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Novas regras para progressão de regime nos crimes hediondos de acordo com a Lei 13.769/18

Agenda 09/02/2019 às 10:15

O maior vício ocasionado pela Lei 13.769/18 é a parcela ínfima de pena a ser cumprida para obter progressão de regime em crimes gravíssimos, considerados hediondos ou equiparados.

A Lei 13.769/18 deu nova redação ao artigo 2º, § 2º da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), nos seguintes termos:

Art. 2º, § 2o  A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, observado o disposto nos §§ 3º. e 4º. do art. 112 da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal (grifo nosso).

Como se vê, a sobredita legislação altera a redação do artigo 2º, § 2º da Lei 8.072/90. Embora mantendo os requisitos temporais de progressão em 2/5 para primários e 3/5 para reincidentes em geral, passa-se a excepcionar certos casos em que a exigência temporal se abranda sobremaneira, passando a ser de apenas 1/8 (um oitavo) da pena. As regras mais duras da Lei 8.072/90 passam, com a nova redação, a submeter-se ao disposto no artigo 112, §§ 3º  e 4º da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal).

Para fazer jus a essa regra abrandada de progressão mesmo em crimes hediondos ou equiparados, alguns requisitos cumulativos são exigidos, quais sejam:

a) A autora do crime terá de ser “mulher gestante” ou “mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência”. Percebe-se, desde logo que os homens estão alijados da possibilidade desse tratamento mais benéfico. Certamente surgirá a discussão em torno de transexuais, obviamente não gestantes, mas que sejam “mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência” (sic). Embora se discorde veementemente, entendendo-se que o critério deve ser o biológico – sexual e não aquele informado pela chamada “Ideologia de Gênero”, é fato que o STF em algumas decisões tem equiparado os transexuais masculinos para fins de aplicação, por exemplo, de dispositivos da Lei Maria da Penha e vem inexigindo operação de mudança de sexo para alterar o registro civil (na mesma toada o STJ), sendo a tendência pelo reconhecimento dessa benesse. [1] O conceito de “criança” é dado pelo ECA ( artigo 2º. da Lei 8.069/90), abrangendo pessoas menores de 12 anos. Já o conceito de pessoa com deficiência deve ser buscado no Estatuto da Pessoa com Deficiência (artigo 2º., da Lei 13.146/15). 

b) Não se tratar de crime cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, ou seja, crimes como, por exemplo, o homicídio qualificado, o latrocínio, a tortura, a extorsão com morte, entre outros, não admitirão o abrandamento das regras e seguirão os critérios normais.

c) Não ter cometido o crime contra seu filho ou dependente. Esse requisito nada mais é do que dizer o óbvio, que decorre da regra geral do direito que diz que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza (“turpitudinem suam allegans non auditur”). Pode surgir a dúvida no caso em que, por exemplo, a mãe tenha já cometido crimes contra o próprio filho, mas esteja em execução um crime hediondo ou equiparado que não foi, este, especificamente, cometido contra o filho. Pela leitura do dispositivo, não haveria impedimento para a progressão mais benéfica, já que exige a lei que “o crime”, ou seja, aquele em execução, não tenha sido cometido contra seu filho ou dependente. Exemplo: uma mulher cumpre pena por tráfico de drogas, crime vago, não sendo, portanto, a vítima seu filho. Entretanto, já cumpriu pena antes por crime de estupro praticado contra o próprio filho. Pela letra da lei, seria possível o benefício, mas nos parece algo inaceitável, porque não acompanha o espírito da norma. Nesse caso, a interpretação meramente gramatical deve ceder espaço para a lógica e para a justiça. Outro exemplo controverso seria também quando a mãe estivesse cumprindo pena por tráfico de drogas e tivesse envolvido os próprios filhos no tráfico e consumo. Eles não seriam propriamente vítimas do crime equiparado a hediondo, que é vago, mas ensejando tal circunstância inclusive aumento de pena para o tráfico no caso de menores, não parece lógico ou justo que a genitora seja beneficiada por uma progressão de regime mais branda.

d) Ter cumprido ao menos 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior. Esse é o novo marco temporal benéfico. Esse novo marco de exigência deve retroagir para casos ocorridos antes da vigência da Lei 13.769/18, eis que se trata claramente de “novatio legis in mellius”. A iniciativa do legislador parece viciada em dois aspectos principais. Primeiro, há uma violação do Princípio da Proporcionalidade, [2] porque o homem que, obviamente não estará grávido, mas poderá ser pai ou responsável por criança ou pessoa com deficiência, não é beneficiado sem que haja para tal diferenciação de tratamento qualquer fundamentação justa. Aliás, no Código de Processo Penal, ao tratar da Prisão Preventiva substituída pela Prisão Domiciliar, o homem nas mesmas condições da mulher, “mutatis mutandis”, recebe o mesmo tratamento, nos termos exatos do artigo 318, III e VI, CPP em cotejo com o mesmo artigo incisos III, IV e V. 

