Capa da publicação Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen: reflexão analítica e síntese da obra
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Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen

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Resumo:


  • Hans Kelsen explora a teoria pura do direito, destacando a separação entre direito e natureza, e enfatiza a necessidade de um método científico puro, livre de influências de outras áreas do conhecimento.

  • A obra aborda o conceito de norma fundamental (Grundnorm) como base da validade de um sistema jurídico, e a estrutura escalonada das normas, onde normas inferiores derivam sua validade de normas superiores.

  • Kelsen também discute a relação entre direito e estado, defendendo a identidade entre ambos e argumentando contra a dualidade tradicional que os separa, além de tratar das relações entre direito internacional e direito estadual, propondo uma visão monista.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

7. O ESTADO E O DIREITO INTERNACIONAL

A essência do Direito internacional

A natureza jurídica do Direito internacional

O Direito internacional é - de acordo com a habitual determinação do seu conceito - um complexo de normas que regulam a conduta recíproca dos Estados - que são os sujeitos específicos do Direito internacional.

Segundo a determinação do conceito de Direito que aqui propusemos, o chamado Direito internacional é Direito se é uma ordem coercitiva da conduta humana, pressuposta como soberana; se liga aos fatos por ele definidos como pressupostos atos de coerção por ele determinados como conseqüências e, portanto, pode ser descrito em proposições jurídicas, da mesma forma que o Direito estadual.

Para Kelsen as sanções específicas do Direito internacional são as represálias e a guerra. Por represália entende-se uma agressão à esfera de interesses de um Estado - noutras circunstâncias proibida pelo Direito internacional -, agressão essa que se realiza sem a vontade, ou melhor, mesmo contra a vontade desse Estado e, neste sentido, é um ato coercitivo, ainda que seja levada a cabo - por falta de resistência do Estado atingido - sem o emprego de coação física, isto é, sem o emprego da força das armas. No entanto, não está excluído o emprego da coação física.

As represálias podem, quando seja necessário, ser exercidas mesmo com o emprego da força armada. A diferença entre uma represália realizada com a força das armas e uma guerra é meramente quantitativa. A represália é uma agressão limitada à ofensa de determinados interesses, a guerra é uma agressão ilimitada à esfera de interesses de um outro Estado.

Kelsen esclarece que deve entender-se por "guerra" a ação, realizada por meio da força armada, que um Estado dirige contra outro, sem se atender ao fato de haver ou não reação contra aquele por meio de uma ação da mesma espécie, isto é, por meio de uma contra-guerra. Tal como as represálias, também a guerra é, ela mesma - quando não seja uma sanção - um delito. E este o chamado princípio do bellum justum.

Estas sanções consistem, tal como as sanções do Direito estadual, na privação compulsória da vida, da liberdade e dos outros bens, particularmente de bens econômicos dos indivíduos. Estas sanções do Direito internacional não se distinguem, quanto ao seu conteúdo, das do Direito estadual. Mas são dirigidas contra o Estado.

O Direito internacional como ordem jurídica primitiva

Segundo Kelsen o Direito internacional, como ordem coerciva, mostra, na verdade, o mesmo caráter que o Direito estadual. Distingue-se dele, porém, e revela uma certa semelhança com o Direito da sociedade primitiva, pelo fato de não instituir, pelo menos enquanto Direito internacional geral vinculante em relação a todos os Estados, quaisquer órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho para a criação e aplicação das suas normas.

Encontra-se ainda num estádio de grande descentralização.A formação das normas gerais processa-se pela via do costume ou através do tratado, ou seja, por intermédio dos próprios membros da comunidade, e não por meio de um órgão legislativo especial.

