Capa da publicação Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen: reflexão analítica e síntese da obra
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Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen

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6. DIREITO E ESTADO

Forma do Direito e forma do Estado

Para Kelsen a questão decisiva, do ponto de vista do indivíduo subordinado às normas, é se a vinculação se opera com a sua vontade ou sem a sua vontade - eventualmente mesmo contra a sua vontade. E aquela diferença que se costuma caracterizar como a oposição entre autonomia e heteronomia e que a teoria jurídica costuma verificar, essencialmente, no domínio do Direito do Estado. Aqui, ela aparece como diferença entre democracia e autocracia, ou república e monarquia; e é também neste domínio que ela fornece a divisão usual das formas do Estado.

Simplesmente, aquilo que se concebe como forma do Estado é apenas um caso especial da forma do Direito em geral. É a forma do Direito, isto é, o método de criação jurídica no escalão mais elevado da ordem jurídica, ou seja, no domínio da Constituição. Com o conceito de forma do Estado caracteriza-se o método de produção de normas gerais regulado pela Constituição.

Kelsen destaca ainda que a identificação da forma do Estado com a Constituição corresponde ao preconceito do Direito reduzido à lei. Mas o certo é que o problema da forma do Estado, como questão relativa ao método da criação do Direito, não só se apresenta ao nível da Constituição, e, portanto, não só se levanta relativamente à atividade legislativa, como também se põe a todos os níveis da criação jurídica e, especialmente, com referência aos diversos casos de fixação de normas individuais: atos administrativos, decisões dos tribunais, negócios jurídicos.

Direito público e privado

Neste tópico Kelsen esclarece que o Direito privado representa uma relação entre sujeitos em posição de igualdade - sujeitos que têm juridicamente o mesmo valor - e o Direito público uma relação entre um sujeito supra-ordenado e um sujeito subordinado - entre dois sujeitos, portanto, dos quais um tem, em face do outro, um valor jurídico superior. A relação típica de Direito público é a que existe entre o Estado e o súdito.

Para este autor a distinção entre Direito privado e público tem tendência para assumir o significado de uma oposição entre Direito e poder não jurídico ou semijurídico, e, especialmente, de um contraste entre Direito e Estado. Exemplo típico de uma relação de Direito público é o comando ou ordem administrativa, uma norma individual posta pelo órgão administrativo através da qual o destinatário da norma é juridicamente obrigado a uma conduta conforme àquele comando. Em contraposição, apresenta-se como típica relação de Direito privado o negócio jurídico, especialmente o contrato, quer dizer, a norma individual criada pelo contrato, através da qual as partes contratantes são juridicamente vinculadas a uma conduta recíproca.

O caráter ideológico do dualismo de Direito público e Direito privado

Para Kelsen, não se afigura de forma alguma paradoxal que a Teoria Pura do Direito, do seu ponto de vista universalista veja também no negócio jurídico privado, tal como no comando da autoridade, um ato do Estado, quer dizer, um fato de produção jurídica atribuível à unidade da ordem jurídica. Por esta forma, a Teoria Pura do Direito relativiza a oposição, tornada absoluta pela ciência jurídica tradicional, entre Direito privado e público, transforma-a de uma oposição extra-sistemática, quer dizer, de uma distinção entre Direito e não-Direito, entre Direito e Estado, numa distinção intra-sistemática; e precisamente porque, desse modo, também decompõe e destrói a ideologia que está ligada à absolutização da oposição em causa, comprova o seu caráter de ciência.

Este ainda ressalta que a doutrina de uma essencial distinção entre Direito público e privado enreda-se, além disso, na contradição de afirmar a liberdade (desvinculação) perante o Direito (Freiheit vom Recht) - que reclama para o domínio do "Direito" público enquanto domínio da vida do Estado - como princípio de Direito (Rechts- Prinzip), como a característica específica do Direito público.

Este dualismo não tem, porém, qualquer caráter teorético, mas apenas caráter ideológico. O sentido de tal doutrina traduz-se não só em declarar que uma vinculação grande dos órgãos governamentais e administrativos contrariaria a essência da sua função, mas também em declarar tal vinculação como eventualmente superável nos casos em que ela, apesar de tudo, exista. E esta tendência pode ser constatada não só nas monarquias constitucionais como também nas repúblicas democráticas.

