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O estado de coisas inconstitucional na segurança pública brasileira

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4. O Caso Brasileiro – ADPF 347[8]

Nas palavras do Ministro Celso de Melo[9], a petição inicial da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, subscrita pelo constitucionalista Daniel Sarmento, assemelha-se a um verdadeiro libelo contra o Sistema Penitenciário Brasileiro, tamanha a quantidade de profundas violações aos direitos fundamentais da população carcerária narradas na peça.

Dentre tais violações, foram citadas a superlotação carcerária; acomodações insalubres; proliferação de doenças; alimentação inadequada; falta de assistência judiciária; violência e tortura etc. Foi relatado que em presídios femininos, não há disponibilização de itens básicos de higiene, sendo que algumas detentas tinham que usar miolo de pão para conter o fluxo menstrual. Destarte, o quadro delineado é a patente violação massiva de direitos fundamentais.

Ao analisar os pedidos cautelares da inicial, o plenário do Supremo Tribunal Federal concedeu a tutela provisória pretendida. Na oportunidade, o Tribunal determinou a regulamentação das audiências de custódia em todos os Estados, bem como proibiu o contingenciamento dos valores contidos no Fundo Penitenciário Nacional.

Apesar de ainda faltar o julgamento de mérito da ação, a ADPF 347 é um importante precedente acerca do controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário. Em tal julgamento, a Corte definiu os requisitos para o reconhecimento do ECI. Ficou, portanto, assentado que, em caso de violação generalizada de direitos fundamentais, fruto de uma omissão reiterada dos Poderes, cabe ao Judiciário interferir para modificar o quadro fático apresentado.

Em casos tais, o Poder Judiciário define uma ação orquestrada. Conforme pontuou o Ministro Marco Aurélio[10], relator da ADPF 347, para superar o quadro fático é preciso um concerto  com “c” para, então, ocorrer um conserto com “s”. É dizer: para modificar o Estado de Coisas Inconstitucional é necessária uma atuação conjunta e coordenada dos três Poderes. O reconhecimento do quadro fático – como ocorreu na ADPF 347 – é apenas o início. É a partir de então que medidas devem ser tomadas, com supervisão, monitoramento e prestação de contas até que haja a modificação do estado de coisas e os direitos fundamentais voltem a ser respeitados, protegidos e promovidos.


5. A Violência e a Violação Massiva de Direitos Fundamentais

De início, é preciso registrar que a própria segurança pública é um direito fundamental de 2ª dimensão, assim como é a educação, a saúde, a alimentação etc. Mais do que isso, a segurança pública é um direito que, devidamente assegurado, resguarda os demais direitos fundamentais, principalmente aqueles de 1ª dimensão, como a liberdade, a vida e a propriedade.

O colapso da segurança pública no Brasil repercute na relativização do direito à vida. Apenas no ano de 2017 foram mais de 63.880 (sessenta e três mil seiscentos e oitenta) mortes violentas, resultando no inacreditável número de 175 (cento e setenta e cinco) mortes violentas por dia, números que superam países que estão em guerra.

Os dados também apontam um grande número de crimes contra o patrimônio, como o roubo de cargas, explosão de caixas eletrônicos, roubo e furto de veículos etc., vulnerando, assim, o direito fundamental à propriedade, também assegurado expressamente na Constituição Federal.

Conforme os dados do anuário, no ano de 2017 foram registrados mais de 60 mil casos de estupro. Além disso, foram mais de 220 mil casos de violência doméstica, mostrando a ineficiência do Brasil em garantir os direitos das mulheres, conforme compromisso internacional assumido pelo Estado (Convenção de Belém do Pará)[11].

É preciso ainda citar o completo domínio de regiões por organizações criminosas, que, aproveitando-se a omissão do Estado, instalam-se em comunidades e passam a ditar as regras locais, impondo o medo por meio do porte ostensivo de armas de fogo de grosso calibre, impedindo a livre circulação das pessoas.

 De dentro dos presídios, traficantes planejam ações criminosas e dão ordens para invasão em comunidades, roubos a banco, execução de rivais etc.