A construção escalonada do Direito internacional

Nesse sub-tópico Kelsen revela que entre as normas do Direito internacional tem particular importância a que usualmente é designada pela fórmula pacta sunt servanda. Ela autoriza os sujeitos da comunidade jurídica internacional a regular, através de tratados, a sua conduta recíproca, quer dizer, a conduta dos seus órgãos e súditos em relação aos órgãos e súditos dos outros. O Direito internacional pactício atualmente em vigor tem, à parte certas exceções, caráter meramente particular.

As suas normas não vigoram em relação a todos os Estados, mas apenas em relação a dois ou a um grupo maior ou menor de Estados. Constituem simplesmente comunidades parcelares. Com efeito, a função de um tal órgão criador de Direito internacional apóia-se, ela mesma, de novo, num pacto de Direito internacional, numa norma, portanto, que pertence ao segundo escalão do Direito internacional. Como este - o Direito internacional produzido pela via dos tratados internacionais - se apóia sobre uma norma do Direito internacional geral consuetudinário, sobre uma norma do estrato ou camada relativamente mais elevada, é mister que valha como norma fundamental pressuposta do Direito internacional uma norma que institua como fato gerador de Direito o costume constituído pela conduta recíproca dos Estados.

Imposição de obrigações e atribuições de direitos, pelo Direito internacional, de forma simplesmente mediata

Aqui Kelsen afirma que o Direito internacional impõe deveres e confere direitos aos Estados. Impõe aos Estados a obrigação de adotarem uma determinada conduta, na medida em que liga à conduta oposta as sanções acima referidas - represálias e guerra - e, assim, proíbe esta conduta, considerando-a delito, e prescreve a sua contraria. Difere de um direito subjetivo privado pelo fato de a sanção não dever ser primeiramente ordenada por uma decisão judicial e executada por um órgão funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho, e, por isso, o Estado relativamente ao qual o dever foi violado não tem o poder jurídico de instaurar um processo judicial dirigido à sanção, mas tem o poder jurídico de decidir ele próprio que, no caso em apreço, deve ser dirigida uma sanção contra um Estado que, em face dele, faltou à sua obrigação, e o de executar ele próprio essa sanção.

Para Kelsen a imposição de deveres e a atribuição de direitos ao Estado pelo Direito internacional têm o mesmo caráter que a imposição de obrigações e a atribuição de direitos a uma corporação pela ordem jurídica do Estado singular. O Direito internacional deixa à ordem jurídica de cada Estado a determinação deste indivíduo. A conduta deste indivíduo prescrita ou proibida pelo Direito internacional, a conduta que traduz a observância ou violação do dever e, portanto o mesmo dever, são atribuídos ao Estado, isto é, são referidos à unidade da ordem jurídica estadual, na medida em que aquela conduta é determinada por esta ordem jurídica como função do indivíduo que, no caso, funciona como órgão do Estado - função essa a realizar segundo o princípio da divisão do trabalho.

Desta forma, a afirmação de que a guerra e as represálias, como sanções do Direito internacional, são dirigidas contra o Estado, significa que o padecimento do mal destas sanções, que de fato é sofrido pelos indivíduos pertencentes ao Estado, é atribuído à pessoa do Estado. Neste sentido, as ações de combate que constituem o fato guerra devem, segundo o Direito internacional geral, ser dirigidas apenas contra os membros da força armada, que é um órgão do Estado. A atribuição do seu padecimento ao Estado pode, por conseguinte, exprimir que elas são dirigidas contra um órgão do Estado. Porém, não fica excluído que por estes atos sejam efetivamente atingidos indivíduos que não são membros do exército, e, com a técnica de guerra atual, nem mesmo é possível evitar que tal suceda.O que com isto se exprime é simplesmente a imposição tão-só mediata de deveres e a concessão, também tão-somente mediata, de direitos aos indivíduos pelo Direito internacional - imposição e concessão mediatizadas, na verdade, pela ordem jurídica de cada Estado.