Por outro lado, Kelsen destaca que a absolutização do contraste entre Direito público e privado cria também a impressão de que só o domínio do Direito público, ou seja, sobretudo, o Direito constitucional e administrativo, seria o setor de dominação política e que esta estaria excluída no domínio do Direito privado.

Para este autor o Direito "privado", criado pela via jurídica negocial do contrato, não é menos palco de atuação da dominação política do que o Direito público, criado pela legislação e pela administração.

Por fim, Kelsen preleciona que ao nível da produção de Direito geral, este sistema político-econômico tanto pode ter caráter democrático como autocrático. Os mais importantes Estados capitalistas do tempo do autor têm/tiveram, na verdade, constituições democráticas, mas o instituto da propriedade privada e uma produção de normas jurídicas individuais baseada no princípio da autodeterminação também são possíveis nas monarquias absolutas e têm de fato existido nelas.

O dualismo tradicional de Estado e Direito

Kelsen destaca que quando a teoria tradicional do Direito e do Estado contrapõe o Estado ao Direito como uma entidade diferente deste e, apesar disso, o afirma como uma entidade jurídica, ela estrutura esta sua idéia considerando o Estado como sujeito de deveres jurídicos e direitos, quer dizer, como pessoa, atribuindo-lhe ao mesmo tempo uma existência independente da ordem jurídica.

A teoria do Estado pressupõe que o Estado, enquanto unidade coletiva que aparece como sujeito de uma vontade e de uma atuação, é independente do Direito e até preexistente ao mesmo. Para Kelsen o Estado é, como entidade metajurídica, como uma espécie de poderoso macro-ánthropos ou organismo social, pressuposto do Direito e, ao mesmo tempo, sujeito jurídico que pressupõe o Direito porque lhe está submetido, é por ele obrigado e dele recebe direitos.

A função ideológica do dualismo de Estado e Direito

Neste tópico Kelsen assevera que o Estado deve ser representado como uma pessoa diferente do Direito para que o Direito possa justificar o Estado - que cria este Direito e se lhe submete. E o Direito só pode justificar o Estado quando é pressuposto como uma ordem essencialmente diferente do Estado, oposta à sua originaria natureza, o poder, e, por isso mesmo, reta ou justa em um qualquer sentido.

Assim o Estado é transformado, de um simples fato de poder, em Estado de Direito que se justifica pelo fato de fazer o Direito.

A identidade do Estado e do Direito

O Estado como ordem jurídica

Segundo Kelsen, é usual caracterizar-se o Estado como uma organização política. Com isto, porém, apenas se exprime que o Estado é uma ordem de coação. Com efeito, o elemento "político" específico desta organização consiste na coação exercida de indivíduo a indivíduo e regulada por essa ordem, nos atos de coação que essa ordem estatui.

Kelsen frisa que para ser um Estado, a ordem jurídica necessita de ter o caráter de uma organização no sentido estrito da palavra, quer dizer, tem de instituir órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho para criação e aplicação das normas que a formam; tem de apresentar um certo grau de centralização. O Estado é uma ordem jurídica relativamente centralizada.

Nem a ordem jurídica pré-estadual nem a ordem jurídica supra (ou inter)-estadual instituem tribunais que sejam competentes para aplicar as normas gerais aos casos concretos, mas conferem poder aos próprios súditos da ordem jurídica para desempenharem esta função e, especialmente, para executarem as sanções estatuídas pela ordem jurídica pela via da autodefesa.

Para este autor, o Estado, como comunidade social - de acordo com a teoria tradicional do Estado - compõe-se de três elementos: a população, o território e o poder, que é exercido por um governo estadual independente.

Neste sentido Kelsen frisa que não é possível mostrar qualquer espécie de interação anímica (espiritual) que, independentemente do vínculo, reúna todos os indivíduos pertencentes a um Estado por forma a que eles possam ser distinguidos de outros indivíduos pertencentes a outro Estado e entre si ligados por uma interação análoga, como se estes e aqueles formassem grupos separados.

