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A secessão e a federação brasileira sob o novo direito constitucional

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6. CONCLUSÃO

A titularidade do Poder do Estado é do povo. Disso importa que princípios constitucionais estruturantes, como cidadania e dignidade da pessoa humana, da qual emerge o subprincípio que assegura a todos o direito de buscar sua felicidade, dão azo à possibilidade de qualquer Estado-membro retirar-se da Federação brasileira.

Embora a Carta de 1988 estabeleça a indissolubilidade dos entes federativos (art. 1º), uma interpretação do dispositivo à luz dos princípios constitucionais permite a conclusão de que essa união indissolúvel entre Estados, Municípios e Distrito Federal exige uma adesão do povo temporânea, de sorte que se a maioria da população de qualquer ente federado optar por deixar a Federação poderá fazê-lo, sem qualquer óbice jurídico constitucional que frustre esse intento, que resulta da liberdade que todos dispõem para, de forma livre, buscar a felicidade. E se a felicidade da maioria da população de um Estado-membro reclamar a separação da Federação, esta não terá qualquer legitimidade para criar qualquer impedimento à soberania popular manifestada.

Na verdade, a atual Lei Fundamental, a exemplo das demais insculpidas no período republicano, corroborou para que a Federação constituísse uma realidade artificiosa, verdadeiro embuste, ao negar aos Estados-membros a adequada representação política. O Parlamento Federal, bicameral, é composto pelo Senado, cujos membros devem representar os Estados-membros e o Distrito Federal, e pela Câmara dos Deputados, que deveria representar proporcionalmente a população dos Estados-membros e do Distrito federal; ao se criar Estados sem densidade demográfica e estabelecer limites para que a população seja representada pelos Deputados, alija-se a causa justificante de duas casas legislativas em uma Federação e, pior, busca-se constitucionalizar a supremacia da minoria sobre a maioria, subvertendo a ordem democrática.

A consequência é que a Câmara dos Deputados nunca representou proporcionalmente a população porque sua composição obedece ao critério de que cada Estado-membro seja representado por no mínimo oito Deputados e pelo máximo de setenta. Disso resulta uma desigualdade indevida entre brasileiros, e consequentemente menos poder político aos Estados-membros com maior número de habitantes. A produção do Poder Legislativo, pois, tal como aquela expressa no exercício do Poder Constituinte, seja originário ou derivado, é de questionável legitimidade. 

Não bastasse essa nódoa, que não se convalesce por qualquer interregno, há a incidência do moderno constitucionalismo, que imprime aos princípios uma força sobranceira sobre todo o ordenamento, fomentando uma exegese que atenda às necessidades prementes da sociedade. Daí porque, em um Estado Democrático de Direito, onde o Poder estatal emana efetivamente do povo, em que a cidadania e a dignidade da pessoa humana constituam fundamentos, e que desta seja reconhecida a garantia do direito universal inato de buscar a felicidade, não há espaço para negar o exercício de livremente decidir, à população de um Estado-membro, sobre sua autodeterminação, e a consequente mantença ou não na Federação brasileira.

Não é a força que mantém uma união, tampouco um contrato. Ela deve refletir o desejo do povo de um território, num determinado momento histórico. Assim houve no Canadá, quando os habitantes da Província de Quebec manifestaram nas urnas seu desejo de não constituírem um Estado soberano, e com o Reino Unido, quando os escoceses também manifestaram no voto o desejo de manutenção do vínculo; todavia, nesses dois Estados, foram os habitantes dos territórios que decidiram sobre o futuro, de forma livre, consciente e soberana.

Na verdade, quiçá uma das maiores causas de conflitos armados e violência decorram do pensamento que nega a supremacia da vontade popular em relação ao Estado. O Estado existe para propiciar o bem estar à sua população, e não a população para servi-lo. O direito à autodeterminação dos povos, reconhecido pela Carta da ONU de 1945, à luz do moderno constitucionalismo, permite sempre a possibilidade à população de qualquer território decidir pelo seu futuro, seja constituindo um novo Estado, seja unindo-se a outro, ou mesmo em manter seu status quo.

Os Estados-membros da República Federativa do Brasil, portanto, possuem a faculdade, assim desejando a maioria de seus habitantes, de constituírem Estados soberanos e independentes, de unirem-se a outro, ou de permanecerem na Federação. Desse direito de livremente decidir nenhuma população poderá jamais ser privada em um Estado que se pretenda democrático.

