O RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 922.144 E O REGIME CONSTITUCIONAL DOS PRECATÓRIOS
O Recurso Extraordinário de nº 922.144[26]retrata uma – sempre presente – batalha desproporcional havida entre um indivíduo que viu sua propriedade sumariamente surrupiada por ato de desapropriação estatal e um conglomerado de instituições e autoridades que a todo custo fizeram prolongar indefinidamente, sem clemência ou consideração, o simples fazer cumprir de uma literalidade constitucional que aí está para minimizar os efeitos despóticos que são indissociavelmente ínsitos ao procedimento expropriatório: o pagamento de indenização justa, prévia e em dinheiro.
A bem da verdade, o desenrolar do caso evidencia a sagacidade proporcionada pelo domínio da retórica no âmbito do discurso jurídico, de índole sofística, da qual tem historicamente se valido o Estado para propugnar sua ingerência discricionária em face dos eventos de vida da população, criando roupagens linguísticas que almejam legitimar comportamentos estatais evidentemente transgressores da ética constitucional.
Trata-se de desapropriação proposta pelo Município de Juiz de Fora/ MG objetivando a tomada forçada de bem imóvel pertencente a determinado indivíduo para a construção de um hospital.
Tipicamente, o valor depositado em juízo (R$ 834.306,52), oferecido pela municipalidade para fazer face a sua sanha pervertida de desalojar imediatamente o proprietário, correspondeu a uma quantia menor de que a metade do tanto quanto fixado pelo magistrado no bojo da posterior sentença judicial (R$ 1.717.000,00), após instrução que supostamente viabilizou o aferimento daquilo que satisfaria o justo valor indenizatório.
Essa realidade, todavia, não obstaculizou o desapossamento initio litisdo bem, a se ver que desde a ocasião em que realizado o depósito preliminar, passou o poder público a ocupa-lo em caráter definitivo, nada obstante a denominação dada a esse peculiar acontecimento: gramaticalmente – e apenas gramaticalmente – “imissão provisória na posse”.
Do tanto quanto discutido no tópico inicial, já se constata ter havido malversação da letra constitucional, que diz, sem tergiversar, haver de ser préviae justaa indenização em dinheiro. Não só prévia, não só justa. Prévia ejusta, como um todo unitário. No caso concreto, todavia, até a prolação da sentença definitiva, não teria sido nem uma coisa nem outra.
E a parte expropriada, com acerto incontornável, tão logo reconhecido o valor de sua justa indenização, foi torná-lo “atrasadamente prévio”, requerendo a intimação do município para que providenciasse a complementação da quantia mediante depósito judicial, o que foi sem mais delongas originalmente deferido pelo juiz da causa.
Apesar do achaque constitucional até então vivenciado, pelo todo já explanado no desenvolver desse trabalho, parecia ter ele sido sanado, restando apenas as cicatrizes inapagáveis de um esbulho expropriatório tirano.
Mas onde há Estado não há justiça e nem bom senso.
Por via de embargos de declaração, com dizeres que sempre simulam erudição – próprios do embuste argumentativo praticado pelo poder público para violar as leis que ele mesmo elabora, quando contrárias a seus interesses espoliadores – o município distorceu a lógica literal da Constituição, desconsiderou a expressão indicativa de que a indenização deve ser “prévia” e aduziu ao juiz que a “parcela complementar” (a diferença entre o depósito inicial e o valor justo) haveria de submeter-se à sistemática de pagamentos insculpida no art. 100 da carta constitucional, o regime dos precatórios, dado que fruto de “sentença judiciária”, portanto somente executável por essa via procedimental.
A provocação nos remete imediatamente àquilo que no meio acadêmico do direito tem-se conhecida por anedota da “katchanga”, que merece aqui ser reproduzida na versão narrada por George Marmelstein[27]:
Um rico senhor chega a um cassino e senta-se sozinho em uma mesa no canto do salão principal. O dono do cassino, percebendo que aquela seria uma ótima oportunidade de tirar um pouco do dinheiro do homem rico, perguntou se ele não desejaria jogar.
