3. O INSTITUTO DAS HORAS IN ITINERE NO DIREITO BRASILEIRO
O entendimento do instituto das horas in itinere foi construído pela jurisprudência a partir da leitura do Art. 4º da CLT, cujos critérios de fixação para sua incidência da jornada de trabalho foram corroborados pela doutrina no tocante ao tempo de disposição e o tempo de deslocamento.
Destarte, não foram poucos os questionamentos nos tribunais e na classe acadêmica, na busca de amparo da aplicação do instituto das horas de trajeto.
Nesse contexto, foi editada a Súmula 90 pelo Tribunal Superior do Trabalho, com a chamada horas in itinere, com os moldes descritos e depois adotados pelo legislador de 2001 esculpidos no Art. 58, § 2º da CLT.
No tocante ao trabalhador permanecer à disposição do empregador durante o horário pré-estabelecido em contrato de trabalho, não há que se falar em controvérsias, mas aparece uma circunstância que amplia este horário à disposição, isto é, quando o obreiro ao utilizar uma condução fornecida pela empresa, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido de transporte público regular, surge a possibilidade de se configurar como sendo Jornada de trabalho.
Nessa mesma seara, NASCIMENTO (2011, pág. 769) citando José Montenegro Baca escreve:
O último critério, do tempo à disposição do empregador no sentido amplo, inclui como de jornada de trabalho o período in itinere, isto é, aquele em que o empregado está em percurso de casa para o trabalho e de volta do serviço. Tem como defensor, na doutrina, José Montenegro Baca, que escreveu Jornada de trabajo y descansos remunerados, e que define jornada de trabalho como “o tempo durante o qual o trabalhador permanece à disposição do empregador, desde que sai de seu domicílio até que regresse a ele” (GRIFO NOSSO).
No entanto, este instituto permaneceu controverso, necessitou que a corte laboral pacificasse o entendimento acerca do tema.
Conforme salientado alhures, antes da edição de Lei, as horas in itinere ou horas de deslocamento, fora cunhada mediante decisões nas cortes obreiras, especialmente com a edição da Súmula 90 pelo Tribunal Superior do Trabalho, in verbis:
HORAS "IN ITINERE". TEMPO DE SERVIÇO (incorporadas as Súmulas n.º 324 e 325 e as Orientações Jurisprudenciais n.º 50 e 236 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
I - O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho. (ex-Súmula nº 90 – RA 80/1978, DJ 10.11.1978)
II - A incompatibilidade entre os horários de início e término da jornada do empregado e os do transporte público regular é circunstância que também gera o direito às horas "itinere". (ex-OJ nº 50 da SBDI-1- inserida em 01.02.1995)
III - A mera insuficiência de transporte público não enseja o pagamento de horas "in itinere". (ex-Súmula nº 324 – Res. 16/1993, DJ 21.12.1993)
IV - Se houver transporte público regular em parte do trajeto percorrido em condução da empresa, as horas "in itinere" remuneradas limitam-se ao trecho não alcançado pelo transporte público. (ex-Súmula nº 325 – Res. 17/1993, DJ 21.12.1993)
V - Considerando que as horas "in itinere" são computáveis na jornada de trabalho, o tempo que extrapola a jornada legal é considerado como extraordinário e sobre ele deve incidir o adicional respectivo. (ex-OJ nº 236 da SBDI-1 - inserida em 20.06.2001)
Observa-se que a Súmula 90 do TST estabelece critérios para a verificação da incidência da hora de itinerário:
I) Condução fornecida pelo empregador – nota-se que a configuração da hora de deslocamento deve ter como elemento caracterizador o transporte fornecido pelo empregador na condução dos empregados. Nesta característica, não importa se o empregador utiliza de uma empresa terceirizada para execução do serviço, pois isto não há de impedir que a empresa contratante seja a beneficiada pelo transporte de seus funcionários, conforme a lavra do eminente ministro Maurício Godinho Delgado (2015, pág. 936):
É óbvio que não elide o requisito em exame a circunstância de o transporte ser efetivado por empresa privada especializada contratada pelo empregador, já que este, indiretamente, é que o está provendo e fornecendo. Aqui também não importa que o transporte seja ofertado pela empresa tomadora de serviços. em casos de terceirização, já que há, evidentemente, ajuste expresso ou tácito nesta direção entre as duas entidades empresariais.