Direito internacional e Direito estadual

A unidade do Direito internacional e do Direito estadual

Para Kelsen toda a evolução técnico-jurídica apontada tem, em última análise, a tendência para fazer desaparecer a linha divisória entre Direito internacional e ordem jurídica do Estado singular, por forma que o último termo da real evolução jurídica, dirigida a uma centralização cada vez maior, parece ser a unidade de organização de uma comunidade universal mundial, quer dizer, a formação de um Estado mundial.

A isto se opõe a concepção tradicional que pretende ver no Direito internacional e no Direito de cada Estado dois sistemas de normas diferentes, independentes um do outro, isolados um em face do outro, porque apoiados em duas normas fundamentais diferentes. Esta construção dualista - ou melhor, "pluralista", se levarmos em conta a pluralidade das ordens jurídicas estaduais - é, no entanto, insustentável, mesmo do ponto de vista lógico, quando tanto as normas do Direito internacional como as das ordens jurídicas estaduais devem ser consideradas como normas simultaneamente válidas, e válidas igualmente como normas jurídicas.

Não há qualquer conflito entre Direito internacional e Direito estadual

A concepção de que o Direito estadual e o Direito internacional são ordens jurídicas distintas uma da outra e independentes uma da outra na sua validade é essencialmente baseada na existência de conflitos insolúveis entre os dois. Uma análise mais aprofundada mostra, porém, que o que se considera como conflito entre normas do Direito internacional e normas de um Direito estadual não é de forma alguma um conflito de normas, que tal situação pode ser descrita em proposições jurídicas que de modo algum se contradizem logicamente. Um conflito dessa espécie é visto principalmente no fato de uma lei do Estado poder estar em contradição com um tratado de Direito internacional, como, v. g., quando um Estado está obrigado por tratado a conceder aos membros de uma minoria os mesmos direitos políticos que confere aos membros da maioria e, numa lei desse Estado, são retirados aos membros do grupo minoritário todos os direitos políticos, sem que tal contradição, no entanto, afete, quer a validade da lei, quer a do tratado.

Simplesmente, a este fato corresponde um outro perfeitamente análogo dentro da ordem jurídica estadual sem que, no entanto, se ponha por qualquer forma em dúvida, por tal motivo, a unidade desta. Também a chamada lei inconstitucional é uma lei válida e permanece tal sem que, por essa razão, se tenha de considerar a Constituição como anulada ou modificada. Também a chamada sentença ilegal é uma norma válida e permanece em vigor até ser anulada por uma outra sentença. Já acima claramente se mostrou que a “antinormalidade” de uma norma não significa que haja qualquer conflito entre a norma inferior e a norma superior, mas apenas traduz a anulabilidade da norma inferior ou a punibilidade de um órgão responsável.

As relações mútuas entre dois sistemas de normas

Kelsen assevera que a unidade entre Direito internacional e Direito estadual pode, no entanto, ser produzida de dois modos diferentes, do ponto de vista gnoseológico. E, quando consideramos ambos estes Direitos como ordenamentos de normas vinculantes simultaneamente válidas, não o poderemos fazer por qualquer outra forma que não seja abrangendo a ambos, por uma forma ou por outra, em um sistema descritível em proposições jurídicas não contraditórias.

Dois complexos de normas do tipo dinâmico, como o ordenamento jurídico internacional e um ordenamento jurídico estadual, podem formar um sistema unitário tal que um desses ordenamentos se apresente como subordinado ao outro, porque um contém uma norma que determina a produção das normas do outro e, por conseguinte, este encontra naquele o seu fundamento de validade.

A norma fundamental do ordenamento superior é, neste caso, também o fundamento de validade do ordenamento inferior. Se o Direito internacional e o Direito estadual formam um sistema unitário, então a relação entre eles tem de ajustar-se a uma das duas formas expostas. O Direito internacional tem de ser concebido, ou como uma ordem jurídica delegada pela ordem jurídica estadual e, por conseguinte, como incorporada nesta, ou como uma ordem jurídica total que delega nas ordens jurídicas estaduais, supra-ordenada a estas e abrangendo-as a todas como ordens jurídicas parciais. Ambas estas interpretações da relação que intercede entre o Direito internacional e o Direito estadual representam uma construção monista. A primeira significa o primado da ordem jurídica de cada Estado, a segunda traduz o primado da ordem jurídica internacional.