– Temos roleta, blackjack, texas holden’ e o que mais lhe interessar, disse o dono do Cassino.
– Nada disso me interessa, respondeu o cliente. Só jogo a Katchanga.
O dono do cassino perguntou para todos os crupiês lá presentes se algum deles conhecia a tal da Katchanga. Nada. Ninguém sabia que diabo de jogo era aquele.
Então, o dono do cassino teve uma idéia. Disse para os melhores crupiês jogarem a tal da Katchanga com o cliente mesmo sem conhecer as regras para tentar entender o jogo e assim que eles dominassem as técnicas básicas, tentariam extrair o máximo de dinheiro possível daquele “pote do ouro”.
E assim foi feito.
Na primeira mão, o cliente deu as cartas e, do nada, gritou: “Katchanga!” E levou todo o dinheiro que estava na mesa.
Na segunda mão, a mesma coisa. Katchanga! E novamente o cliente limpou a mesa.
Assim foi durante a noite toda. Sempre o rico senhor dava o seu grito de Katchanga e ficava com o dinheiro dos incrédulos e confusos crupiês.
De repente, um dos crupiês teve uma idéia. Seria mais rápido do que o homem rico. Assim que as cartas foram distribuídas, o crupiê rapidamente gritou com ar de superioridade: “Katchanga!”
Já ia pegar o dinheiro da mesa quando o homem rico, com uma voz mansa mas segura, disse: “Espere aí. Eu tenho uma Katchanga Real!”. E mais uma vez levou todo o dinheiro da mesa...
Segundo Lenio Streck, dizendo-a criada por Luis Alberto Warat, a estória seria uma crítica metafórica à dogmática jurídica. Sendo ela um “jogo de cartas marcadas”, quando alguém efetivamente passa a compreender as regras, ela mesma, a dogmática, arranja um modo de superá-las, suplantando seus paradoxos e decidindo a coisa a seu próprio modo.[28]
É precisamente o que se vê no caso concreto de que se cuida. As regras do jogo estabeleciam que, mesmo a contragosto do proprietário, o Estado teria o poder de desapropriar bens de seu acervo particular, em contrapartida ao pagamento de uma indenização justa, prévia e em dinheiro.
A contrapartida, todavia, foi enxotada pelo Estado, a despeito de ter havido para si a propriedade do expropriado, dizendo que a indenização justa não precisa ser prévia e em dinheiro, mas paga pela via constitucional dos precatórios, que tem principal guarida no art. 100 da CF/88, que diz:
Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.[29]
Ora, é inconcebível que a cronologia de pagamentos prevista no mencionado dispositivo adeque-se à dinâmica desapropriatória acontecida no mundo real – essa mesma registrada no caso concreto – que desde a expedição do denominado decreto expropriatório já implica supressão ao direito de propriedade[30], abolindo-o de forma definitiva e irreversível no momento em que se dá a denominada “imissão provisória na posse”[31], o que nos mostra que ambos os sistemas de pagamento são inconciliáveis entre si.
De modo não tão inacreditável, todavia, a tese levantada pelo município foi engolida pelo magistrado, mantida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG e está agora em pendência de julgamento no Supremo Tribunal Federal – STF, num movimento de corporativismo político evidente, superprotetor das chicanas e malabarismos estatais.
Até porque há doutrinadores renomadíssimos que chancelam essa incompreensível maneira de enxergar. Veja o que diz, por exemplo, José dos Santos Carvalho Filho:
O quantum indenizatório normalmente se compõe de duas parcelas: uma, a que já foi objeto de depósito judicial, quando o expropriante foi imitido provisoriamente na posse do bem; outras, a parcela complementar, que corresponde à diferença entre o valor que a sentença fixou, com os devidos acréscimos, e a parcela depositada. A primeira pode ser paga ao expropriado por alvará judicial, mas a segunda o expropriado só poderá receber depois de proposta a ação de execução, na forma do art. 730 do CPC e observado o sistema de precatórios judiciais previsto no art. 100 da CF.[32]
Como conciliar a expressão “prévia” com algo que é diametralmente oposto a esse conceito? Diga-nos, então, qual diferença teria havido em simplesmente não prescrever o vocábulo “prévia” no texto do art. 5º, inciso XXIV, já que o pagamento do justo deve obedecer a vala comum dos precatórios?
