3 PESSOA JURÍDICA
A criação do instituto da pessoa jurídica foi uma das maiores contribuições do Direito para o progresso material da humanidade. Através dela, várias pessoas unem esforços e capital para um empreendimento comum.
Segundo Requião, o processo de gênese desse instituto começou na Idade Média, quando os processos de trocas começaram a se sofisticar e o intercâmbio de mercadorias ultrapassou os limites do Velho Mundo e a Europa começou a desbravar os demais continentes. As primeiras sociedades comanditas surgiram no século XI, sendo seguidas pelas companhias na época das Grandes Navegações e culminando com a criação das sociedades limitadas no séc. XIX. (REQUIÃO, 2003, p. 359).
A sofisticação das corporações foi acompanhada do processo de limitação da responsabilidade dos sócios. Não bastava que um ente jurídico fosse capaz de amealhar capital e trabalho de muitas pessoas com vistas a uma finalidade comum[28]. Para empreender de verdade, era necessário criar alguma forma de limitar o risco, garantindo o patrimônio particular dos sócios.
A partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da sociedade, motivam-se investidores e empreendedores a aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco. Se não existisse o princípio da separação patrimonial, os insucessos na exploração da empresa poderiam significar a perda de todos os bens particulares dos sócios, amealhados ao longo do trabalho de uma vida ou mesmo de gerações, e, nesse quadro, menos pessoas se sentiriam estimuladas a desenvolver novas atividades empresariais. (COELHO, 2007b, pp. 15-6).
No Brasil, desde as Ordenações Filipinas já existia o contrato de sociedades, porém sem o nascimento de um novo ente, autônomo em relação aos sócios:
Examinadas as fontes históricas, (...) exceto por atos isolados, específicos, é nas Ordenações Filipinas, de 1603, que se encontra o primeiro regramento, que vigorou no Brasil, sobre as sociedades civis (...)
Não conferia, entretanto, o Direito, à época, personalidade jurídica às sociedades, vistas como mero vínculo contratual entre os sócios. (RÊGO).
3.1 Personalidade Jurídica
Juridicamente, o que dá autonomia à pessoa jurídica é o fato de o Direito lhe conferir personalidade jurídica. “Personalidade Jurídica: é a aptidão genérica, conferida pela lei, para adquirir direitos e obrigações na órbita do direito civil.” (SIQUEIRA).
(...) que significa para o direito, personalizar alguém ou algo? Qual o traço diferencial entre o regime dos sujeitos de direito personalizados e despersonalizados?
O que caracteriza o regime das pessoas, no campo do direito privado, é a autorização genérica para a prática dos atos jurídicos. Ao personalizar algo ou alguém, a ordem jurídica dispensa-se de especificar quais atos esse algo ou alguém está apto a praticar. Em relação às pessoas, a ordem jurídica apenas delimita o proibido; a pessoa pode fazer tudo, salvo se houver proibição. Já em relação aos sujeitos despersonalizados, não existe a autorização genérica para o exercício dos atos jurídicos; eles só podem praticar os atos essenciais para o seu funcionamento e aqueles expressamente definidos. Para as não-pessoas, a ordem jurídica não delimita o proibido, mas o permitido. Mesmo que não exista proibição específica, o sujeito despersonalizado não pode praticar ato estranho à sua essencial função. (...)
O sujeito de direito personalizado tem aptidão para a prática de qualquer ato, exceto o expressamente proibido. Já o despersonalizado somente pode praticar ato essencial ao cumprimento de sua função ou o expressamente autorizado. (COELHO, 2007b, pp. 10-1).
Como se viu, não são apenas os entes com personalidade jurídica que podem realizar atos na esfera civil. Os sujeitos de direito são mais abrangentes. Veja-se:
Sujeito de Direito = titular de direitos e obrigações. No passado, sujeito de direito eram as pessoas, ou seja, entes personalizados. Modernamente, ao lado das pessoas são também considerados sujeitos de direito alguns entes despersonalizados. (SIQUEIRA).
