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Apropriação indébita do ICMS

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Agenda 15/12/2018 às 15:00

A partir de uma crítica ao posicionamento do STJ no julgamento do REsp n. 1.543.485-GO, destacamos os reflexos positivos da tese no combate à sonegação fiscal e na lavagem de dinheiro.

SUMÁRIO: Introdução. 1 Breve resumo da controvérsia. 2 A posição do STJ no HC n. 399.109-SC. 3 A (des)atenta leitura do tipo penal previsto no artigo 2º, II, da Lei n. 8.137/1990. 4 Efeitos positivos da decisão do STJ na preservação da ordem tributária e econômica. Conclusão. Referências.

RESUMO: Este breve ensaio visa analisar o posicionamento da 3º Seção do Superior Tribunal de Justiça que, ao julgar em agosto de 2018 o HC n. 399.109-SC, pacificou o posicionamento da 5ª e 6ª Turma da Corte, reconhecendo a adequação típica da conduta da apropriação indébita do ICMS no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990. A partir de considerações já levantadas quando da crítica ao posicionamento da Corte acerca da decisão no julgamento do REsp n. 1.543.485-GO, visa-se destacar os reflexos positivos da tese no combate à sonegação fiscal e na lavagem de dinheiro e destacar a improcedência das críticas agora dirigidas ao posicionamento adotado pela Corte, decorrentes da confusão e justaposição de conceitos tributários inaplicáveis à dogmática penal.

PALAVRAS-CHAVE: Sonegação Fiscal. Imposto sobre Consumo. ICMS. Apropriação indébita de ICMS.


INTRODUÇÃO

Em 2016 tivemos a oportunidade de atacar, ponto a ponto, a inconsistência da conclusão exarada pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) quando do julgamento do REsp n. 1.543.485-GO, que a par de reconhecer a possibilidade de adequação típica da apropriação indébita do ICMS no delito do artigo 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, restringiu a conduta à hipótese do ICMS cobrado pelo substituto do substituído tributário[1].

Na análise crítica objetivou-se destacar os efeitos da sonegação fiscal, a equivalência do tipo penal brasileiro no direito comparado, a admissão dessa espécie de conduta no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) e, por fim, sob inúmeros argumentos penais e extrapenais (tributários, econômicos etc.), o reconhecimento da ocorrência do crime para a conduta de apropriação indébita dos tributos indiretos.

Parcela significativa desses argumentos foram acolhidos pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o HC n. 399.109-SC, que resultou na posição firmada, por maioria, do reconhecimento deste delito, independentemente da hipótese do ICMS ser “próprio” ou por substituição tributária.

A partir dessa decisão, porém, e como já era de se esperar, em virtude dos inúmeros interesses atingidos, novos argumentos foram trazidos à tona, em fortalecimento ao voto vencido, na expectativa, agora, de se rediscutir a questão no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Assim, o presente artigo tem por objetivo revisitar o tema, sem repetir os argumentos já trazidos na análise anterior, mas, vislumbrando a ocorrência do delito sob a ótica da dogmática penal, melhor esclarecer o intérprete sobre a sua compatibilidade com o ordenamento constitucional e convencional vigente e, principalmente, destacar a contribuição da tese à resolução de um dos maiores problemas hoje existentes na preservação da ordem econômica e tributária.


1 BREVE RESUMO DA CONTROVÉRSIA

A rediscussão do tema impõe uma breve introdução à controvérsia enfrentada pelo STJ no âmbito de suas turmas (5ª e 6ª), posteriormente resolvida pela maioria da 3ª Seção, ao julgar o HC n. 399.109-SC.

A problemática envolve a conduta de declarar ao Fisco (Estadual) os valores recebidos à título de Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) incidente sobre as saídas de mercadorias[2], e o saldo a recolher após a operação de apuração do valor (confronto entre débitos e créditos).

De acordo com a legislação vigente em Santa Catarina, por exemplo, o contribuinte do imposto tem até o décimo dia do mês seguinte ao mês de apuração para declarar e recolher o imposto devido[3]. Não recolhendo o imposto devido neste prazo regulamentar, defende-se que o contribuinte pratica conduta típica descrita no artigo 2º, inciso II, da lei n. 8.137/1990:

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:

[...]

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

A partir dessa leitura, o Superior Tribunal de Justiça firmou duas interpretações distintas, ambas defendidas por parcela da doutrina e acolhidas na jurisprudência:

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  1. O crime em questão ocorre somente no caso de tributos indiretos, quando não obstante o contribuinte de direito (vendedor) figure na sujeição passiva tributária, repercuta o ônus financeiro do tributo cobrando do contribuinte de fato (comprador) o imposto devido, independentemente da relação jurídico-tributária posterior (ou seja, seria irrelevante, no ICMS, tratar-se de ICMS “próprio” ou decorrente da substituição tributária).
  2. O crime em questão pressupõe que haja uma relação jurídico-tributária entre quem é cobrado (contribuinte de fato) pelo contribuinte de direito e o Fisco, ocorrendo no ICMS unicamente na hipótese da cobrança do imposto pelo substituto tributário do contribuinte substituído.

