A Lei 13.769/18 deu nova redação ao artigo 2º, § 2º da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), nos seguintes termos:
Art. 2º, § 2o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, observado o disposto nos §§ 3º. e 4º. do art. 112 da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal (grifo nosso).
Como se vê, a sobredita legislação altera a redação do artigo 2º, § 2º da Lei 8.072/90. Embora mantendo os requisitos temporais de progressão em 2/5 para primários e 3/5 para reincidentes em geral, passa-se a excepcionar certos casos em que a exigência temporal se abranda sobremaneira, passando a ser de apenas 1/8 (um oitavo) da pena. As regras mais duras da Lei 8.072/90 passam, com a nova redação, a submeter-se ao disposto no artigo 112, §§ 3º e 4º da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal).
Para fazer jus a essa regra abrandada de progressão mesmo em crimes hediondos ou equiparados, alguns requisitos cumulativos são exigidos, quais sejam:
a) A autora do crime terá de ser “mulher gestante” ou “mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência”. Percebe-se, desde logo que os homens estão alijados da possibilidade desse tratamento mais benéfico. Certamente surgirá a discussão em torno de transexuais, obviamente não gestantes, mas que sejam “mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência” (sic). Embora se discorde veementemente, entendendo-se que o critério deve ser o biológico – sexual e não aquele informado pela chamada “Ideologia de Gênero”, é fato que o STF em algumas decisões tem equiparado os transexuais masculinos para fins de aplicação, por exemplo, de dispositivos da Lei Maria da Penha e vem inexigindo operação de mudança de sexo para alterar o registro civil (na mesma toada o STJ), sendo a tendência pelo reconhecimento dessa benesse. [1] O conceito de “criança” é dado pelo ECA ( artigo 2º. da Lei 8.069/90), abrangendo pessoas menores de 12 anos. Já o conceito de pessoa com deficiência deve ser buscado no Estatuto da Pessoa com Deficiência (artigo 2º., da Lei 13.146/15).
b) Não se tratar de crime cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, ou seja, crimes como, por exemplo, o homicídio qualificado, o latrocínio, a tortura, a extorsão com morte, entre outros, não admitirão o abrandamento das regras e seguirão os critérios normais.
c) Não ter cometido o crime contra seu filho ou dependente. Esse requisito nada mais é do que dizer o óbvio, que decorre da regra geral do direito que diz que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza (“turpitudinem suam allegans non auditur”). Pode surgir a dúvida no caso em que, por exemplo, a mãe tenha já cometido crimes contra o próprio filho, mas esteja em execução um crime hediondo ou equiparado que não foi, este, especificamente, cometido contra o filho. Pela leitura do dispositivo, não haveria impedimento para a progressão mais benéfica, já que exige a lei que “o crime”, ou seja, aquele em execução, não tenha sido cometido contra seu filho ou dependente. Exemplo: uma mulher cumpre pena por tráfico de drogas, crime vago, não sendo, portanto, a vítima seu filho. Entretanto, já cumpriu pena antes por crime de estupro praticado contra o próprio filho. Pela letra da lei, seria possível o benefício, mas nos parece algo inaceitável, porque não acompanha o espírito da norma. Nesse caso, a interpretação meramente gramatical deve ceder espaço para a lógica e para a justiça. Outro exemplo controverso seria também quando a mãe estivesse cumprindo pena por tráfico de drogas e tivesse envolvido os próprios filhos no tráfico e consumo. Eles não seriam propriamente vítimas do crime equiparado a hediondo, que é vago, mas ensejando tal circunstância inclusive aumento de pena para o tráfico no caso de menores, não parece lógico ou justo que a genitora seja beneficiada por uma progressão de regime mais branda.
d) Ter cumprido ao menos 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior. Esse é o novo marco temporal benéfico. Esse novo marco de exigência deve retroagir para casos ocorridos antes da vigência da Lei 13.769/18, eis que se trata claramente de “novatio legis in mellius”. A iniciativa do legislador parece viciada em dois aspectos principais. Primeiro, há uma violação do Princípio da Proporcionalidade, [2] porque o homem que, obviamente não estará grávido, mas poderá ser pai ou responsável por criança ou pessoa com deficiência, não é beneficiado sem que haja para tal diferenciação de tratamento qualquer fundamentação justa. Aliás, no Código de Processo Penal, ao tratar da Prisão Preventiva substituída pela Prisão Domiciliar, o homem nas mesmas condições da mulher, “mutatis mutandis”, recebe o mesmo tratamento, nos termos exatos do artigo 318, III e VI, CPP em cotejo com o mesmo artigo incisos III, IV e V.