SUJEITOS DE DIREITO[29] |
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ENTES PERSONALIZADOS |
ENTES DESPERSONALIZADOS |
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PESSOAS JURÍDICAS[30] |
PESSOAS NATURAIS[31] |
Massa falida, Nascituro, Herança jacente, Espólio, Condomínio edilício, Sociedade sem registro. |
Estatais, Particulares. |
Servidores públicos, Empregados, Profissionais autônomos, Empresários individuais, Sócios administradores, Sócios investidores, Titulares de serventias extrajudiciais[32]. |
Referindo-se às sociedades comerciais, mas igualmente válido para as civis, Requião faz um excelente resumo das implicações da aquisição da personalidade jurídica:
A sociedade transforma-se em novo ser, estranho à individualidade das pessoas que participam de sua constituição, dominando um patrimônio próprio, possuidor de órgãos de deliberação e execução que ditam e fazem cumprir a sua vontade. Seu patrimônio, no terreno obrigacional, assegura sua responsabilidade direta em relação a terceiros. Os bens sociais, como objetos de sua propriedade, constituem a garantia dos credores, como ocorre com os de qualquer pessoa natural. (REQUIÃO, 2003, p. 373).
Adquirindo personalidade jurídica, diversas conseqüências úteis ocorrem à sociedade comercial. Entre elas podemos catalogar as mais expressivas no seguinte elenco:
1ª) Considera-se a sociedade uma pessoa, isto é, um sujeito “capaz de direitos e obrigações”. Pode estar em juízo por si, contrata e se obriga. “A sociedade adquire direitos, assume obrigações e procede judicialmente, por meio de administradores com poderes especiais, ou não os havendo, por intermédio de qualquer administrador”. É o dispositivo do art. 1.022 do Código Civil, estabelecendo a legitimidade contratual, a responsabilidade patrimonial e a legitimidade processual da sociedade personificada.
2ª) Tendo a sociedade, como pessoa jurídica, individualidade própria, os sócios que a constituírem com ela não se confundem, não adquirindo por isso a qualidade de comerciantes.
3ª) A sociedade com personalidade adquire ampla autonomia patrimonial. O patrimônio é seu, e esse patrimônio, seja qual for o tipo da sociedade, responde ilimitadamente pelo seu passivo.
4ª) A sociedade tem a possibilidade de modificar a sua estrutura, quer jurídica, com a modificação do contrato adotando outro tipo de sociedade, quer econômica, com a retirada ou ingresso de novos sócios, ou simples substituição de pessoas, pela cessão ou transferência de parte do capital. (REQUIÃO, 2003, p. 382).
Ao lado da personalidade jurídica, o Direito Civil ainda estuda o instituto da capacidade jurídica, pelo qual a pessoa, com aptidão genérica para adquirir direitos e obrigações, pode atuar diretamente no comércio jurídico ou indiretamete, através de representante ou assistente. A pessoa jurídica, objeto deste estudo, tem capacidade plena, mas para agir no mundo concreto, elas recorrem a pessoas naturais, que são seus órgãos ou presentantes[33].
3.2 A Pessoa Jurídica
As pessoas jurídicas são sujeitos de direito personalizados, autônomas em relação a seus sócios, podendo a responsabilidade dos sócios ser limitada ou não. Tomem-se as definições de alguns autores:
Pessoa Jurídica: é a unidade de pessoas (sociedades e associações) ou de patrimônios (fundações) que visa a consecução de uma atividade (sempre lícita), reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direito. (SIQUEIRA).
(...) a pessoa jurídica é a unidade jurídica, resultante da associação humana, constituída para obter, pelos meios patrimoniais, um ou mais fins, sendo distinta dos indivíduos singulares e dotada da capacidade de possuir e de exercer adversus omnes direitos patrimoniais. (MENDONÇA, 1953, item 601).