Entretanto, o que nos parece mais grave não é o tratamento desigual sem justificativa concreta para homens e mulheres. O maior vício ocasionado pela Lei 13.769/18, que aponta para sua absoluta inconstitucionalidade, seja ela aplicada a homens, mulheres, transexuais ou seja lá a quem for, é a parcela ínfima de pena a ser cumprida para obter progressão de regime em crimes gravíssimos, considerados hediondos ou equiparados. A verdade é que a Lei 8.072/90, que já foi taxada como portadora de diversas inconstitucionalidades por excesso, vai se esvanecendo, seja pelas alterações legais, seja pelos entendimentos jurisprudenciais, que migram para uma “inconstitucionalidade por insuficiência protetiva”.

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Torna-se cada dia mais difícil compreender por que um crime deva ser classificado como hediondo se a ele são conferidos, dia a dia, tratamentos tão brandos como ou mesmo mais brandos do que aqueles aplicados a crimes comuns! Nesse caso, por exemplo, uma pessoa que cometa um crime não hediondo ou equiparado terá de cumprir ao menos 1/6 da pena para fazer jus à progressão de regime, enquanto, em certas condições, uma mulher, um transexual masculino ou mesmo um homem (se for aplicada a regra por proporcionalidade), poderá obter a progressão com apenas 1/8 da pena cumprida. A Lei dos Crimes Hediondos parece que está se desnaturando ou se esvaindo diante dos nossos olhos, perdendo mesmo seu significado de existência por um excessivo laxismo legislativo e jurisprudencial, bem como pelo acatamento acrítico de pleitos de grupos que defendem bandeiras, muitas vezes injustificáveis e até absurdas de “ações afirmativas”, que acabam criando divisões artificiais entre seres humanos e até mesmo afetando a característica de toda lei que é a de ser “geral” e não particularizada milimetricamente.

Vale aqui uma lição antiga de Pimenta Bueno, mas que se faz sempre atual, quando trata o autor da “Restrição Legítima da Liberdade”:

"Nenhuma lei deve ser concebida, dizia, senão porque a utilidade pública a reclame. A lei , ainda mesmo quando vem garantir alguma das relações da liberdade, afeta outras , cria sempre obrigações e penalidades que lhe servem de sanção; consequentemente, sempre que não for ditada por verdadeira utilidade pública, estabelecerá um sacrifício injusto e porventura tirania.

Nenhuma lei deve pois ser concedida senão depois de bem reconhecido que é de verdadeira utilidade social, e esta jamais pode estar em oposição com as condições morais do homem e da sociedade.

Toda lei, toda restrição da liberdade, que não for ditada pelos princípios da moral, pelo respeito recíproco dos direitos individuais, ou por claro e lícito interesse da comunidade social, será uma injustiça ou um erro lamentável, que a civilização, que a ilustração pública deve desde logo procurar corrigir pelos meios legais que o sistema constitucional facilita”. [3]

e) Ser primária e ter bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento. A primariedade exigida é, obviamente, a técnica. Além disso, a única exigência é o atestado de bom comportamento carcerário do Diretor do Estabelecimento Prisional, não restando muito campo para a argumentação de exigência de exame criminológico.

f) Não ter integrado organização criminosa. A pessoa condenada e cumprindo pena em cujo processo conste ser integrante de organização criminosa não fará jus ao tratamento mais brando trazido pela Lei 13.769/18.

Em suma, atualmente a progressão de regime na Lei dos Crimes Hediondos se dá da seguinte maneira:

- Regra geral – cumprimento de 2/5 da pena para primários e 3/5 para reincidentes;

- Mulheres, desde que primárias, nas condições e cumprindo os requisitos do artigo 112, § 3º., da Lei de Execução Penal, terão direito à progressão, mediante o cumprimento de ao menos 1/8 da pena estipulada. Ficam em abertas as situações dos transexuais e de homens que cumpram os mesmos requisitos, os primeiros em razão do acatamento acrítico da chamada “Ideologia de Gênero” por nossos Tribunais Superiores e os segundos por aplicação do Princípio da Proporcionalidade.