Entretanto, o que nos parece mais grave não é o tratamento desigual sem justificativa concreta para homens e mulheres. O maior vício ocasionado pela Lei 13.769/18, que aponta para sua absoluta inconstitucionalidade, seja ela aplicada a homens, mulheres, transexuais ou seja lá a quem for, é a parcela ínfima de pena a ser cumprida para obter progressão de regime em crimes gravíssimos, considerados hediondos ou equiparados. A verdade é que a Lei 8.072/90, que já foi taxada como portadora de diversas inconstitucionalidades por excesso, vai se esvanecendo, seja pelas alterações legais, seja pelos entendimentos jurisprudenciais, que migram para uma “inconstitucionalidade por insuficiência protetiva”.
Torna-se cada dia mais difícil compreender por que um crime deva ser classificado como hediondo se a ele são conferidos, dia a dia, tratamentos tão brandos como ou mesmo mais brandos do que aqueles aplicados a crimes comuns! Nesse caso, por exemplo, uma pessoa que cometa um crime não hediondo ou equiparado terá de cumprir ao menos 1/6 da pena para fazer jus à progressão de regime, enquanto, em certas condições, uma mulher, um transexual masculino ou mesmo um homem (se for aplicada a regra por proporcionalidade), poderá obter a progressão com apenas 1/8 da pena cumprida. A Lei dos Crimes Hediondos parece que está se desnaturando ou se esvaindo diante dos nossos olhos, perdendo mesmo seu significado de existência por um excessivo laxismo legislativo e jurisprudencial, bem como pelo acatamento acrítico de pleitos de grupos que defendem bandeiras, muitas vezes injustificáveis e até absurdas de “ações afirmativas”, que acabam criando divisões artificiais entre seres humanos e até mesmo afetando a característica de toda lei que é a de ser “geral” e não particularizada milimetricamente.
Vale aqui uma lição antiga de Pimenta Bueno, mas que se faz sempre atual, quando trata o autor da “Restrição Legítima da Liberdade”:
"Nenhuma lei deve ser concebida, dizia, senão porque a utilidade pública a reclame. A lei , ainda mesmo quando vem garantir alguma das relações da liberdade, afeta outras , cria sempre obrigações e penalidades que lhe servem de sanção; consequentemente, sempre que não for ditada por verdadeira utilidade pública, estabelecerá um sacrifício injusto e porventura tirania.
Nenhuma lei deve pois ser concedida senão depois de bem reconhecido que é de verdadeira utilidade social, e esta jamais pode estar em oposição com as condições morais do homem e da sociedade.
Toda lei, toda restrição da liberdade, que não for ditada pelos princípios da moral, pelo respeito recíproco dos direitos individuais, ou por claro e lícito interesse da comunidade social, será uma injustiça ou um erro lamentável, que a civilização, que a ilustração pública deve desde logo procurar corrigir pelos meios legais que o sistema constitucional facilita”. [3]
e) Ser primária e ter bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento. A primariedade exigida é, obviamente, a técnica. Além disso, a única exigência é o atestado de bom comportamento carcerário do Diretor do Estabelecimento Prisional, não restando muito campo para a argumentação de exigência de exame criminológico.
f) Não ter integrado organização criminosa. A pessoa condenada e cumprindo pena em cujo processo conste ser integrante de organização criminosa não fará jus ao tratamento mais brando trazido pela Lei 13.769/18.
Em suma, atualmente a progressão de regime na Lei dos Crimes Hediondos se dá da seguinte maneira:
- Regra geral – cumprimento de 2/5 da pena para primários e 3/5 para reincidentes;
- Mulheres, desde que primárias, nas condições e cumprindo os requisitos do artigo 112, § 3º., da Lei de Execução Penal, terão direito à progressão, mediante o cumprimento de ao menos 1/8 da pena estipulada. Ficam em abertas as situações dos transexuais e de homens que cumpram os mesmos requisitos, os primeiros em razão do acatamento acrítico da chamada “Ideologia de Gênero” por nossos Tribunais Superiores e os segundos por aplicação do Princípio da Proporcionalidade.
