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O problema da guarda e os benefícios previdenciários

Agenda 12/04/2019 às 13:00

Será ético um casal que não trabalha (e muitas vezes porque não quer) dar a guarda de seu filho aos avós, apenas para conseguir, ao final, uma pensão previdenciária com a morte deles?

Lança-se a seguinte pergunta: A falta de condições econômicas dos pais pode consistir motivo suficiente para se deferir a guarda aos avós e o deferimento de um benefício previdenciário?

A guarda destina-se a regularizar a posse de fato da criança ou de adolescente (ECA, artigo 33, § 1º), mas como simples situação de fato é hábil a gerar vínculo jurídico que somente será destruído por decisão judicial, em benefício do menor – criança ou adolescente. Sendo judicialmente deferida, a guarda será uma forma de colocação em família substituta, como se fosse uma família natural, de maneira duradoura (artigo 33, § 1ª,ECA). Poderá ser, liminarmente, ou incidentalmente, deferida em caso de procedimentos de tutela ou adoção(ECA, artigo 33, § 1ª). A guarda é forma mais simples de colocação em família substituta.

A guarda pode ser permanente (duradoura, definitiva) e, ainda, temporária ou provisória. É permanente a guarda quando o instituto é analisado com um fim em si mesmo, ou seja, o guardião deseja que a criança ou adolescente, como membro de família substituta, e com as obrigações e direitos daí advindos, sem que o menor seja pupilo ou filho (ECA, artigo 33, § 1º, e artigo 34). Há entendimento de que há um estímulo à guarda de órfão e abandonado (CF, artigo 27, § 3º, VI; ECA, artigo 34), não envolvendo situação jurídica maior do que a assistencial, não gerando direito sucessório.

Será a guarda temporária quando visa ao atendimento de sua situação limitada ou por tempo ou por condição, não sendo um fim em si mesmo (ECA, artigo 167). Finda quando se realiza o termo ou condição.

Duas são as formas procedimentais apresentadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente: uma administrativa, sem lide; outra, contraditória, com lide(ECA, artigos 165 a 170). A primeira ocorrerá nas situações em que os pais forem falecidos, já tiverem sido destituídos ou suspensos do poder familiar, ou houverem anuído do pedido de guarda, podendo ser feito o pedido diretamente em Cartório, pelos requerentes, sem a presença de advogado. A segunda surgirá quando houver discordância, quando implicar suspensão ou destituição do poder familiar, situações que são pressupostos lógicos da medida principal de colocação em família substituta, quando, então, haverá o contraditório.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 33, § 2º, prevê a possibilidade de se deferir a guarda de menor fora dos casos de adoção ou tutela, desde que seja para atender a situações que sejam peculiares ou para suprir a  falta eventual dos pais, que têm o dever de assistência econômica incumbindo a responsabilidade imediata para a criação dos filhos.

Ora, o deferimento da guarda implica a transferência de toda a responsabilidade para o novo ¨tutor¨, seja material, moral ou ainda educacional.

 Discute-se tal questão diante da possibilidade de maior oneração do órgão previdenciário diante da morte dos avós, que sejam guardiões.

Antônio Chaves (Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, 1994, n. 53, pág. 150) lecionava que “o que se deve evitar é a constituição de guardas somente com vistas à percepção do benefício previdenciário, pois o encargo é muito mais amplo, conferindo a seu detentor a responsabilidade de prestar assistência moral, material e educacional à criança ou adolescente”.

Prossegue Antônio Chaves aduzindo que “é comum os avós postularem a guarda do neto, quando a mãe(ou o pai) com eles reside, trabalha, mas só tem a assistência médica do INSS e quer beneficiar o seu filho com o IPE ou outro convênio. Entendo, respeitando posições em contrário, que tais pedidos devem ser indeferidos, porque a situação fática, nesses casos, estará em discrepância com a jurídica. Em suma, é uma simulação, com a qual o MP, como custos legis, e o Juiz competente não podem ser coniventes, sob pena de se fomentar o assistencialismo às custas de entidades não destinadas a esse fim”.