Até mesmo o direito à educação é vilipendiado em razão da insegurança. No Rio de Janeiro, por exemplo, é comum a interrupção de aulas em comunidades carentes em razão de tiroteios. Recentemente, durante uma troca de tiros entre a polícia e traficantes, uma aluna morreu após ser alvejada no interior de uma escola.

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Está-se longe, portanto, de garantir o direito à paz, axioma da humanidade segundo o constitucionalista Paulo Bonavides, o qual classifica o direito à paz como direito fundamental de 5ª dimensão[12].

Os dados, no entanto, apontam que no Brasil vive-se em outra realidade: a guerra; longe, portanto, do direito à paz.


6. A Segurança Pública e a Omissão Estrutural

A partir dos precedentes colombianos, bem como analisando-se o caso brasileiro da ADPF 347, pode-se dizer que o Sistema de Segurança Pública Brasileiro enfrenta um caso clássico de Estado de Coisas Inconstitucional.

Há uma falha estrutural do sistema, proveniente de uma reiterada omissão dos Poderes, o que resulta em violação massiva de direitos fundamentais, sendo necessária – e urgente – uma intervenção planejada e orquestrada para reverter o quadro fático responsável pela ineficiência do Estado em garantir o direito fundamental à segurança do cidadão.

A dita omissão inicia-se por uma completa falta de regulamentação sobre o tema. E agrava-se em razão da falta de investimentos públicos, bem como pela falta de definição de uma política pública sólida e clara.

A Constituição Federal de 1988 – a Constituição Cidadã – dedicou boa parte de seus dispositivos à implementação dos direitos sociais. A seguridade social está bem disciplinada num capítulo específico. Há regras específicas também sobre a educação, sobre a saúde e sobre a assistência social. Os direitos fundamentais de 3ª dimensão, como o direito ao meio ambiente equilibrado e o direito à cultura, também estão bem representados na Carta Magna.

No campo infraconstitucional, pode-se citar também a presença de leis que organizam políticas públicas e estruturam sistemas unificados para promover direitos fundamentais. A Lei Federal 8.080/90, por exemplo, organiza e estrutura o Sistema Único de Saúde (SUS). Cite-se, ainda, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) etc.

Por outro lado, em relação à Segurança Pública há uma escassez de regulamentação. O tema ficou esquecido tanto pelo legislador constituinte como pelo legislador ordinário.

A Constituição pouco se dedica ao tema. O capítulo nominado “Da Segurança Pública” possui apenas um artigo, que sofreu alterações pontuais desde 1988, mantém, portanto, boa parte de sua redação originária, inclusive com a previsão da Polícia Ferroviária Federal, totalmente desnecessária atualmente.

Convém ainda destacar que a Segurança Pública também não está listada dentre os dispositivos que definem as competências administrativas e legislativas dos entes federativos. E pode-se apontar dita omissão como responsável por grande parte dos problemas enfrentados atualmente.

Isso porque, como a Lei Maior não lhe atribuiu qualquer missão específica, a União sempre manteve-se omissa em relação à Segurança Pública. Os Municípios pouco fazem, limitando-se à criação de organismos próprios de segurança (as Guardas Municipais), que atuam, na maioria das vezes, de forma desarticulada com as outras forças policiais. Os Estados, em razão da competência residual (artigo 25, § 1º da Constituição Federal de 1988) assumiram sozinhos - é importante frisar – o ônus de promover a Segurança Pública no país.

Parece-me evidente, no entanto, que o tema deveria ser tratado de forma uniforme e mediante um esforço conjunto e intermitente de todos os entes federativos. No entanto, a falta dessa articulação, em última análise, é fruto – repita-se – da falta de previsão constitucional.

A solução para tal omissão está consubstanciada na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 33/2014, que pretende alterar os artigos 23 e 24 da Constituição Federal, inserindo a Segurança Pública como matéria de competência administrativa comum entre a União, Estados e Municípios e, ainda, como competência legislativa concorrente entre a União e os Estados.