Os defensores dessa teoria fazem uma bipartição conceitual particular, fruto de uma construção que não tem vez constitucional: dizem que há uma “parcela inicial” que é prévia e uma “parcela complementar” que não o é, incorrendo na fila infinita dos precatórios.
Mas se é verdadeiramente isso que entendem da leitura daquele excerto, por qual razão depositar previamente qualquer quantia que seja? Qual o fundamento constitucional do depósito preliminar? A chamada “parcela inicial” não estaria ferindo da mesma forma o ortodoxo regime precatorial?
É lógico que sim. Dizer que o prévio se aplica somente à “parcela inicial” é fazer incidir infalivelmente a citada “teoria da katchanga” por malabarismo de linguagem.
Mas há alguns escritos que suplantam o teorismo e descambam para o campo da impudência despreocupada, como o contido na manifestação da Procuradoria Geral da República[33], lavrada pelo ex-Procurador Geral Rodrigo Janot, favorável à observância do regime de precatórios no que diz respeito à “parcela complementar”.
Inicialmente, além do que já dito, o órgão afirma que permitir o pagamento do valor justo de forma prévia, isto é, sem a observância da sistemática dos precatórios, criaria um cenário caótico nos regramentos financeiros e orçamentários do Estado, o que, por si só, em sua canhestra visão, justificaria a sua submissão ao regime dos precatórios.
A lógica empregada, entretanto, é visivelmente invertida: busca refrear um direito fundamental a partir de uma suposta desordem orçamentária que se originaria do cumprimento da literal disposição constitucional, quando a ilação a se ter deveria ser no sentido de fazer com que a legislação orçamentária e financeira ficasse adaptada ao cumprimento desse preceito fundamental.
Se o poder público descura para o fato de que a indenização deve ser previamente justa, dando causa ao reboliço, não há de transferir ao expropriado, já prejudicado, os ônus de um regramento orçamentário e financeiro que não lhe compete. Afinal, ninguém come lei orçamentária e nem vive debaixo de uma lei de responsabilidade fiscal.
Demais disso, o órgão colaciona voto proferido pelo Ministro Ilmar Galvão em julgamento acontecido no ano de 1997 (ADI 1187) para alegar que a transferência do domínio do imóvel só ocorre mediante registro da carta de sentença, a querer afirmar que o pagamento da indenização pelo sistema de precatórios precederia esse ato formal e, por isso, estaria preservada a regra constitucional que diz ser prévio o pagamento da indenização.
Ao fazê-lo, desconsidera a realidade mesma do procedimento expropriatório, que já trucida a propriedade desde a expedição da declaração de utilidade pública/interesse social, e reduz um direito de essência universal a um desumano formalismo registral, fazendo pouco, sobretudo, para o fato de ser implacável a “imissão de posse provisória”, que do proprietário retira absolutamente todos os elementos constitutivos da propriedade.
Entendendo, portanto, que a expressão “prévia” contida no dizer constitucional que impõe ao Estado o dever de indenizar o expropriado pelo perdimento de bem de sua titularidade corresponde àquilo que é implementado antes do esvaziamento de absolutamente qualquer dos elementos constitutivos do direito de propriedade, compreendemos que há apensas duas alternativas possíveis a serem dadas pelo STF ao julgamento do RE 922.144: 1. A declaração de que a indenização deve ser prévia e em dinheiro, mediante depósito judicial que reflita o valor justo, devidamente mensurado num ambiente procedimental plural que conte com a participação do expropriado; ou 2. A declaração de que o pagamento da indenização deve obedecer o regime constitucional dos precatórios, impedindo-se, todavia, qualquer coação ao direito de propriedade, de que natureza for, até o efetivo ingresso do valor na esfera patrimonial do expropriado, o que implicaria o redesenho da prática havida contexto das ações de desapropriação.