucionalidade da lei e aplicar por ele a um caso concreto, em regra ele apenas tem a faculdade de, quando considere a lei como “inconstitucional”, rejeitar a sua aplicação ao caso concreto, quer dizer, anular a sua validade somente em relação ao caso concreto. Se o controle de constitucionalidade das leis é reservado a um único tribunal, este pode deter competência para anular a validade da lei reconhecida como “inconstitucional” não só em relação a um caso concreto, mas em relação a todos os casos que a lei se refira – quer dizer, para anular a lei como tal.

Kelsen ressalta ainda que as chamadas leis “inconstitucionais” são leis conformes à Constituição que, todavia, são anuláveis por um processo especial.

A questão da legalidade de uma decisão judicial ou da constitucionalidade de uma lei é, formada em termos gerais, a questão de saber se um ato que surge com a pretensão de criar uma norma está de acordo com a norma superior que determina a sua criação ou ainda o seu conteúdo. Quando esta questão deve ser decidida por um órgão para efeito competente, quer dizer, por um órgão que para tal recebe poder de uma norma válida, pode ainda levantar-se a questão de saber se o indivíduo que de fato tomou esta decisão é o órgão competente, isto é, o órgão que para tal recebeu poder da norma válida. Esta questão pode, por sua vez, dever ser decidida por um outro órgão que, por isso mesmo, é de considerar como um órgão de hierarquia superior.

Nulidade e anulabilidade;

Este tópico finaliza o capítulo em tela. Aqui Kelsen afirma que dentro de uma ordem jurídica não pode haver algo como a nulidade, que uma norma pertencente a uma ordem jurídica não pode ser nula mas apenas pode ser anulável. Uma norma jurídica em regra somente é anulada com efeitos para o futuro, por forma que os efeitos já produzidos que deixa para trás permanecem intocados. Desta forma, a lei foi válida até a sua anulação. Ela não era nula desde o início. Não é, portanto, correto o que se afirma quando a decisão anulatória da lei é designada como “designação de nulidade”, quando o órgão que anula a lei declara na sua decisão essa lei como “nula desde o início” (ex tunc).

Quando a ordem jurídica estabelece, por exemplo, que uma norma que não foi posta pelo órgão competente, ou foi posta por um indivíduo que sequer possui a qualidade de órgão, ou uma norma que possui um conteúdo que a Constituição exclui, devem ser considerada nulas a priori e que, portanto, não é necessário qualquer ato para as anular, necessita determinar quem há de verificar a presença dos pressupostos desta nulidade; e como esta verificação tem caráter constitutivo, como a nulidade da norma em questão é efeito desta verificação, como não pode ser juridicamente afirmada antes de realizada tal verificação, esta verificação significa, mesmo que se opere na forma de uma declaração de nulidade, a anulação, com efeito retroativo, de uma norma até então considerada válida.

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Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel. Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5602, 2 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69158. Acesso em: 29 mar. 2024.

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