“É a pessoa jurídica o ente incorpóreo que, como as pessoas físicas, pode ser sujeito de direitos. Não se confundem, assim, as pessoas jurídicas com as pessoas físicas, as quais deram lugar ao seu nascimento; ao contrário, delas se distanciam, adquirindo patrimônio autônomo e exercendo direito em nome próprio. Em razão disso, as pessoas jurídicas têm nome particular, como aquelas físicas, domicílio, nacionalidade; podendo estar em juízo, como autoras, ou na qualidade de rés, sem que isso reflita na pessoa daqueles que as consituíram.” (MARTINS, 2006, p. 184).
Para a criação da pessoa jurídica, necessário se faz a conjugação de três pressupostos[34]: a) a vontade humana criadora; b) a observância das condições legais para a sua instituição; c) a licitude de seu objetivo.
Sílvio Venosa explica todo esse processo:
Passada a fase de manifestação da vontade, no sentido da criação do novo ente, a pessoa jurídica já existe em estado latente.
Para que essa pessoa jurídica possa gozar de suas prerrogativas na vida civil, cumpre observar o segundo requisito, qual seja, a observância das determinações legais. (VENOSA, 2004a, p. 257).
Na primeira fase, há a constituição da pessoa jurídica por um ato unilateral inter vivos ou mortis causa nas fundações e por um ato bilateral ou plurilateral nas corporações. (VENOSA, 2004a, p. 286).
O elemento formal é sua constituição por escrito que poderá ser por escrito particular ou público, salvo para as fundações, em que o instrumento público ou o testamento é essencial. (...)
Após a existência do ato escrito e da autorização, se necessário, passa-se à segunda fase, ou seja, à fase do registro. O art. 46 do atual Código especifica o que, necessariamente, o registro declarará. (VENOSA, 2004a, p. 287).
Embora costumeiramente se afirme que o contrato de sociedade não requer forma especial, o escrito é de suma importância porque sem ele não logrará a sociedade obter personalidade jurídica com o registro. Poderá ser instrumento público ou particular, dependendo da finalidade e da exigência legal respectiva. (...) Não haverá sociedade regular sem forma escrita. (VENOSA, 2004b, p. 602).
No período que medeia entre a criação da sociedade e seu registro, os atos praticados por ela são considerados de sociedade irregular, podendo ser, no entanto, ratificados. O ato de registro, todavia, não é retroativo. (VENOSA, 2004b, p. 612).
Vê-se, portanto, que a declaração de vontade, consubstanciada num negócio jurídico (contrato ou estatuto), pode revestir-se de forma pública ou particular, com exceção das fundações que estão sujeitas ao requisito formal específico: escritura pública ou testamento[35]. Como ressaltado acima por Sílvio Venosa, mesmo que a forma escrita não seja da essência do ato, ela será necessária para a regularidade da pessoa jurídica, uma vez que sua constituição se dá pelo registro.
Pelo exposto, verifica-se que da conjugação das fases[36] volitiva (negócio jurídico) e administrativa (registro) resulta a aquisição da personalidade da pessoa jurídica.
3.2.1 Categorias de pessoas jurídicas no Direito Privado
O Código Civil sistematiza o rol das pessoas jurídicas nos artigos 40 a 44. Assim elas se apresentam em de direito público (externo e interno) e de direito privado. Segundo Fábio Ulhôa Coelho, as pessoas jurídicas de direito privado subdividem-se:
De um lado, as chamadas estatais, cujo capital social é formado, majoritária ou totalmente, por recursos provenientes do poder público, que compreende a sociedade de economia mista, da qual particulares também participam, embora minoritariamente, e a já lembrada empresa pública. De outro lado, as pessoas jurídicas de direito privado não-estatais, que compreendem a fundação, a associação e as sociedades. As sociedades, por sua vez, se distinguem da associação e da fundação em virtude de seu escopo negocial, e se subdividem em sociedades simples e empresárias. (COELHO, 2006, p. 110).