Finalmente, cabe salientar que o artigo 112, § 4º da Lei 7.210/84 prevê que o cometimento de novo crime doloso ou falta grave gerará a revogação do benefício, ou seja, a princípio, a regressão de regime. Quanto ao cometimento de crime doloso, há discussão sobre a necessidade ou não do trânsito em julgado, o que nos parece inviável. Já quanto à falta grave, a detenta deverá ser submetida a procedimento com ampla defesa e contraditório no âmbito do Juízo da Execução Penal para que a regressão seja válida.
Pode surgir na doutrina o seguinte questionamento: quando a lei menciona a “revogação do benefício” estaria se referindo tão somente à regressão de regime, mas continuando a beneficiária com direito a nova progressão com o cumprimento de apenas 1/8 da pena? Ou, além da regressão, seria revogado o benefício concedido pelo artigo 112, § 3º., LEP, criado pela Lei 13.769/18, de modo que novas progressões seguiriam a regra geral do artigo 112, LEP (1/6 da pena) ou então as regras mais rigorosas da Lei dos Crimes Hediondos (2/5 e 3/5), conforme o caso?
Rogério Sanches Cunha, com quem se concorda, já se manifestou pela perda total dos benefícios e regressão de regime, passando em novas progressões a serem aplicadas as regras gerais e não mais o tratamento mais benéfico. [4]
REFERÊNCIAS
BUENO, José Antonio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Typographia Villeneuve, 1857.
CUNHA, Rogério Sanches. Breves comentários às Leis 13.769/18 (prisão domiciliar), 13.771/18 (Feminicídio) e 13.772/18 (registro não autorizado de nudez ou ato sexual). Disponível em www.meusitejuridico.com.br , acesso em 05.02.2019.
[1] Neste sentido decisão paradigmática do TJDF, mencionando os precedentes do STJ e do STF: Transexual feminina, por se autoidentificar como mulher, goza da proteção conferida pela Lei Maria da Penha, mesmo que não tenha realizado a cirurgia de transgenitalização ou alterado o nome civil. A Turma reformou decisão do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que, em inquérito que apura a prática de lesões corporais e ameaças contra transexual feminina, declinou da competência para uma das varas criminais. O Relator consignou que a ofendida havia declarado sentir-se como mulher, ser socialmente conhecida por nome feminino, ter marcado data para a cirurgia de redesignação sexual e ingressado com ação para alterar o registro civil. Apontou a decisão do STJ que permitiu a modificação do registro de transexual, sem a realização de cirurgia de transgenitalização. Afirmou que, recentemente, o STF e o TSE manifestaram-se no mesmo sentido e decidiram, também, pela dispensa de autorização judicial para a mudança de sexo. O Desembargador salientou, ainda, que a “autodefinição de gênero realizada por cada indivíduo deve ser acompanhada e não tolhida pelos institutos jurídicos”. Basta a transgênero feminina se autoidentificar como mulher, para se tornar titular de direitos da Lei Maria da Penha. Acrescentou que a Lei 11.340/06 utiliza o termo “gênero” no sentido construído socialmente, e não naquele pautado pela identificação do sexo ao nascer. Assim, a Turma reconheceu a vulnerabilidade da vítima e, ante a incidência da Lei Maria da Penha ao caso, fixou a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para julgamento do feito. (Acórdão n. 1089057, 20171610076127RSE, Relator Des. GEORGE LOPES LEITE, 1ª Turma Criminal, data de julgamento: 5/4/2018, publicado no DJe: 20/4/2018).
[2] A referência é feita ao “Princípio da Proporcionalidade” e não ao da “Igualdade ou Isonomia” porque obviamente há diferenças entre as condições de homem e de mulher.
[3] BUENO, José Antonio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Typographia Villeneuve, 1857, p. 393.
[4] CUNHA, Rogério Sanches. Breves comentários às Leis 13.769/18 (prisão domiciliar), 13.771/18 (Feminicídio) e 13.772/18 (registro não autorizado de nudez ou ato sexual). Disponível em www.meusitejuridico.com.br , acesso em 05.02.2019.