A inevitabilidade de uma construção monista
α) O reconhecimento do Direito internacional por cda Estado: o primado da ordem jurídica estadual

Para Kelsen os representantes de uma construção dualista consideram o Direito internacional como um sistema de normas jurídicas vinculantes que se encontram em vigor ao lado das normas do Direito estadual. Por isso, têm de dar resposta à questão de saber por que é que as normas do Direito internacional vinculam o Estado singular, que é que constitui o fundamento da sua validade. Ao responderem a esta questão, partem da validade da própria ordem jurídica estadual, pressuposta por eles como evidente. Quando, porém, se parta da validade de uma ordem jurídica estadual, surge a questão de saber como é que pode ser fundamentada, tomando este ponto de partida, a validade do Direito internacional.

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Em tal hipótese, o fundamento da validade do Direito internacional tem de ser ancorado na ordem jurídica estadual. É o que se faz através da doutrina de que o Direito internacional apenas vigora em relação a um Estado quando seja reconhecido por este Estado como vinculante, e seja reconhecido tal como é configurado pelo costume no momento desse reconhecimento. Esta concepção é a dominante na jurisprudência anglo-americana e tem expressão nas modernas constituições que contêm preceitos segundo os quais o Direito internacional geral deve ser havido como parte integrante da ordem jurídica estadual - com o que o Direito internacional geral é reconhecido e é tornado parte integrante da ordem jurídica estadual cuja Constituição contenha um tal preceito.

Segundo o Direito internacional vigente, este é aplicável às relações de um Estado com uma outra comunidade apenas sob a condição de esta comunidade ser reconhecida, por este Estado, como Estado no sentido do Direito internacional. Na impostação da questão vai já implícita a suposição de que o fundamento de validade do Direito internacional tem de ser encontrado na ordem jurídica estadual, isto é, a admissão do primado da ordem jurídica do próprio Estado, ou seja, da sua soberania, ou, o que significa o mesmo, a aceitação da soberania do Estado relativamente ao qual está em questão a validade do Direito internacional.

Esta soberania do Estado é o fator decisivo para a admissão do primado da ordem jurídica estadual. Esta soberania não é qualquer qualidade perceptível - ou objetivamente cognoscível por qualquer outra forma -, um objeto real, mas é uma pressuposição: a pressuposição de uma ordem normativa com ordem suprema cuja validade não é dedutível de qualquer ordem superior. O Direito internacional, que do ponto de vista do primado da ordem jurídica estadual - ou da soberania do Estado - apenas vale na medida em que um Estado o reconhece como vinculante em relação a si, surge, por conseguinte, não como uma ordem jurídica supra-estadual, e também não como uma ordem jurídica independente da própria ordem estadual, isolada em face desta, mas - na medida em que seja Direito - como uma parte integrante da própria ordem jurídica estadual. Mas o Direito internacional não se deixa definir pelo objeto que as suas normas regulam.

Festa forma, para Kelsen o Direito internacional regula não só a conduta dos Estados, ou seja, não só regula mediatamente a conduta dos indivíduos, como também regula imediatamente a conduta desses mesmos indivíduos.Com efeito, se o Direito internacional apenas vale como parte integrante de uma ordem jurídica estadual, ele não pode ser uma ordem jurídica diferente daquela, independente dela na sua validade; e, nessa hipótese, não pode haver conflitos entre ambas, já mesmo porque ambas se apóiam - para nos exprimirmos na linguagem da jurisprudência tradicional - sobre a "vontade" de um e mesmo Estado.