Kelsen é bastante claro ao expor que a questão de saber se um individuo pertence a determinado Estado não é uma questão psicológica, mas uma questão jurídica.

A unidade dos indivíduos que formam a população de um Estado em nada mais pode ver-se do que no fato de que uma e a mesma ordem jurídica vigora para estes indivíduos, de que a sua conduta é regulada por uma e a mesma ordem jurídica. A população do Estado é o domínio pessoal de vigência da ordem jurídica estadual.

Já o território do Estado é um espaço rigorosamente delimitado. Não é um pedaço, exatamente limitado, da superfície do globo, mas um espaço tridimensional ao qual pertencem o subsolo, por baixo, e o espaço aéreo por cima da região compreendida dentro das chamadas fronteiras do Estado. Nenhum conhecimento naturalístico, mas só um conhecimento jurídico, pode dar resposta à questão de saber segundo que critério se determinam os limites ou fronteiras do espaço estadual, o que é que constitui a sua unidade. O chamado território do Estado apenas pode ser definido como o domínio espacial de vigência de uma ordem jurídica estadual.

Para Kelsen, a doutrina tradicional do Estado esquece que este não tem só uma existência espacial, mas também tem uma existência temporal, que, se o espaço é considerado como um elemento do Estado, também o tempo o deve ser, que a existência do Estado, assim como é limitada no espaço, também o é no tempo, pois os Estados podem surgir e desaparecer.

É o Direito internacional geral que determina o domínio espacial e temporal de vigência de cada ordem jurídica estadual, que delimita as ordens estaduais umas em face das outras e, assim, torna juridicamente possível a coexistência dos Estados no espaço e a sua sucessão no tempo.

O que faz com que a relação designada como poder estadual se distinga de outras relações de poder é a circunstância de ela ser juridicamente regulada, o que significa que os indivíduos que, como governo do Estado, exercem o poder, recebem competência de uma ordem jurídica para exercerem aquele poder através da criação e aplicação de normas jurídicas - que o poder do Estado tem caráter normativo.

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O chamado poder estadual é a vigência de uma ordem jurídica estadual efetiva. O "poder" do Estado somente se pode manifestar nos meios de poder específicos que se encontram à disposição do governo: nas fortalezas e nas prisões, nos canhões e nas forças, nos indivíduos uniformizados como polícias e soldados.O poder do Estado não é uma força ou instância mística que esteja escondida detrás do Estado ou do seu Direito. Ele não é senão a eficácia da ordem jurídica.

Desta forma, o Estado, cujos elementos essenciais são a população, o território e o poder, define-se como uma ordem jurídica relativamente centralizada, limitada no seu domínio espacial e temporal de vigência, soberana ou imediata relativamente ao Direito internacional e que é, globalmente ou de um modo geral, eficaz.

O Estado como pessoa jurídica

Kelsen frisa que o problema do Estado como uma pessoa jurídica, isto é, como sujeito agente e sujeito de deveres e direitos é, no essencial, o mesmo problema que se põe para a corporação como pessoa jurídica. Também o Estado é uma corporação, isto é, uma comunidade que é constituída por uma ordem normativa que institui órgãos funcionando segundo o principio da divisão do trabalho, órgãos esses que são providos na sua função mediata ou imediatamente.

Neste sentido o Estado pode ser olhado como estando subordinado à ordem jurídica internacional que, tratando-o como uma pessoa jurídica, lhe impõe deveres e confere direitos. E, assim, tal como sucede em relação à corporação que se encontra subordinada à ordem jurídica estadual, também em relação ao Estado, como corporação submetida ao Direito internacional, pode fazer-se distinção entre deveres e direitos externos e internos: os primeiros são estatuídos pelo Direito internacional, os outros são estatuídos pela ordem jurídica estadual.

O Estado como sujeito agente: o órgão do Estado

Kelsen lembra que com efeito, nunca é o Estado, mas sempre e apenas um determinado indivíduo, quem atua, quem põe um determinado ato, quem desempenha uma determinada função. Somente quando representamos o Estado, enquanto pessoa agente, como uma realidade diferente do indivíduo, como uma espécie de super-homem, ou seja, quando hipostasiamos a construção auxiliar de pessoa, é que a questão de saber se existe um ato do Estado, uma função estadual, pode ter o sentido de uma questão dirigida à existência de um fato, é que a resposta à questão poderá ser que um determinado ato ou uma determinada função é ou não é um ato do Estado ou uma função do Estado.