No REsp 77.139-RJ (DJ 3.3.97), o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, em voto fundamentado, assim disse: “Aos pais incumbe o dever e sustento, guarda e educação dos filhos menores”, como está expresso no Estatuto da Criança e do Adolescente, repetindo uma regra milenar, desde que a família se tornou a instituição social apta à criação dos filhos”. Prosseguiu o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, dizendo: “Se esse é o dever dos pais, a criança tem o direito de ser criada e educada no seio de sua família e, só excepcionalmente, em família substituta(artigo 19 do ECA)”.

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A responsabilidade primária e imediata da criação dos filhos é dos pais, e não do s avós, porque são aqueles que têm maiores possibilidades e melhores condições biológicas de acompanhar o desenvolvimento da criança até a maioridade. Por certo, com a morte dos avós, vem questão com relação ao pagamento de pensão a esses netos que estejam sob o regime da guarda.

Sobre isso, arrematou o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, naquele julgamento: “O expediente da guarda, em tais circunstâncias e com tal objetivo, passa a ser mero instrumento para garantir uma pensão aos filhos, em caso de falecimento dos avós, quando a pensão dos filhos deveria decorrer de falecimento dos seus pais. Se estes estão vivos, saudáveis e em condições de trabalho, conforme ordinariamente acentuado nos autos, não há razão jurídica para deferimento da guarda. Esta, como diz a lei, serve para regularizar a posse de fato, nos procedimentos de tutela e adoção, ou para ser deferida em casos excepcionais; na espécie, a conveniência de atribuir ao neto uma vantagem previdenciária, que não teria se continuasse na guarda dos pais, não caracteriza aquela excepcionalidade exigida pela lei, antes parecendo ser uma saída cômoda para onerar a previdência social”.

O Superior Tribunal de Justiça, à época, nos julgamentos dos RESps 97.069-MG (DJ 1.9.97), 82.474-RJ(DJ 29.9.97), de Relatoria dos Ministros Waldemar Zveiter e Menezes Direito, deixou claro que “a conveniência de garantir benefício previdenciário ao neto não caracteriza a situação excepcional que justifica, nos termos do ECA(artigo 33, parágrafo segundo), o deferimento de guarda a avó”. Tal posicionamento foi mantido pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, no julgamento do REsp 86.536 – RJ.

A matéria é polêmica.

O artigo 16, IV, na antiga redação dada pela Lei nº 8.213/91, determinava que era beneficiário do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do segurado, a pessoa designada, menor de 21 anos ou maior de sessenta anos ou inválida.

Houve alteração legislativa promovida no artigo 16 da Lei nº 8.213 pela Lei 9.528/97, de sorte que o benefício previdenciário de pensão por morte não é devido ao menor sob guarda.

No julgamento do AgRg no REsp 1.178.495/SP, 5ª Turma, Relator Ministro Jorge Mussi, DJe de 8 de novembro de 2011, decidiu-se  que segundo jurisprudência consolidada, é indevida a concessão de pensão a menor sob guarda, se o óbito do segurado ocorreu após o advento da Medida Provisória nº 1.523, de 11 de outubro de 1996, convertida na Lei 9.528/1997, que excluiu o inciso IV do artigo 16 da Lei nº 8.213/91.

Por sua vez, no julgamento do AgRg no REsp 1.146.918/RS, 6ª Turma, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 28 de novembro de 2011, ficou assentado que em casos de dependência de menor sob guarda, vigora o principio da especialidade, não havendo que se falar em prevalência do artigo 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA).

Ainda no julgamento do AgRg no Recurso Especial nº 1.285.355 – ES, em que foi Relatora a Ministra Marilza Maynard (Desembargadora Convocada do TJ/SE) reiterou-se o posicionamento de que se o óbito do instituidor da pensão por morte ocorreu após aquela alteração legislativa.

Mas vem a discussão de que a Lei 9.528/97 que retira esse direito previdenciário do menor sob guarda não revogou lei especial, o ECA. Assim, as disposições do artigo 33, § 3º, da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), afirmam que o sistema jurídico atual possibilita a concessão de pensão por morte ao menor sob guarda, devendo, por conseguinte, afastar-se a aplicação de norma que com ele contraste, em face de sua patente incompatibilidade com os princípios constitucionais que regem a matéria, principalmente o da proteção integral da criança e do adolescente, cuja responsabilidade é não só da família do menor, mas também da sociedade e do Estado.