Embora pareça uma mudança singela, não o é. Este é o impulso inicial para a regulamentação do tema, uma vez que a lei - sobretudo a Constituição – é o móvel da Administração Pública. Inclusive, a partir de tal previsão constitucional, será possível   editar uma lei complementar para especificar a competência administrativa de cada ente[13], bem editar uma política nacional de segurança pública, sólida, sóbria e eficiente, como requer o tema.

Não obstante a importância da PEC 33/2014, a proposta tramita no Congresso Nacional há quase 04 (quatro) anos. Já foi aprovada em 02 (dois) turnos no Senado Federal e desde 17/09/2015 aguarda votação na Câmara dos Deputados.

Ainda em termos constitucionais, há a PEC 51/2013, uma proposta mais complexa, que modifica a estrutura e concepção das polícias, criando dispositivos no capítulo afeto à Segurança Pública. Dentre as mudanças propostas está a desmilitarização das polícias, bem como implementação do  “ciclo completo de polícia”, permitindo ao organismo policial reunir as funções de polícia ostensiva e polícia judiciária, em abandono do modelo binário brasileiro de polícia (Polícia Militar e Polícia Civil) .

Não obstante a polêmica da proposta, o que evidencia a necessidade de um amplo debate e discussão, a matéria tramita no Congresso Nacional desde 2013. Ficou paralisada nos serviços de apoio ao Senado Federal por vários anos e aguarda votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) desde 20/10/2015[14].

Percebe-se, pois, que embora o texto original da Constituição de 1988 seja muito raso em relação ao tema, as propostas legislativas encontram-se em tramitação há vários anos, configurando, assim, a mora e a omissão do Poder Legislativo no trato com a Segurança Pública.

A omissão legislativa se estende também para o campo infraconstitucional. A lei que criou o Sistema Único de Segurança Pública (Lei 13.675/2018) tramitou no Congresso Nacional por mais de 10 (dez) anos (PL 3734/2012)[15]. Apesar de dar diretrizes para uma Política Nacional de Segurança Pública, a nova lei deixou de definir as responsabilidades de cada ente federativo, o que seria essencial para evitar omissões e impedir sobreposição de esforços.

Em relação ao Poder Excetivo, inicialmente deve-se frisar que a criação tardia de um Ministério de Segurança Pública não permitiu a implementação de uma política pública nacional sobre o tema, o que reflete na falta de uniformidade com que o tema é tratado pelos Estados, bem como na falta de articulação entre os entes da Federação.

A simples obtenção de dados e estatísticas já é uma grande dificuldade. A título de exemplo, o anuário brasileiro de segurança pública é produzido por uma organização privada, uma vez que não há um órgão público incumbido da tarefa de centralizar e compilar os dados dos 26 Estados e do Distrito Federal. Pior do que isso, não há uma doutrina nacional na compilação dos dados. Cada Estado adota uma forma de catalogar as ocorrências, o que, obviamente, dificulta a obtenção de uma estatística segura sobre Segurança Pública.

Atribui-se também ao Poder Executivo a falha na reposição de efetivo policial e a falta de investimentos em logística para as polícias. Um levantamento realizado no ano de 2017 pelo Jornal O GLOBO[16] identificou uma redução do número de policiais militares em 05 (cinco) Estados brasileiros (São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Rio de Janeiro e Pará). No período de dezembro de 2013 a fevereiro de 2017, somados os 05 (cinco) Estados, o deficit chegou a 17 mil policiais militares. Considerando que nos mesmos Estados houve um aumento da população, o prejuízo na diminuição do efetivo gera uma deficiência do policiamento ostensivo/preventivo, tarefa primordial da Polícia Militar.

A pesquisa também identificou uma total falta de uniformidade na relação policiais/habitantes, quando comparados os 10 (dez) Estados mais populosos do país. No Rio de Janeiro, por exemplo, esse número foi de 363 (trezentos e sessenta e três), enquanto que no Maranhão havia um policial para cada 763 habitantes.