Do ponto de vista de uma consideração centrada sobre o Direito, só pode ser concebida como função do Estado uma função definida na ordem jurídica, quer dizer, uma função jurídica no sentido estrito ou lato da palavra.

Kelsen se utiliza de uma metáfora, para dizer, a propósito de toda e qualquer função definida na ordem jurídica, que é o Estado, como pessoa, quem a realiza. Com efeito, com isso nada mais se diz senão que a função está determinada na ordem jurídica.

Em geral a legislação é representada como função do Estado, quer dizer, é atribuida ao Estado. Porém, muitos autores não procedem desta forma. Recusam-se a considerar a legiferação como função do Estado.

São livres de pensar como quiserem. Enganam-se, no entanto, se querem dizer com isso que a legiferação, diferentemente do que sucede com as outras funções, não é de fato realizada pelo Estado, que o Estado pode, na realidade, concluir tratados, punir crimes, administrar vias férreas, mas não pode fazer leis.

Para Kelsen se se analisa o uso lingüístico em questão, quer dizer, se se procura determinar sob que pressupostos são atribuídas ao Estado, na linguagem do Direito, certas funções definidas pela ordem jurídica nacional, quando se diz que o Estado realiza - através de um determinado indivíduo, como seu órgão - uma determinada função, verifica-se que, em geral, uma função definida pela ordem jurídica somente é atribuída ao Estado, somente é considerada como função do Estado, se é exercida por um indivíduo funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho e designado para essa função em conformidade com a mesma ordem jurídica, ou que um indivíduo só é considerado como órgão do Estado quando seja chamado ao exercício desta função através de um processo determinado pela ordem jurídica.

O Estado, como ordem social, é a ordem jurídica nacional (para a distinguir da internacional), acima definida. O Estado, como pessoa, é a personificação desta ordem.

Para este jurista, quando o Estado é representado como pessoa agente, ele tão-somente é, também, a personificação de uma ordem jurídica; não, porém, da ordem jurídica total, que regula a conduta de todos os indivíduos, que vivem dentro do seu domínio territorial de vivência - e, desse modo, constitui o Estado como uma comunidade jurídica a que pertencem todos estes indivíduos que vivem sobre um determinado território -, mas de uma ordem jurídica parcial que é formada por aquelas normas da ordem jurídica nacional estadual que regulam a conduta dos indivíduos que têm o caráter de órgãos, funcionam segundo o princípio da divisão do trabalho e são qualificados como "funcionários".

As funções atribuídas ao Estado dividem-se, segundo a tradicional teoria do Estado, em três categorias: legiferação, administração (incluindo a governação) e jurisdição. Todas três são funções jurídicas, quer sejam funções jurídicas no sentido estrito de funções de criação e aplicação do Direito, quer sejam funções jurídicas num sentido mais amplo que também inclui a função de observância do Direito.

Mas, visto que o costume, exatamente como a legislação, é um fato criador de Direito geral definido pela ordem jurídica, aquele poderia ser atribuído ao Estado com tão bom fundamento como esta. Se a criação de Direito consuetudinário não é atribuída ao Estado, é somente porque não é função de um órgão funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho, chamado a tal função através de uni processo especial.

Kelsen assevera que a atividade designada como administração estadual consta de duas partes, diferentes na sua estrutura jurídica. A função do governo, isto é, do chefe de Estado e dos membros do gabinete, dos ministros ou secretários de Estado assim como, em grande medida, dos órgãos da administração submetidos ao governo, é função jurídica específica no sentido estrito da palavra, a saber, criação e aplicação de normas jurídicas gerais e individuais, através das quais os indivíduos submetidos ao Direito, os súditos, são obrigados a uma determinada conduta, na medida em que à conduta oposta é ligado um ato de coerção cuja execução, porque é realizada por um órgão que funciona segundo o principio da divisão do trabalho, é atribuída ao Estado.