II) Incompatibilidade dos horários de início e término da jornada de trabalho com os do transporte público regular – há casos em que o horário da jornada de trabalho começa antes mesmo do início da circulação do transporte público, em consonância com a Súmula 90. Nota-se que o empregador possui o poder de estabelecer o horário de funcionamento do estabelecimento e, portanto, decidir por iniciar suas atividades antes ou não do horário de funcionamento regular de transportes coletivos. Nesta situação, deve arcar com possíveis acréscimos das parcelas remuneratórias de seus funcionários, devido a caracterização das horas in itinere. O TST historicamente se posicionou acerca desta temática com a edição da Orientação Jurisprudencial nº 50 da SDI-1 em 1995, que posteriormente em 2005 foi cancelada pela nova redação da Súmula 90. Assim aplicava a jurisprudência:
Agravo de instrumento. Recurso de Revista. Horas in itinere. Incompatibilidade de Horário - A aplicação do Verbete nº 90 do TST encontra-se em consonância com a Orientação Jurisprudencial nº 50 da SDI desta Corte, que entende serem devidas as horas in itinere quando houver incompatibilidade de horário de transporte. Incidência do Enunciado 333 do TST. Agravo a que se nega provimento.
(AIRR - 506422-82.1998.5.15.5555, Relator Juiz Convocado: Fernando Eizo Ono, Data de Julgamento: 15/09/1999, 1ª Turma, Data de Publicação: DJ 01/10/1999).
É de se observar que após as decisões das cortes da Justiça do Trabalho sobre a aplicação das horas in itinere em processos que chegavam nos tribunais a partir de 1978, em 2001 o Congresso Nacional apresentou um projeto de Lei (Projeto de Lei nº 2, de 2001 do Senado Federal e Projeto de Lei nº 3.523, de 2000 na Câmara dos Deputados) que originou na redação legislativa incluída pela Lei nº 10.243 de 19 de junho de 2001, artigo 58, § 2º, da Consolidação das Leis Trabalhistas:
Art. 58 - A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.
[...]
§ 2o O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução.
A aplicação das horas in itinere teve aceitação jurisprudencial, mesmo havendo clamores ao contrário, conforme se constata no acórdão a seguir:
RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. HORAS IN ITINERE. INCOMPATIBILIDADE ENTRE OS HORÁRIOS DE INÍCIO E TÉRMINO DA JORNADA DA EMPREGADA. Consignado pelo Regional que apesar de a norma coletiva registrar que a reclamada não está sediada em local de difícil acesso, os registros de horário atestam o início da jornada de trabalho da autora por volta das 5 horas e, por vezes, antes desse horário. Consignou também que a reclamada não comprovou que o local em que situada a empresa fosse servido de transporte público regular, tanto em relação ao início como ao final da jornada de trabalho. Assim, manteve-se a r. sentença quanto à condenação da reclamada ao pagamento de horas extras decorrentes de horas in itinere. O Regional decidiu em consonância com o item II da Súmula 90 do TST.
Recurso de revista não conhecido.
(RR - 21234-51.2015.5.04.0333, Relatora Ministra: Maria Helena Mallmann, Data de Julgamento: 08/11/2017, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 17/11/2017).
A despeito da maciça jurisprudência que albergava a aplicação das horas in itinere, persistia o entendimento de que o fornecimento da condução para trabalhadores em locais de difícil acesso ou não servido por transporte público gerava ônus desproporcional para o empregador, pois segundo a legislação, este mesmo empregador arcaria com a indenização pelo tempo de deslocamento, computando-o como se jornada de trabalho fosse, como se vê no acórdão:
A visão moderna do direito do trabalho é incompatível com o reconhecimento de horas in itinere. O transporte assegurado pela empresa ao empregado deve ser aplaudido ao invés de onerá-la ainda mais, o que não se sustenta nem legal nem socialmente, porquanto os lugares de difícil acesso ou 'não servidos por transporte regular’ deixam de sê-lo diante da condução oferecida. Ademais, conflita com o bom senso jurídico o inexplicável entendimento de que empregados que se valham não raro de mais de uma condução para alcançar o seu local de trabalho não sejam beneficiados com a jornada in itinere, enquanto é reconhecida àqueles que são transportados das suas casas até o local de trabalho, em condução especial. Ac.TRT 12ª Reg. 2ª T (Proc. 3308/91) Rel. Juiz Hemut A. Schaarschimidt, Synthesis nº p. 252).
Percebe-se pelo acórdão acima, a existência de vozes que bradavam pela não caracterização do direito ao implemento na jornada de trabalho das horas de deslocamento. É de se notar que este discurso ocorre em momento anterior à edição normativa de 2001, demonstrando destarte, uma linha de argumentação propícia ao não reconhecimento das horas de deslocamento como jornada de trabalho.