β) O primado da ordem jurídica internacional

Neste tópico, em síntese, Kelsen destaca que se partirmos do Direito internacional como uma ordem jurídica válida, o conceito de Estado não pode ser definido sem referência ao Direito internacional. Visto desta posição, ele é uma ordem jurídica parcial, imediata em face do Direito internacional, relativamente centralizada, com um domínio de validade territorial e temporal jurídico-internacionalmente limitado e, relativamente à esfera de validade material, com uma pretensão à totalidade (Totalitãtsanspruch) apenas limitada pela reserva do Direito internacional.

γ) A diferença entre as duas construções monistas

No entender de Kelsen, o Direito internacional, cujo reconhecimento por parte de um Estado é, do ponto de vista do primado da ordem jurídica estadual, pressuposto da sua validade em relação a esse Estado, e que, portanto, somente vale como parte integrante de uma ordem jurídica estadual, é, quanto ao conteúdo, o mesmo Direito internacional que, do ponto de vista do primado da ordem jurídica internacional, vale como uma ordem jurídica supra-ordenada a todas as ordens jurídicas estaduais, as quais seriam ordens delegadas daquela.

A diferença entre as duas construções monistas das relações entre o Direito internacional e o Direito estadual respeita apenas ao fundamento da validade do Direito internacional, não ao seu conteúdo. Segundo a primeira, que tem o seu ponto de partida na validade de uma ordem jurídica estadual, o fundamento de validade do Direito internacional é a norma fundamental pressuposta por força da qual a fixação da primeira Constituição histórica do Estado, cujo ordenamento forma o ponto de partida da construção, é um fato gerador de Direito. Segundo a outra, que não toma o seu ponto de partida numa ordem jurídica estadual, mas no Direito internacional, o seu fundamento de validade é a norma fundamental pressuposta por virtude da qual o costume dos Estados é um fato gerador de Direito. O costume dos Estados é também um fato gerador de Direito nos quadros de um Direito internacional que apenas valha como parte integrante de uma ordem jurídica estadual. Porém, neste caso, ele não o é por força de uma simples norma pressuposta segundo a qual o costume dos Estados seria um fato gerador de Direito, mas por força de uma norma positivamente posta com o ato do reconhecimento, norma essa cujo fundamento de validade é, em última linha, a norma fundamental pressuposta da ordem jurídica estadual, ordem jurídica essa que forma o ponto de partida da construção, valendo o Direito internacional como parte integrante dela.

Por força do Direito internacional, que é sua parte integrante, a ordem jurídica estadual que forma o ponto de partida da construção é transmudada numa ordem jurídica universal que delega em todas as outras ordens jurídicas estaduais e compreende a todas. O resultado final é o mesmo que aquele a que conduz o primado da ordem jurídica internacional: a unidade gnoseológica de todo Direito vigente. Mas, enquanto o ponto de partida da construção, na hipótese do primado do Direito internacional, somente pode ser este mesmo Direito, o ponto de partida da construção, na hipótese do primado da ordem jurídica estadual, pode - como já notamos - ser qualquer ordem jurídica estadual - só o podendo ser, no entanto, uma de cada vez. E apenas quando a construção da relação entre Direito internacional e Direito estadual tome o seu ponto de partida numa ordem jurídica estadual é que se tem de chegar necessariamente à aceitação do primado desta ordem jurídica estadual - sim, só então é que este primado já é pressuposto.

Do fato de o Direito internacional se situar acima dos Estados, acredita-se que é possível concluir que a soberania do Estado é essencialmente limitada e, por essa via, se torna possível uma organização mundial eficaz. O primado do Direito internacional desempenha um papel decisivo na ideologia política do pacifismo. A soberania do Estado - que o primado do Direito internacional exclui por completo - é algo completamente diferente da soberania do Estado que é limitada pelo Direito internacional. Aquela significa: autoridade jurídica suprema; esta: liberdade de ação do Estado.