A atividade considerada como administração estadual representa uma realização imediata do fim do Estado. Com efeito, é uma conduta atribuída ao Estado que forma o conteúdo de deveres jurídicos. A função atribuída ao Estado não é função de criação e aplicação do Direito, mas função de observância do Direito. Os deveres cuja observância é atribuída ao Estado, que são considerados como função do Estado, são deveres de órgãos especialmente qualificados na sua posição jurídica - qualificados, a saber, como "funcionários" - e que atuam segundo o princípio da divisão do trabalho.

Para Kelsen o Estado se não limita a provocar uma determinada situação editando leis pelas quais os indivíduos que lhe estão submetidos são obrigados a uma conduta que representa esta situação, aplicando estas leis aos casos concretos e executando as sanções estatuídas por estas leis, mas ele próprio realiza essa situação por ele visada, quer dizer, a realiza através dos seus órgãos - ou seja, segundo o uso lingüistico dominante, a realiza por uma forma que lhe é atribuível. Tal o que sucede quando o Estado constrói e explora vias férreas, erige escolas e hospitais, fornece instrução, trata os doentes, em suma, quando desenvolve uma atividade econômica, cultural ou humanitária pela mesma forma que as pessoas privadas.Da mesma forma que a ordem jurídica parcial que constitui o Estado em sentido estrito, também o Estado como aparelho funcionarial, com o governo no topo, é uma parte integrante da ordem jurídica total que constitui o Estado em sentido amplo - o Estado cujos súditos formam o domínio pessoal de validade da ordem jurídica, cujo país forma o domínio territorial de validade da mesma ordem jurídica e cujo poder é a eficácia desta ordem jurídica - e, por isso, a atribuição ao Estado em sentido estrito, como referência à unidade daquela ordem jurídica parcial, implica a atribuição ao Estado em sentido amplo, como referência à unidade da ordem jurídica global.

Representação

Em síntese, para Kelsen "Representação" significa o mesmo que "atuação em vez ou no lugar de" (Vertretung). Diz-se: o incapaz não age por ele próprio, mas através do seu representante legal.

Kelsen crê encontrar a essência da representação no fato de a vontade do representante ser a vontade do representado, crê-se que o representante, através da sua atuação, não realiza a sua própria vontade mas a vontade do representado.

Em suma Kelsen quer dizer que com a representação, não se quer significar senão que o indivíduo que realiza a função está juridicamente, ou ético-politicamente apenas, vinculado a realizar esta função no interesse do indivíduo ou dos indivíduos aos quais, precisamente por isso, essa função é atribuída.

O Estado como sujeito de direitos e deveres

Para Kelsen os deveres e direitos do Estado como pessoa jurídica não são aqueles que são impostos ou conferidos ao Estado por uma ordem jurídica superior, o Direito internacional; são direitos e deveres que são estatuídos pela ordem jurídica estadual.

Deveres do Estado: dever estadual e ilícito estadual; responsabilidade do Estado

Para Kelsen, em essência, se se pressupõe um tal conceito, e especialmente o conceito aqui aceito, segundo o qual existe um dever jurídico de observar uma determinada conduta quando a ordem jurídica liga à conduta oposta um ato coercivo a título de sanção, então não existe normalmente qualquer dever jurídico atribuível ao Estado, mas apenas um dever ético-político.na realidade, nunca é o Estado como pessoa jurídica mas um indivíduo bem determinado quem cumpre ou viola o dever estatuído pela ordem jurídica, pode-se, no uso lingüístico, atribuir ao Estado um dever e a conduta que representa o seu cumprimento sem que também se lhe atribua a violação do dever; pode manter-se - no interesse da autoridade do Estado, ou seja, do seu governo - a concepção de que o Estado pode na verdade praticar - de conformidade com o dever - o lícito mas não - com violação do seu dever - o ilícito.

Com efeito, a ordem jurídica estadual pode autorizar um órgão do Estado a realizar uma conduta proibida pela ordem jurídica internacional, prescrevendo ou permitindo positivamente essa conduta. A conduta em questão apenas representa um delito para o Direito internacional, mas já não para o Direito estadual.