A distinção entre ambas as correntes se dá quanto à impressão, na segunda, de que apenas na relação entre o substituto tributário e o substituído é que seria possível reconhecer a presença da elementar típica “tributo cobrado”, não existindo cobrança de imposto entre o vendedor da mercadoria (que recolheria ICMS próprio sobre a venda) e seu comprador. Para essa corrente, portanto, sendo o tributo próprio, não seria cobrado de ninguém e, por conseguinte, tratar-se-ia de dívida de valor, cujo não pagamento seria impunível na esfera criminal por força da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (art. 7, item 7), interiorizada pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, e pela própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1998), que veda a prisão por dívida (artigo 5º, inciso LXVII).

Sanando essa controvérsia, que permeou por quase dois anos conflitos entre e dentro das próprias turmas especializadas do STJ (5ª e 6ª), a 3ª Seção, que as congrega, aderiu à primeira corrente, definindo que, sendo o ICMS imposto indireto, havendo repercussão econômica do crime a terceiro, este é cobrado pelo imposto devido e, portanto, a retenção do valor é capaz de configurar o crime descrito no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990.

Por fim, nesse aspecto, havendo interesse do leitor em compreender com maior profundidade os contornos dessa controvérsia e as razões fulcrais da criminalização da conduta, sugere-se a leitura do artigo O ICMS e o delito previsto no artigo 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, também deste autor.


2 A POSIÇÃO DO STJ NO HC N. 399.109-SC

A controvérsia interpretativa sobre a conduta da apropriação do ICMS e sua tipificação legal restou bem demonstrada no julgamento HC n. 399.109-SC, no âmbito da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, notadamente quanto ao voto vencedor, do relator Ministro Rogério Schietti Cruz, e o voto divergente vencido da Ministra Maria Thereza de Assis Moura.

Os principais pontos de confluência e divergência das teses podem ser extraídos das respectivas ementas. O voto vencedor, sob relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, ficou assim ementado:

HABEAS CORPUS. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS POR MESES SEGUIDOS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. DECLARAÇÃO PELO RÉU DO IMPOSTO DEVIDO EM GUIAS PRÓPRIAS. IRRELEVÂNCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO. TERMOS "DESCONTADO E COBRADO". ABRANGÊNCIA. TRIBUTOS DIRETOS EM QUE HÁ RESPONSABILIDADE POR SUBSTITUIÇÃO E TRIBUTOS INDIRETOS. ORDEM DENEGADA.

1. Para a configuração do delito de apropriação indébita tributária - tal qual se dá com a apropriação indébita em geral - o fato de o agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido não tem o condão de elidir ou exercer nenhuma influência na prática do delito, visto que este não pressupõe a clandestinidade.

2. O sujeito ativo do crime de apropriação indébita tributária é aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme claramente descrito pelo art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, que exige, para sua configuração, seja a conduta dolosa (elemento subjetivo do tipo), consistente na consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo devido. A motivação, no entanto, não possui importância no campo da tipicidade, ou seja, é prescindível a existência de elemento subjetivo especial.

3. A descrição típica do crime de apropriação indébita tributária contém a expressão "descontado ou cobrado", o que, indiscutivelmente, restringe a abrangência do sujeito ativo do delito, porquanto nem todo sujeito passivo de obrigação tributária que deixa de recolher tributo ou contribuição social responde pelo crime do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, mas somente aqueles que "descontam" ou "cobram" o tributo ou contribuição.

4. A interpretação consentânea com a dogmática penal do termo "descontado" é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo "cobrado" deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo), de maneira que não possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direito.

5. É inviável a absolvição sumária pelo crime de apropriação indébita tributária, sob o fundamento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias é atípico, notadamente quando a denúncia descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há excludentes de ilicitude, como ocorreu no caso. Eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar há que ser esclarecida com a instrução criminal.

6. Habeas corpus denegado.

(STJ, HC n. 399.109-SC, 3ª Seção, Relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 22 de agosto de 2018).

Como dito alhures, as teses defendidas na fundamentação desse voto já foram objeto de abordagem em artigo anterior pelo autor, pelo que se evita, aqui, a cansativa repetição.

Merece destaque, porém, do voto vencedor, a precisa abordagem do Relator sob a ótica da dogmática penal, em razão de que o direito penal é (ou ao menos deveria ser) a fonte primária de interpretação das normas penais, servindo a integração com o direito tributário – fonte secundária – como instrumento a ser consultado para a compreensão de determinados conceitos que sejam estranhos ao primeiro ramo do direito ou que por ele não sejam esclarecidos.