Nesse entendimento, embora haja Lei de Benefício, que vede a concessão de benefício ao menor sob guarda, tendo seu âmbito de incidência voltado de forma específica para os benefícios previdenciários, a norma protetiva dos menores também tem caráter específico, constituindo um verdadeiro subsistema normativo, composto pelo complexo de direitos e obrigações conferidos às crianças e adolescentes.

O julgamento no RMS 36.034/MT, Relator Benedito Gonçalves, DJe de 15 de abril de 2014, é um retrato fiel da polêmica na matéria. Para ele, o questionamento a ser dirimido é saber qual a legislação aplicável ao caso concreto, se o Estatuto da Criança e do Adolescente, que garante ao menor sob guarda a condição de dependente, inclusive para fins previdenciários, ou se norma previdenciária, federal ou estadual, que  lhe seja contrária, adequada aos termos da redação hoje existente para a Lei nº 8.213/91, que retirou o menor sob guarda do rol de dependentes. Havia no julgamento o confronto entre Lei Estadual, que determinava que não cabia a concessão de benefício de pensão por morte em caso de guarda e o ECA. 

O Ministro Benedito Gonçalves, naquele julgamento, lembrou que foi decidido pelas Turmas que compõem a Terceira Seção do STJ que o critério da especialidade é o que deve dirimir a questão. Desta forma, o diploma de regência do sistema de benefícios previdenciários, de caráter especial, deve prevalecer sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, de caráter geral, no confronto com aquele sobre o tema controvertido. É o que foi decidido no EREsp 801.214/BA, Relator Ministro Nilson Naves, Terceira Turma, DJe de 28 de agosto de 2008, no EREsp 696.299/PE, Relator Ministro Paulo Gallotti, Terceira Turma, DJe 4 de agosto de 2009, dentre outros julgamentos. 

Lembrou  o Ministro Benedito Gonçalves, diante da mudança de  competência dos órgãos julgadores do STJ (Emenda Regimental nº 14/2011, quando os feitos relativos à questão debatida passaram a ser de competência da Primeira Seção), houve alteração do entendimento no sentido de que a alteração trazida pela Lei nº 9.528/1997, norma previdenciária de natureza específica, deve prevalecer sobre o disposto no art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, como se lê, dentre outros julgamentos, do AgRg no Ag 1.347.407/PI, Relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 16 de março de 2011.

Argumentou o Ministro Benedito Gonçalves:

¨Diversamente ao entendimento que vinha sendo adotado por esta Corte, o critério da especialidade, a meu ver, não se mostra como o mais adequado à solução da controvérsia, mormente considerando que os direitos fundamentais da criança e do adolescente têm seu campo de incidência amparado pelo status de prioridade absoluta, requerendo, assim, uma hermenêutica própria comprometida com as regras protetivas estabelecidas na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

O juiz, como cediço, tem a função social de pacificar os conflitos sociais intersubjetivos que lhe são apresentados, resultantes, quase sempre, da polissemia dos termos que compõem a norma jurídica, passível, portanto, de múltiplas interpretações, cabendo-lhe, por conseguinte, adotar a exegese da norma que melhor atende aos fins sociais a que ela se dirige e ás exigências do bem coletivo, tal como previsto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro-LINDB.

O fim social da lei previdenciária é abarcar as pessoas que forem acometidas por alguma contingência da vida. Nesse aspecto, o Estado deve cumprir seu papel de assegurar a dignidade da pessoa humana a todos, em especial ao menor, cuja proteção, conforme ressaltado, tem absoluta prioridade.

De fato, o princípio da proteção integral da criança ou adolescente, afigura-se como corolário da dignidade da pessoa humana, tido como valor constitucional supremo, o próprio núcleo axiológico da Constituição, em torno do qual gravitam os direitos fundamentais.

O Estatuto da Criança e do Adolescente não é uma simples lei, representa política pública de proteção à criança e ao adolescente, verdadeiro cumprimento da ordem constitucional, haja vista o artigo 227 da Constituição de 1988 dispor que é dever do Estado assegurar com absoluta prioridade à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Tratando-se, portanto, do postulado central do Estado Democrático de Direito, para o qual devem convergir os poderes estatais, as leis devem atentar para a dignidade da pessoa humana e os juízes dela não podem se apartar quando se aplicam no caso concreto.