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REFERÊNCIAS

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Notas

[2] Destaca Dantas (2013, p. 53) que “Muito embora o Congresso Nacional, ao menos formalmente, tenha aprovado e promulgado a nova constituição, em 24 de janeiro de 1967, prevalece na doutrina a opinião que se tratou, na realidade, de uma constituição outorgada, uma vez que não foi dado aos congressistas poder efetivo para alterar substancialmente o documento apresentado, caso o desejassem”. (grifo no original)

[3] Lembra Dantas (2013, p. 53) que, como decorrência das “crescentes convulsões sociais, e também às manifestações populares de oposição ao regime, notadamente de estudantes universitários e parlamentares”, foi editado o Ato Institucional nº 5, em 1968, “composto por um impressionante conjunto de medidas, recrudescendo ainda mais as medidas autoritárias até então vigentes”, resultando na edição da “Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, que entrou em vigor em 30 de outubro daquele mesmo ano. Em razão da profunda alteração da ordem estatal então vigente, sem qualquer observância, aliás, aos limites e condicionalmente fixados pela Constituição de 1967, alguns doutrinadores chegam mesmo a considerar que referida emenda se tratou de nova constituição, outorgada por manifestação do poder constituinte originário”.

[4] Como ensina Dantas (2013, p. 50), “Após dissolver a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, e revogar a Constituição de 1934, instituindo o chamado Estado Novo, alegadamente para a proteção do país contra a crescente influência tanto do fascismo como do comunismo, que supostamente exigia o fortalecimento do poder central (em detrimento da Federação), o Presidente Getúlio Vargas nos impôs uma nova constituição [...]”.

[5] Tradução livre.

[6] Estudos apontam a existência de aproximadamente vinte movimentos independentistas no continente europeu nos dias atuais (NOACK, 2014).

[7] O autor, em nota de rodapé, acrescenta: “Exemplo típico de fracionamento pacífico foi o que ocorreu com Cingapura, no ano de 1965. Estando integrada à Federação da Malásia, esta consentiu a independência de Cingapura, que passou a constituir um novo Estado”. (DALLARI, 2013, p. 64)

[8] Como exemplo, imaginemos um Estado com 200 milhões de cidadãos, onde uma região, com 10 milhões de eleitores, possui 90% de adesão à tese de secessão, embora nas demais regiões desse Estado, onde vivem os demais nacionais, é nula a adesão ao pensamento independentista daquela região. Se for considerada a vontade da maioria da maioria da população diretamente afetada com a questão, haverá a formação de um novo Estado. Entretanto, se for considerada a opinião de todos os eleitores do Estado, que apenas reflexamente serão afetados com a separação da região independentista, o desejo da secessão, por ser majoritário apenas na região que pretende a cisão, não prevalecerá; disso resulta absoluta violação ao direito da maioria da população fixada em parcela do território do Estado de autodeterminar-se ou, noutras palavras, legitima a ditadura da minoria sobre a maioria dos habitantes que preferem a cisão.

[9] Para Bandeira (1993, p. 211), entretanto, “A origem dessas distorções remonta a uma medida casuística tomada pelo governo militar, na década de 70, com a finalidade de assegurar a manutenção de uma maioria no Congresso Nacional. No entanto, mais significativo do que essa origem ‘espúria’ é o fato de que tal desproporcionalidade tenha sido convalidada pela legislação posterior à redemocratização do País, assegurando a sobrevivência dessa parcela do que o jargão político de alguns anos atrás denominava de ‘entulho autoritário’. Se a existência de tais distorções tinha pouca relevância no passado, sob os governos militares, quando o papel do Congresso era bastante reduzido, na atualidade sua significação política tem se mostrado muito grande, podendo aumentar ainda mais, caso venha a ser implantado o sistema parlamentarista no País.” De fato, a quebra do princípio básico da Federação de representatividade política proporcional à população fulmina qualquer pretensão à instauração do parlamentarismo; antes, contudo, fulmina a própria legitimidade na atuação da Câmara dos Deputados, porque o povo, real titular do Poder do Estado, não está representado adequadamente em proporcionalidade.

Sobre o autor
Vladimir Polízio Júnior

Professor, advogado e jornalista. Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/SP, 33ª Subseção de Jundiaí. É especialista em direito civil e direito processual civil, em direito constitucional e em direito penal e direito processual penal. Mestre em direito processual constitucional. Doutor em direito pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora, Argentina. Pós-doutor em em Cidadania e Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra, Portugal. Autor de artigos e livros, como Novo Código Florestal, pela editora Rideel, Lei de Acesso à Informação: manual teórico e prático, pela editora Juruá, e Coleção Prática Jurídica, por e-book, com 4 volumes: Meio Ambiente e os Tribunais, Crimes contra a Vida e os Tribunais, Crimes contra o Patrimônio e os Tribunais, e Liberdade de Expressão e os Tribunais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POLÍZIO JÚNIOR, Vladimir. A secessão e a federação brasileira sob o novo direito constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5918, 14 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74404. Acesso em: 23 dez. 2024.

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