O voto vencido, por sua vez, possui matrizes interessantes que merecem destaque, notadamente na avaliação do cerne da controvérsia[4]:

O ponto fulcral da questão reside em saber como se deve interpretar a expressão típica tributo "descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação".

Ao se referir ao tributo “descontado ou cobrado”, o tipo penal está a aludir aos casos de responsabilidade tributária – e não aos impostos indiretos, em que o custo é repassado, apenas do ponto de vista econômico, a terceiros.

No caso do ICMS, o consumidor não é contribuinte do imposto, no sentido técnico, nem sujeito passivo da obrigação, o que significa que ele jamais será cobrado pelo pagamento do imposto devido na operação. Não existe relação jurídica tributária possível entre o Fisco estadual e o consumidor final, de modo que não é correto, juridicamente, considerar que o valor do ICMS embutido no preço tenha sido dele "cobrado" ou "descontado". O consumidor é, apenas, "contribuinte de fato", conceito que, juridicamente, tem relevância unicamente para fins de repetição de indébito tributário (CTN, art. 166).

Salvo para essa finalidade, o conceito tem caráter meramente econômico. Sob esta perspectiva, é também o consumidor quem arca, por exemplo, com o ônus econômico do imposto de renda e com a contribuição previdenciária pagos pelo comerciante, já que, na formação do preço da mercadoria, são levados em consideração todos os custos, diretos e indiretos, da atividade. Da mesma forma, o custo do aluguel do imóvel, da energia elétrica, dos funcionários etc., tudo isso é repassado ao consumidor.

Nem por isso alguém sustenta que há apropriação indébita do imposto de renda quando o consumidor compra um produto e o comerciante, após contabilizar corretamente o tributo, simplesmente deixa de recolhê-lo.

No caso, ao que se tem, o réu era administrador de uma empresa contribuinte de ICMS e, realizando a venda de mercadorias com o valor do tributo incluído no preço dos produtos, embora tenha registrado regularmente a apuração do valor do imposto devido nos livros fiscais, deixou de adimplir a obrigação tributária.

Em casos tais, o comerciante não comete o delito de apropriação indébita tributária porque não há apropriação de tributo devido por terceiro, o tributo é devido por ele (em nome próprio).

De fato, sob a ótica da dogmática penal, o ponto fulcral da controvérsia está no reconhecimento ou não da configuração da conduta na elementar típica do delito.

Outra parcela crítica à decisão, porém, tem focado seus argumentos em aspectos tributários (fonte secundária da interpretação da norma penal), sem compreender, porém, a essência desse tipo penal. Com efeito, tão logo publicada a decisão, críticas[5] não tardaram a surgir, em retrospecção aos argumentos expostos na citada declaração de voto vencido. A principais teses arguidas nas contrariedades se referem aos seguintes aspectos:

1) o processo penal, nesses casos, funciona como forma de coagir o contribuinte ao pagamento de tributos;

2) o Supremo Tribunal Federal tem perfilado a tese de que apenas fraude e falsificação podem configurar o delito de sonegação fiscal;

3) como se trata de dívida própria, a criminalização da conduta esbarra na vedação convencional da prisão por dívida;

4) ausência de similitude entre o tipo penal em questão e a conduta de apropriação indébita prevista no art. 168 do Código Penal;

5) o consumidor não é contribuinte do imposto, logo não pode ser cobrado pelo tributo devido na operação;

6) o destaque do imposto constitui mera operação para fim de controle, conforme art. 13, §1º, I, da Lei Complementar n. 87/1996, não se referindo, portanto, a tributo cobrado de terceiro.

7) o contribuinte de fato não é parte legítima para a restituição do imposto, e não há imunidade tributária no caso da aquisição de produtos por entidades imunes (STF, RE n. 608.872) justamente por se tratar de operação própria do vendedor, o que estaria em conflito com a interpretação adotada pela 3ª Seção do STJ.

Tais argumentos, relevantes, exigem maior reflexão e análise, de forma a demonstrar, para cada ponto, o porquê de seu afastamento quando de uma leitura correta do tipo penal previsto no artigo 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, bem delineada no corpo do HC n. 399.109-SC.

Sobre o autor
Giovanni Andrei Franzoni Gil

Advogado entre 2001 e 2003, Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado de Santa Catarina desde 2003, Coordenador do Centro de Apoio Operacional da Ordem Tributária desde abril de 2015

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIL, Giovanni Andrei Franzoni. Apropriação indébita do ICMS. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5645, 15 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70822. Acesso em: 22 dez. 2024.

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