PESSOAS JURÍDICAS[37] |
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PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO |
PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO |
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NÃO-ESTATAIS |
ESTATAIS |
EXTERNO |
INTERNO |
Associações Sociedades Fundações Organizações religiosas Partidos políticos |
Sociedade de economia mista Empresa pública[38] Fundações governamentais |
Estados estrangeiros Todas as pessoas regidas pelo direito internacional público (exemplos: ONU, OEA, OPEP, Comunidade Européia, OTAN etc.) |
União Estados Distrito Federal Territórios Municípios Autarquias, inclusive as associações públicas Demais entidades de caráter público criadas por lei |
As pessoas jurídicas de direito privado não-estatais, a seu turno, podem ser divididas conforme sua finalidade econômica ou não. As sociedades têm fins econômicos. Já sem fins econômicos são as associações e fundações[39].
(...) se as associações e as fundações, ambas, não possuem fins lucrativos, o traço que as diferencia está em que, nas associações, há, necessariamente, o agrupamento de pessoas, para um fim comum; já, nas fundações, o que as caracteriza é sua formação, não por pessoas, mas por patrimônio especial, afetado e personalizado, para a obtenção de determinado fim. Objeto sem fins lucrativos, o registro permanece atribuído ao Registro Civil de Pessoas Jurídicas. (RÊGO).
Recente emenda trouxe ao Código Civil os partidos políticos e as organizações religiosas como categorias autônomas de pessoas jurídicas. No entanto, eles podem ser considerados modalidades de associações. É também o caso dos sindicatos.
PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO – ART. 44 DO CC[40] |
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FINS ECONÔMICOS (Órgão de registro: Registro Civil das Pessoas Jurídicas ou Junta Comercial) |
FINS NÃO-ECONÔMICOS[41] (Órgão de registro: Registro Civil das Pessoas Jurídicas) |
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CORPORAÇÃO DE PESSOAS |
PATRIMÔNIO AFETADO[42] |
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Sociedades |
Associações[43] Organizações Religiosas Partidos Políticos[44] (Sindicatos[45]) |
Fundações |
As sociedades são corporações de pessoas visando fins lucrativos. Existem duas categorias de sociedades que não são registradas, logo, não têm personalidade jurídica: a sociedade em conta de participação e as sociedades comuns.
A sociedade em conta de participação é mais um contrato de sociedade do que propriamente uma pessoa jurídica. Já a sociedade em comum ocorre quando o registro não seja feito ou seja feito de forma irregular. Mesmo não sendo pessoa jurídica, a sociedade em comum já conta com algum reconhecimento de autonomia.
Sociedades sem registro:
- Sociedade em comum (artigos 986 a 990 do CC). A sociedade em comum abrange a sociedade de fato e a sociedade irregular.
- Sociedade em conta de participação (artigos 991 a 996 do CC).
A sociedade de fato é aquela que sequer tem contrato social escrito; já a sociedade irregular é aquela que tem contrato escrito, mas este não é levado a registro no órgão peculiar. (...)
Sociedade em Conta de Participação: é um tipo de sociedade que não tem personalidade jurídica, bem como não tem denominação. Não obstante ela pode ter o seu contrato registrado (no Oficial de Registro de Títulos e Documentos, por exemplo). (SIQUEIRA).
SOCIEDADES |
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NÃO-PERSONIFICADAS (SEM REGISTRO) |
PERSONIFICADAS[46] (COM REGISTRO) |
Sociedade em conta de participação Sociedade em Comum (irregulares ou de fato) |
Sociedade simples (lato sensu) (Registro Civil das Pessoas Jurídicas) Sociedade empresária (Registro na Junta Comercial) |
As sociedades sujeitas a registro, ou seja, aquelas que são pessoas jurídicas e gozam da personalidade e capacidade jurídicas, são as sociedades simples e as sociedades empresárias. Sobre sua distinção e registro trata o capítulo seguinte.