Finalmente, cabe salientar que o artigo 112, § 4º da Lei 7.210/84 prevê que o cometimento de novo crime doloso ou falta grave gerará a revogação do benefício, ou seja, a princípio, a regressão de regime. Quanto ao cometimento de crime doloso, há discussão sobre a necessidade ou não do trânsito em julgado, o que nos parece inviável. Já quanto à falta grave, a detenta deverá ser submetida a procedimento com ampla defesa e contraditório no âmbito do Juízo da Execução Penal para que a regressão seja válida.

Pode surgir na doutrina o seguinte questionamento: quando a lei menciona a “revogação do benefício” estaria se referindo tão somente à regressão de regime, mas continuando a beneficiária com direito a nova progressão com o cumprimento de apenas 1/8 da pena? Ou, além da regressão, seria revogado o benefício concedido pelo artigo 112, § 3º., LEP, criado pela Lei 13.769/18, de modo que novas progressões seguiriam a regra geral do artigo 112, LEP (1/6 da pena) ou então as regras mais rigorosas da Lei dos Crimes Hediondos (2/5 e 3/5), conforme o caso?

Rogério Sanches Cunha, com quem se concorda, já se manifestou pela perda total dos benefícios e regressão de regime, passando em novas progressões a serem aplicadas as regras gerais e não mais o tratamento mais benéfico. [4]


REFERÊNCIAS

BUENO, José Antonio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Typographia Villeneuve, 1857.

CUNHA, Rogério Sanches. Breves comentários às Leis 13.769/18 (prisão domiciliar), 13.771/18 (Feminicídio) e 13.772/18 (registro não autorizado de nudez ou ato sexual). Disponível em www.meusitejuridico.com.br , acesso em 05.02.2019.


[1] Neste sentido decisão paradigmática do TJDF, mencionando os precedentes do STJ e do STF: Transexual feminina, por se autoidentificar como mulher, goza da proteção conferida pela Lei Maria da Penha, mesmo que não tenha realizado a cirurgia de transgenitalização ou alterado o nome civil. A Turma reformou decisão do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que, em inquérito que apura a prática de lesões corporais e ameaças contra transexual feminina, declinou da competência para uma das varas criminais. O Relator consignou que a ofendida havia declarado sentir-se como mulher, ser socialmente conhecida por nome feminino, ter marcado data para a cirurgia de redesignação sexual e ingressado com ação para alterar o registro civil. Apontou a decisão do STJ que permitiu a modificação do registro de transexual, sem a realização de cirurgia de transgenitalização. Afirmou que, recentemente, o STF e o TSE manifestaram-se no mesmo sentido e decidiram, também, pela dispensa de autorização judicial para a mudança de sexo. O Desembargador salientou, ainda, que a “autodefinição de gênero realizada por cada indivíduo deve ser acompanhada e não tolhida pelos institutos jurídicos”. Basta a transgênero feminina se autoidentificar como mulher, para se tornar titular de direitos da Lei Maria da Penha. Acrescentou que a Lei 11.340/06 utiliza o termo “gênero” no sentido construído socialmente, e não naquele pautado pela identificação do sexo ao nascer. Assim, a Turma reconheceu a vulnerabilidade da vítima e, ante a incidência da Lei Maria da Penha ao caso, fixou a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para julgamento do feito. (Acórdão n. 1089057, 20171610076127RSE, Relator Des. GEORGE LOPES LEITE,  1ª Turma Criminal, data de julgamento: 5/4/2018, publicado no DJe: 20/4/2018).

[2] A referência é feita ao “Princípio da Proporcionalidade” e não ao da “Igualdade ou Isonomia” porque obviamente há diferenças entre as condições de homem e de mulher.

[3] BUENO, José Antonio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Typographia Villeneuve, 1857, p. 393.

[4] CUNHA, Rogério Sanches. Breves comentários às Leis 13.769/18 (prisão domiciliar), 13.771/18 (Feminicídio) e 13.772/18 (registro não autorizado de nudez ou ato sexual). Disponível em www.meusitejuridico.com.br , acesso em 05.02.2019.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Novas regras para progressão de regime nos crimes hediondos de acordo com a Lei 13.769/18. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5701, 9 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71998. Acesso em: 23 dez. 2024.

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