Fundamenta-se esta fórmula no fato de o Estado, que quer o Direito (porque o Direito é a sua "vontade"), não poder querer o ilícito (o não-Direito) e, por isso, não poder praticar o ilícito. Se um ilícito é praticado, só pode ser um ilícito do indivíduo que o cometeu através da sua conduta, mas não um ilícito do Estado, em relação ao qual este indivíduo apenas se comporta como órgão quando a sua conduta é autorizada pela ordem jurídica enquanto criação, aplicação, ou observância do Direito, mas não enquanto violação do Direito.

A violação do Direito cai fora da autorização ou competência conferida a um órgão do Estado e não é, por isso, atribuível ao Estado. Um Estado que praticasse o ilícito seria contraditório consigo mesmo.

Para Kelsen dizer que o Direito é a "vontade" do Estado, é "querido" pelo Estado, é uma metáfora com a qual se não exprime senão que a comunidade constituída pela ordem jurídica é o Estado, e que a personificação desta ordem jurídica é a pessoa do Estado.

E o ilícito não é - como se presume ao rejeitar a concepção de um ilícito estadual - a negação do Direito, mas, como já se mostrou, um pressuposto ao qual o Direito liga determinadas conseqüências.

Como o ilícito é um fato definido na ordem jurídica, pode ele muito bem ser referido à unidade personificada desta ordem jurídica, ou seja, pode ser atribuído ao Estado. Isso sucede, de fato, em certos casos. O princípio de que o Estado não pode praticar um ilícito não é mantido na linguagem correntemente usada sem importantes exceções.

Neste sentido, o Estado como pessoa jurídica pode, de acordo com o uso lingüístico dominante, praticar um ilícito, não cumprindo uma obrigação de prestar que lhe e imposta pela ordem jurídica estadual e, portanto, violando esse seu dever de prestar; mas a execução forçada do patrimônio do Estado, que a ordem jurídica estadual liga a este ilícito do Estado como sanção, não é interpretada como sendo dirigida contra a pessoa do Estado.

Direitos do Estado

Kelsen ensina que os direitos considerados direitos do Estado são direitos do indivíduo que, na sua qualidade de órgão do Estado, há de exercitar este poder jurídico.

Segundo este autor podemos atribuir o recebimento da prestação e o exercício do poder jurídico, em vez de à pessoa fictícia do Estado, aos indivíduos pertencentes à comunidade jurídica, quer dizer, podemos considerar os indivíduos que recebem a prestação não só como órgãos do Estado mas também como órgãos do povo que forma o Estado, isto é, dos indivíduos pertencentes à comunidade jurídica. Nessa medida, é possível considerar os direitos em questão como direitos coletivos destes indivíduos.

Kelsen assevera que se fala ainda de um direito do Estado a punir o delinqüente. Um tal direito - como direito reflexo - só existe quando exista um dever jurídico de suportar a pena, quer dizer, quando à conduta através da qual um indivíduo se subtrai a uma pena que lhe foi aplicada está ligada uma nova pena.

De especial importância são os direitos reais e, particularmente, os direitos de propriedade do Estado. Com efeito, estes formam o núcleo do patrimônio que se considera como patrimônio do Estado, o qual, como acima se mostrou, desempenha O principal papel na atribuição operada em relação ao Estado como aparelho burocrático de funcionários e, por conseguinte, também na atribuição daquela função que se designa como administração estadual imediata.

A chamada auto obrigação do Estado; o Estado de Direito

Segundo Kelsen a teoria tradicional designa por “auto-obrigação do Estado" uma situação de fato que consistiria em que o Estado, existente como realidade social independentemente do Direito, cria primeiramente o Direito e, depois, se submete - por assim dizer, de livre vontade - ao Direito.Só assim ele seria Estado de Direito.

Em primeiro lugar Kelsen ressalta que um Estado não submetido ao Direito é impensável. Com efeito, o Estado apenas é existente nos atos do Estado, que são atos postos por indivíduos e são atribuídos ao Estado como pessoa jurídica. E tal atribuição apenas é possível com base em normas jurídicas que regulam especificamente estes atos. Dizer que o Estado cria o Direito significa apenas que indivíduos, cujos atos são atribuídos ao Estado com base no Direito, criam o Direito.

