Lembro-me do tempo, lá nos idos de 2000, quando cursava a disciplina de direito penal na graduação de direito. O professor ensinava com convicção e voz impostada os princípios basilares da matéria penalista[1].
Na sua fisionomia, via-se um ar de serenidade para traçar as balizas penais, com arrimo nos doutrinadores clássicos. Ainda que houvesse divergências nas ideias dos pensadores, as bases de um direito penal que visava – e ainda tem que visar – resguardar o acusado de arbitrariedades do poder punitivo mantinham prevalência.
Cada proteção esculpida no ordenamento jurídico para o acusado penal tinha, e tem, uma razão de ser, um motivo para que não exista uma condenação despida do mínimo de coerência e provas, de preferência robustas. O célebre caso dos irmãos naves, exempli gratia, serve de alerta: dois irmãos que foram severamente torturados e condenados por um crime que, no final das contas, não cometeram.
O professor falava, com tranquilidade, que a prisão do acusado somente poderia ocorrer quando esgotadas todas as instâncias, até o último grau, e recursos cabíveis, salvo se a lei admitisse a prisão temporária ou preventiva, nos seus estritos termos. Afinal, dizia, a liberdade é um bem caro do ser humano e o direito penal é a ultima ratio, razão pela qual não é à toa que está esculpido no art. 5º da Constituição Federal[2].
Expunha que era vedado condenar alguém sem previsão prévia do crime, por meio de lei, tampouco a necessária prévia cominação legal[3]. Gargalhava se alguém tentava imputar crime a alguém por analogia[4] ou buscasse fazer interpretações in malam partem ao suspeito ou acusado[5].
Recordo-me do exemplo dado: seria um absurdo, uma teratologia jurídica, querer aplicar pena de morte, por analogia, a traficantes de drogas, ao argumento que se está em guerra contra o tráfico[6].
Os ensinamentos percorriam a ideia de que o direito penal fora talhado para resguardar o acusado de arroubos e excessos da vingança estatal. Ao final do processo, com as garantias que estão na Constituição Federal e no Código Penal, é que o acusado sofreria a pena devidamente dosada, com a sua necessária individualização, para a ação criminosa praticada.
Atualmente, neste momento de inovações jurisprudenciais, para não dizer juízes legisladores, pobre coitado do professor de direito penal, que tem a tarefa árdua de ministrar a disciplina. Voz trêmula, com hesitação, passa um conteúdo sem a necessária segurança jurídica.
Afinal, pode ou não prisão antes do trânsito em julgado? É primeira instância, segunda instância, STJ ou STF o local adequado para determinar o recolhimento à prisão do acusado pelo crime que foi condenado? A cada flash da mídia e, a depender do envolvido, a resposta a esta indagação pode mudar radicalmente.
Criar crime novo ou “interpretar” de maneira ampliativa por analogia os tipos penais, por que não? Pode tudo e vale tudo na atualidade!
Para alguns julgadores, a liberdade encontra-se na Constituição Federal, numa cláusula pétrea, como mero enfeite. O importante é aplicar penas, recolher à prisão. Mostrar viés punitivista, custe o que custar. Os direitos do acusado podem ser relevados. Deve-se buscar atender o clamor da sociedade e ganhar “likes” nas mídias sociais, pensarão alguns.
Cabe aqui o alerta do renomado e ilustre jurista Eros Grau[7]:
O modo de pensar criticamente que me conduz convence-me de que o modo de ser dos juristas, juízes e tribunais de hoje – endeusando princípios, a ponto de justificar, em nome da Justiça, uma quase discricionariedade judicial – compõe-se entre os mais bem-acabados mecanismos de legitimação do modo de produção social capitalista. Decidir em função de princípios é mais justo, encanta, fascina e legitima o modo de produção social. Aquela coisa weberiana da certeza e segurança jurídicas sofre, então, atenuações; evidentemente, no entanto, apenas até o ponto em que não venha a comprometer o sistema.
Pondera também Lênio Streck[8]:
O que é um juiz corajoso? É o juiz voluntarista, que acha que o Direito atrapalha? É o que atende à voz das ruas? É o ativista que acha que pode administrar o Estado concedendo liminares? É o que concede 120 dias de licença-paternidade para um pai-que-é-funcionário-público? É um juiz que mandou fazer conduções agora declaradas inconstitucionais? Para mim, o juiz corajoso é o que faz o simples: cumpre a lei. Que segue rigorosamente a Constituição. É o juiz ortodoxo. É o juiz raiz e não o juiz nuttela (para usar uma brincadeira das redes sociais). Contra tudo e contra todos. Corajoso é o que sabe que a Constituição é um remédio contra maiorias.
Decidir e criar direito penal no afogadilho, no meio de um processo penal, é, deveras, um risco para a sociedade, a mesma que grita diariamente por “justiça”. Abandonar o “lex”, como diz Eros Grau, para atender a anseios punitivistas pode ter efeito pior do que a boa intenção por detrás desta vontade de ver o réu devidamente punido.
Não se está aqui a defender a impunidade de suposto criminoso, qualquer que seja, desde os delitos liliputianos até os mais graves e hediondos, mas sim o devido processo legal e a proteção das garantias e princípios penais.
Com certeza que quem peca deve ser punido, na medida da sua culpabilidade. Isto tem fundamento até bíblico[9]. Mas o Estado, que se arvorou a ser o titular da vingança contra o ofensor, deve ter cautela e evitar arbitrariedades na condução e na aplicação das penas.
Punir é ato que requer cautela, sem influências externas, com comedimento e ponderação, observando todos os contornos legais para que o julgador não haja, no final das contas, à margem, ou até mesmo contra, o comando da lei.
Notas
[1] Sobre o tema: JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: Parte Geral. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. 1.
[2] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
[3] Art. 5º da CF: “XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 1.
[6] Art. 5º da CF: “XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;”
[7] GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo de juízes. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 140.
[8] STRECK, Lenio Luiz. Há boas razões para obedecer ao direito e desobedecer ao impulso moral. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2018-jun-21/boas-razoes-obedecer-direito-desobedecer-moral>. Aceso em: 01/03/2019.
[9] Romanos 2:12: “Porque todos os que sem lei pecaram sem lei também perecerão; e todos os que sob a lei pecaram pela lei serão julgados”.