À guisa de exemplo, cite-se o Estado do Espírito Santo, que vivenciou uma aguda crise na segurança pública no ano de 2017. Em rápida pesquisa[17], verifica-se que os últimos concursos finalizados para ingresso na Polícia Militar e da Polícia Civil do Estado foram realizados no ano de 2014. São, portanto, 04 (quatro) anos sem reposição do efetivo.

Conforme o Relatório do Controle da Atividade Policial, publicado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[18] no ano de 2016, de todas as delegacias de polícia civil visitadas, apenas 12,89% possuíam quantidade de servidores suficientes para o desempenho da atividade-fim. Além disso, 42,86% ainda possuíam cela de custódia/carceragem, misturando a atividade de polícia judiciária e investigativa com a custódia de presos. Daquelas que possuíam carceragem, cerca de 70% estavam em condições péssimas ou regulares.

Ressalte-se que a falta de investimentos na Polícia Civil reflete diretamente na precariedade da investigação dos delitos. Os dados acima referidos apontam que mais de 70% das delegacias visitadas possuem inquéritos policiais em trâmite há mais de 02 (dois) anos.

Dados extraídos do Monitor da Violência do Portal G1[19] revelam que das 1.195 (mil cento e noventa e cinco) mortes violentas acompanhadas pelo portal, em 57% dos casos não se chegou a autoria definida. 

Insta mencionar que a falta de investimento no Sistema Penitenciário também reflete na Segurança Pública. Em vários Estados brasileiros não há vagas nos estabelecimentos prisionais destinados ao cumprimento das penas no regime semiaberto. Com efeito, os condenados são beneficiados com regimes prisionais mais brandos, transmitindo a sensação de impunidade, o que, certamente, contribui para a reiteração criminosa. Além disso, há um deficit de vagas. De acordo com o anuário brasileiro de segurança, há 367.217 vagas no sistema penitenciário brasileiro para uma população carcerária de 729.463 detentos.

Destarte, verifica-se que há uma falha estrutural no Sistema de Segurança Pública no Brasil, provocada pela leniência dos Poderes. A omissão estrutural inicia-se – como visto -  com o Poder Legislativo, que ignora a importância do tema e não discute as propostas de mudança na Constituição e os projetos de lei relacionados à Segurança Pública. Além disso, o Poder Executivo não investe o necessário na área, deixando de repor o efetivo policial, o que reflete na falta de policiamento ostensivo e na deficiência das investigações.

Como visto, o quadro fático revela verdadeiro Estado de Coisas Inconstitucional, sendo necessária uma ação estrutural, harmoniosa e coordenada para superá-lo.

Sobre os autores
Robledo Moraes Peres de Almeida

Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Piauí. Foi Oficial da Polícia Militar do Espírito Santo (PMES) por 15 anos, ocupando atualmente o Posto de Capitão PM da Reserva Não Remunerada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Graduado pela Escola de Formação de Oficiais da PMES. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera Uniderp/Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (LFG). Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Anhanguera Uniderp/Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (LFG). Pós-graduado em Gestão, Educação e Segurança de Trânsito pela Faculdade Cândido Mendes. Membro Titular da Associação Colombiana de Direito Processual Constitucional. Finalista da categoria Obra Técnica do X Prêmio Denatran de Educação no Trânsito, promovido pelo Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN) no ano 2010. Aprovado no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Aprovado nos concursos públicos para os cargos de: a) Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Piauí; b) Promotor de Justiça do Ministério Público do Tocantins; c) Defensor Público da Defensoria Pública do Espírito Santo; d) Oficial de Justiça Avaliador Federal do Tribunal Regional Federal da Segunda Região (TRF-2)

Felipe Lyra da Cunha

Capitão da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo (PMES). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Espírito Santo. Graduado em Segurança Pública pela Escola de Formação Oficiais da PMES. Já atuou em diversas áreas da segurança pública, como a área de inteligência e na área operacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Robledo Moraes Peres; CUNHA, Felipe Lyra. O estado de coisas inconstitucional na segurança pública brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5719, 27 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71184. Acesso em: 22 nov. 2024.

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