Tais discursos encontraram abrigo anos depois, mais precisamente em 2017. Acontece que o Congresso Nacional editou e o Presidente da República sancionou a Lei 13.467 de julho de 2017 que passou a viger em 11 de novembro do mesmo ano, mesmo sob oposição da classe obreira e juristas contrários à chamada Reforma Trabalhista, como abordaremos mais à frente no item 3.3.
3.1 Horas in itinere e sua conversão em horas extraordinárias
As horas in itinere são importantes no cômputo da jornada de trabalho devido sua conversão em horas extraordinárias, quando ultrapassar o período legal. Aplica-se como uma exceção do tempo de deslocamento no período laboral. A jurisprudência trabalhista vem aplicando, nos casos que se verificam a ocorrência de horas in itinere, a condenação a horas extraordinárias quando, no cômputo geral da jornada de trabalho, excedem a pactuada. Ementa do Tribunal Superior do Trabalho (TST) demonstra tal conduta:
Horas in itinere. Constatando-se a existência de sobrejornada em virtude de horas in itinere, mantém-se condenação ao pagamento de adicional de horas extras. Recurso conhecido e ao qual se nega provimento. (RR - 288476-52.1996.5.15.5555, Relator Ministro: João Oreste Dalazen, Data de Julgamento: 11/11/1998, 1ª Turma, Data de Publicação: DJ 05/03/1999)
Note-se que a consequência lógica do reconhecimento das horas in itinere é o acréscimo da jornada de trabalho, que por sua vez, possui o condão de atrair a incidência das horas extraordinárias e todos os seus reflexos trabalhistas. Isto se dá em consonância com decisões reiteradas do Tribunal Superior do Trabalho (TST), como vemos a seguir:
HORAS IN ITINERE. PAGAMENTO DE FORMA SIMPLES PREVISTO EM NORMA COLETIVA. INVALIDADE. SÚMULA 333/TST. O Tribunal Regional concluiu que a norma coletiva não pode fixar o pagamento das horas in itinere de forma simples. Embora a Constituição da República privilegie e incentive a instituição de condições de trabalho mediante negociações coletivas (artigo 7º, XXVI), a Justiça do Trabalho só lhes garante o cumprimento quando não contrariam a legislação protetiva trabalhista. Esta Corte tem entendimento de que é possível a alteração das regras contratuais, por meio de negociação coletiva, inclusive para restringir o pagamento das horas in itinere. No entanto, é inválida cláusula de acordo coletivo que determina o pagamento das horas in itinere de forma simples, sem os reflexos consectários e o adicional respectivo. Incidência da Súmula 90/TST. Precedentes. Recurso de revista não conhecido. (Grifo nosso).
(RR - 823-09.2013.5.09.0562, Relatora Ministra: Maria Helena Mallmann, Data de Julgamento: 08/11/2017, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 17/11/2017).
Ao analisarmos tanto um quanto o outro julgado, o primeiro de 1998 e o último de 2017, concordam que sem o reconhecimento das horas excedentes, seria vazio o instituto das horas in itinere, é dizer, retiraria o direito ao recebimento das horas extras numa hipótese de jornada majorada por meio das horas de trajeto, beneficiando o empregador em detrimento do obreiro.
3.2.Horas in itinere e o ônus da prova
Diante de possibilidade de ocorrência de horas in itinere, exige-se, devido sua importância, a prova da hora de itinerário para o implemento na parcela remuneratória. Carece, portanto, da comprovação dos elementos caracterizadores mínimos para sua verificação, ou seja, deve o empregado provar o fornecimento de condução pelo empregador, demonstrar que a empresa está situada em local de difícil acesso ou não servido de transporte público, como se vê abaixo:
HORAS IN ITINERE. REQUISITOS. ÔNUS DA PROVA. A decisão regional foi no sentido de que o local era de difícil acesso ou não servido por transporte público e o empregador fornecia a condução para o local de trabalho, de forma que são devidas as horas in itinere. Nesse contexto, verifica-se que o Tribunal Regional decidiu em plena sintonia com a súmula 90, I, do TST, segundo a qual "O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho". Óbice da Súmula 333 do TST. Agravo de instrumento a que se nega provimento.
(AIRR - 64-55.2015.5.19.0058, Relatora Ministra: Maria Helena Mallmann, Data de Julgamento: 08/11/2017, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 17/11/2017)
Observa-se que a ocorrência perpassa pelos seus elementos identificadores necessários para o devido reconhecimento na esfera judicial, não bastando simplesmente requerer a aplicação do órgão julgador da incidência das horas de trajeto.