Para este autor a limitação desta opera-se através do Direito internacional precisamente do mesmo modo, quer este seja pensado como ordem jurídica supra-estadual, quer como ordem jurídica integrada na ordem jurídica estadual. Uma organização mundial eficaz é tão possível pela aceitação de uma construção como pela aceitação da outra. O Direito internacional positivo, porém, não põe quaisquer restrições à limitação da soberania do Estado como liberdade de ação do mesmo Estado. Por meio de tratado pode ser criada uma organização internacional a tal ponto centralizada que tenha ela própria caráter de Estado, por forma tal que os Estados contratantes que nela sejam incorporados percam o seu caráter de Estados. E, porém, uma questão de política a questão de saber até que ponto um governo estadual deve ou pode limitar a liberdade de ação do seu Estado através de tratados de Direito internacional. A resposta não pode ser deduzida, quer do primado do Direito internacional, quer do primado do Direito estadual.

Concepção do Direito e concepção de mundo

Assim como a concepção subjetivista parte do próprio Eu soberano para compreender o mundo e, deste modo, não pode conceber este como mundo exterior, mas apenas como mundo interior, como representação (idéia) e vontade do Eu, assim também a construção designada como primado da ordem jurídica estadual parte do próprio Estado soberano para apreender o mundo exterior do Direito, o Direito internacional e as outras ordens jurídicas estaduais, e só pode, portanto, conceber este Direito externo como Direito interno, como parte constitutiva da ordem jurídica do próprio Estado.

Do mesmo modo que a mundividência subjetiva, egocêntrica, conduz ao solipsismo, isto é, à concepção de que só o próprio Eu existe como ser soberano, e que tudo o mais apenas existe nele e a partir dele, e, assim, não pode sufragar a pretensão dos outros entes a serem também um Eu soberano, também o primado da ordem jurídica do próprio Estado conduz a que apenas este possa ser concebido como soberano, pois a soberania de um, isto é, do nosso próprio Estado, exclui a soberania de todos os outros Estados. Neste sentido, o primado da ordem jurídica do nosso próprio Estado pode ser designado como subjetivismo, ou mesmo como solipsismo do Estado. Também é possível comparar a oposição entre as duas construções jurídicas com a oposição existente entre a imagem geocêntrica, ptolomaica, do mundo e a imagem heliocêntrica, copernicana, do mesmo.

Assim como, segundo uma das construções, o nosso próprio Estado está no centro do mundo do Direito, assim, na imagem ptolomaica do mundo, a nossa Terra é situada num ponto central à volta do qual o Sol gira. Assim como, segundo a outra construção, o Direito internacional ocupa o centro do mundo jurídico, assim, na imagem copernicana do mundo, o Sol se localiza no centro à volta do qual gira a nossa Terra.

Aquele para quem a idéia da soberania do seu Estado é valiosa, porque se identifica com este na sua autoconsciência exaltada, preferirá o primado da ordem jurídica estadual ao primado da ordem jurídica internacional. Aquele, para quem a idéia de uma organização mundial é mais valiosa, preferirá o primado do Direito internacional ao primado do Direito estadual. Isso não significa, como já foi acentuado, que a teoria do primado da ordem jurídica estadual seja menos favorável ao ideal da organização mundial do que o primado da ordem jurídica internacional.

Desta forma, para Kelsen, a Teoria Pura do Direito, ao desmascarar estes sofismas, ao retirar-lhes a aparência de demonstrações lógicas que, como tais, seriam irrefutáveis, e ao reduzi-los a argumentos políticos aos quais se pode obviar com contra-argumentos da mesma espécie, desimpede o caminho para o livre desenvolvimento de um ou outro destes pontos de vista políticos, sem postular ou justificar qualquer deles. Como teoria, ela fica perante eles completamente indiferente.

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Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel. Reflexão analítica e síntese da obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5602, 2 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69158. Acesso em: 23 dez. 2024.

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