Em suma, não é dado ao intérprete atribuir à norma jurídica conteúdo que atente contra a dignidade da pessoa humana e, consequentemente, contra o princípio de proteção integral e preferencial a crianças e adolescentes, já que esses postulados são a base do Estado Democrático de Direito e devem orientar a interpretação de todo o ordenamento jurídico.”

 Divergiu desse entendimento, em bem fundamentado voto, a Ministra Assusete Magalhães, ao dizer:

“Estamos a cuidar de um benefício, de uma pretensão de natureza previdenciária, e, assim sendo, em face do art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, há de se observar a lei especial, no  caso, a lei previdenciária. No caso, a lei especial é a Lei Complementar Estadual, que cuida da concessão desse beneficio previdenciário. O Ministro Ari Pargendler lembrou bem. As normas programáticas, os princípios vetores que estão a reger a Seguridade Social, nas três esferas de poder – federal, estadual e municipal -, estão na Constituição. E o principio básico está no art. 195, § 5º, da Constituição Federal. Não se cria, majora, estende ou se implementa qualquer benefício, sem que seja prevista a respectiva fonte de custeio. Como se poderá prever a concessão de uma pensão por morte para o menor sob guarda judicial se a lei não previu a concessão desse beneficio e, muito menos a sua fonte de custeio?Daí a necessidade de observância de critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, na organização da Previdência Social, necessidade imposta pela Constituição, em seu art. 201 A observância de tais princípios e critérios é que permitirá a manutenção de qualquer sistema de Previdência e Seguridade Social. Os sistemas de Previdência e Seguridade Social dos Estados somente poderão se manter a medida que haja a respectiva fonte de custeio, para cada benefício, sob pena de sucumbirem.”

Nessa linha de pensar, naquele julgamento, o voto do Ministro Ari Pargendler ressaltou que todo e qualquer benefício deve ter uma fonte de custeio. É o caso de uma lei estadual que não prevê tal fonte de custeio para a pensão previdenciária que poderia, se outro fosse o caso, resultar da morte de quem tinha em vida um menor sob guarda. Concluiu no sentido de que o Estatuto da Criança e do Adolescente, que é uma lei federal, ainda que seu alcance seja nacional, não pode se sobrepor à legislação de uma unidade federativa para criar gastos que eventualmente venham a romper o equilíbrio do sistema previdenciário de seus servidores públicos.

Penso, a par do conflito intertemporal entre regras, envolvendo o ECA e a lei previdenciária, que a questão deve ser resolvida à luz de princípios. Fica a pergunta: Será ético que um casal que não trabalha e muitas vezes não quer o exercício de uma atividade laborativa, dar a guarda de seu filho aos  avós com o objetivo de obter, ao final, única e exclusivamente, uma pensão previdenciária com a morte deles?

Ronald Dworkin (Levando os direitos à sério, pág. 42), fazendo uma ofensiva com relação ao chamado positivismo de Hart, ensina que os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam(política de proteção a criança e adolescente e política de seguridade social) aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. As regras não têm essa dimensão. Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida.

É justo que alguém se beneficie de sua própria torpeza, transferindo para o Poder Público uma obrigação de pai que é sua, de forma a dar causa a uma situação de guarda para que o menor possa receber um benefício previdenciário em caso de morte do avô da criança? Parece-nos que não. Como disse o Ministro Ruy Rosado de Aguiar: “Se a neta passa a ser dependente da avó, os efeitos previdenciários dessa medida, em caso de seu falecimento, implicarão oneração da previdência social, com o pagamento da pensão devida ao dependente, quando o dever de sustentar o filho era e deveria continuar sendo dos pais.

Assim, o expediente de guarda, em tais circunstâncias e com tal objetivo, passa a ser mero instrumento para garantir uma pensão aos filhos, em caso de falecimento da avó, quando a pensão dos filhos deveria decorrer do falecimento de seus pais. Se estes estão vivos, saudáveis em condições de trabalho, não há porque se deferir a guarda e ainda tal benefício previdenciário. A excepcionalidade que a lei dá à guarda nesse caso não se justificaria.  

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. O problema da guarda e os benefícios previdenciários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5763, 12 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72384. Acesso em: 22 dez. 2024.

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