De uma auto-obrigação do Estado apenas se poderia falar no sentido de que os deveres e direitos que são atribuídos à pessoa do Estado são estatuídos por aquela mesma ordem jurídica cuja personificação é a pessoa do Estado. Esta atribuição ao Estado, isto é, a referência à unidade de uma ordem jurídica e a personificação desta, daí mesmo resultante, é, como importa sempre acentuar, uma operação mental, um instrumento auxiliar do conhecimento. O que existe como objeto do conhecimento é apenas o Direito.

Para Kelsen se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo Estado é um Estado de Direito, esta expressão representa um pleonasmo. Porém, ela é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica.

Centralização e descentralização

Para este autor uma comunidade jurídica centralizada (idealmente) é aquela cujo ordenamento consta única e exclusivamente de normas jurídicas que valem para todo o território do Estado, enquanto uma comunidade jurídica descentralizada (idealmente) é aquela cujo ordenamento consta de normas que apenas vigoram para domínios (territoriais) parcelares.

Dizer que uma comunidade jurídica se desmembra em regiões ou parcelas territoriais, significa que todas as normas ou apenas certas normas deste ordenamento apenas vigoram para territórios parcelares. Neste último caso, a ordem jurídica que constitui a comunidade jurídica é integrada por normas com diferentes âmbitos espaciais de validade.

Em caso de descentralização completa - e não descentralização simplesmente parcial - não pode haver, porém, além das normas válidas para domínios parciais, quaisquer normas válidas para todo o território. Como, porém, a unidade do território se determina pela unidade de validade das normas, parece questionável se, no caso ideal de pura descentralização, se pode falar ainda de um território global e de um ordenamento estadual. E que a descentralização somente pode existir na medida em que se trate de desmembramento de uma e mesma comunidade jurídica, de um e mesmo território.

Concluindo este raciocínio Kelsen destaca que é de se notar que não só a criação de normas jurídicas, mas também a sua aplicação, todas as funções estatuídas por uma ordem jurídica, em suma, podem, neste sentido dinâmico, ser centralizadas ou descentralizadas, quer dizer, ser realizadas por um único órgão ou por uma pluralidade de órgãos. A centralização no sentido dinâmico atinge o grau máximo quando todas as funções são realizadas apenas por um único órgão especialmente quando todas as normas de uma ordem jurídica, tanto as gerais como as individuais, são criadas e aplicadas por um e mesmo indivíduo. A descentralização em sentido dinâmico alcança o grau mais elevado quando todas as funções podem ser exercidas por todos os indivíduos subordinados à ordem jurídica.

A superação do dualismo de Direito e Estado

Neste tópico Kelsen aduz que uma vez reconhecido que o Estado, como ordem de conduta humana, é uma ordem de coação relativamente centralizada, e que o Estado como pessoa jurídica é a personificação desta ordem coerciva, desaparece o dualismo de Estado e Direito como uma daquelas duplicações que têm a sua origem no fato de o conhecimento hispostasiar a unidade (e uma tal expressão de unidade é o conceito de pessoa), por ele mesmo constituída, do seu objeto. Então, o dualismo de pessoa do Estado e ordem jurídica surge, considerado de um ponto de vista teorético-gnoseológico, em paralelo com o dualismo, igualmente contraditório, de Deus e mundo.

Desta forma a tentativa de legitimar o Estado como Estado "de Direito" revela-se inteiramente infrutífera, porque todo Estado tem de ser um Estado de Direito no sentido de que todo Estado é uma ordem jurídica.

Por fim, Kelsen frisa que esta superação metodológico-crítica do dualismo Estado- Direito é, ao mesmo tempo, a aniquilação impiedosa de uma das mais eficientes ideologias da legitimidade. Daí a resistência apaixonada que a teoria tradicional do Estado e do Direito opõe à tese da identidade dos dois, fundamentada pela Teoria Pura do Direito.

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Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel. Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5602, 2 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69158. Acesso em: 19 abr. 2024.

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